Para a ativista e pesquisadora, “a exploração da Amazônia ainda é uma história sem fim”
A História do Brasil se revela como uma história de exploração e expropriação dessas terras e de quem nela já vivia há séculos. Para a pesquisadora e ambientalista Telma Monteiro, a região amazônica é uma das que mais sofre com essas lógicas desde a chegada dos primeiros colonizadores. Agora, com o projeto da ferrovia apelidada de Ferrogrão, essa história parece receber um novo capítulo, mas sob as mesmas lógicas de um desenvolvimentista que não mede consequências. “O Brasil está sendo rifado no exterior, e desta vez somos nós que estamos oferecendo o país para a exploração. Sim, esse é um novo ciclo de exploração, principalmente da Amazônia”, dispara.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Telma alerta que essa ferrovia, que, segundo o projeto, deve ir do norte do estado de Mato Grosso até o porto de Miritituba, no rio Tapajós, no Pará, será uma nova veia exposta que trará ainda mais degradação socioambiental. “Ainda sem a Ferrogrão, foram contabilizados, segundo levantamento recente, 2.576 focos de garimpo ilegal que atingem 17% das áreas protegidas e 10% das terras indígenas”, observa. “A Ferrogrão deverá atravessar um mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, podendo agravar e tornar ainda mais irreversíveis os impactos promovidos pela rodovia BR-163. Além de impactos ambientais e sociais, a EF-170 vai interceptar 17 municípios, dos quais 12 estão no estado do Mato Grosso e os outros cinco no estado do Pará”, completa.
Por isso, Telma é taxativa ao afirmar que “a ideia do governo federal é um retrocesso histórico comparável com a época da ditadura militar que tinha o objetivo de ‘ocupar’ o vazio demográfico na Amazônia”, pois “o lema ‘Integrar para não Entregar’ está muito presente no projeto da Ferrogrão”. O resultado, para a pesquisadora, é fácil de prever: “mais uma vez, a Amazônia, tão explorada desde o descobrimento e ocupada no período da ditadura militar, torna-se fundamental para os planos de destruição impulsionados pelo governo federal e seus aliados do agronegócio predatório”.
E mais: para Telma, essa é apenas uma cereja no bolo de projeto de destruição que está sendo levado a cabo pelo atual governo. “Ferrogrão não estará sozinha nessa composição, ela é apenas o fio condutor, pois junto com ela e a BR-163, outros ramais de estrada de ferro estão previstos para interligar rodovias do norte do Mato Grosso no sentido oeste/leste, passando por Rondônia em direção à hidrovia do Madeira até o rio Amazonas. Todos os governos brasileiros, ao longo da história, não deixaram de pensar em formas de exploração dos recursos naturais da Amazônia, acreditando que com isso transformariam o Brasil na maior potência econômica do mundo”, analisa.
Telma Monteiro (Foto: Arquivo Pessoal)
Telma Monteiro é ativista ambiental e pesquisadora independente, especialista em análise de processos de licenciamento ambiental.
IHU – No que consiste o projeto da Ferrogrão, ou EF-170?
Telma Monteiro – A Ferrogrão, ou EF-170, é uma proposta de traçado do projeto de ferrovia criado para escoar soja, farelo de soja e milho produzidos no norte do estado de Mato Grosso, no percurso que vai desde a cidade de Sinop, no MT, até o porto de Miritituba (Itaituba), no rio Tapajós, no Pará. No porto, os grãos serão transferidos para barcaças e seguirão pela hidrovia no trecho do rio Tapajós até o rio Amazonas e dali para o oceano Atlântico.
Traçado geral da Ferrogão | Reprodução Governo Federal
O trajeto previsto para a Ferrogrão é de 933 km e segue paralelo, separado em alguns trechos por apenas 40m, com a polêmica BR-163, ou rodovia Cuiabá–Santarém, que foi construída durante os anos 1970. A Ferrogrão deverá atravessar um mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, podendo agravar e tornar ainda mais irreversíveis os impactos promovidos pela rodovia BR-163. Além de impactos ambientais e sociais, a EF-170 vai interceptar 17 municípios, dos quais 12 estão no estado do Mato Grosso e os outros cinco no estado do Pará.
O projeto da ferrovia data de 2012, lançado pelo governo federal dentro do Programa de Investimento em Logística – PIL para complementar a integração logística do norte do Mato Grosso. Já em 2012, o lobby do agronegócio se intensificou no sentido de pressionar o governo para que a ferrovia pudesse ser rapidamente aprovada. Em 2014, o Ministério da Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos Estudos de Viabilidade da ferrovia, e a Estação da Luz Participações – EDLP, apoiada pelas tradings ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, se propôs a fazer o relatório de viabilidade técnica, entregue em 2016.
Inicialmente, a Ferrogrão seria licitada por um período de 69 anos. Digo isso porque no governo de Jair Bolsonaro a regra está mudando para um regime de concessão em que os investidores ou empresas poderão obter uma autorização simplificada, conforme a Medida Provisória – MP 1065/21, um novo marco legal do transporte ferroviário que dá permissão para construção de novas ferrovias por meio de uma autorização simplificada, sem necessidade de licitação. O custo atualizado da construção da Ferrogrão já está perto dos R$ 20 bilhões. A ideia do governo federal é um retrocesso histórico comparável com a época da ditadura militar, que tinha o objetivo de “ocupar” o vazio demográfico na Amazônia.
O lema “Integrar para não Entregar” está muito presente no projeto da Ferrogrão. É esse o objetivo: escoar a produção de grãos do Mato Grosso e interligar com o escoamento da produção no Arco Norte, outra estratégia de integração com rodovias, ferrovia, portos, estações de transbordo para unir Amazonas, Pará, Amapá e Maranhão. Mais uma vez, a Amazônia, tão explorada desde o descobrimento e ocupada no período da ditadura militar, torna-se fundamental para os planos de destruição impulsionados pelo governo federal e seus aliados do agronegócio predatório. Sim, porque não há plano B, o de não criar impactos na maior floresta do mundo e nas terras indígenas.
Unidades de conservação atravessadas pelo projeto | Reprodução Telma Monteiro
IHU – Como esse projeto se origina e quais os impactos socioambientais já mensurados?
Telma Monteiro – Impossível não mencionar as grandes interferências ambientais e sociais que a Ferrogrão poderá criar e recrudescer as que já estão em andamento, principalmente ao atravessar, exatamente no meio, o Parque Nacional do Jamanxim (PARNA Jamanxim), uma das Unidades de Conservação mais importantes desse mosaico de biodiversidade que é a Amazônia e, em especial, da bacia hidrográfica do Tapajós. O PARNA Jamanxim é uma Unidade de Conservação federal de proteção integral sob o guarda-chuva do Instituto Chico Mendes, mas, mesmo assim, em 2016, a Medida Provisória nº 758 foi aprovada pelo Congresso e se transformou na Lei Federal nº 13.452/2017, que desafetou a área da faixa de domínio para que a ferrovia o cortasse.
Localização do Parque Nacional Jamanxin (PARNA) | Mapa: reprodução Telma Monteiro
Preciso esclarecer, também, que o PARNA Jamanxim é considerado uma “unidade corredor” porque liga o mosaico de Unidades de Conservação do Tapajós ao mosaico de Unidades de Conservação do Xingu, com mais de 17 milhões de hectares de áreas federais protegidas. Só a bacia do Tapajós tem 764.183 km².
Eu sempre escrevo e digo que a Ferrogrão vai consolidar a divisão da Amazônia ao meio, trabalho já iniciado pela rodovia BR-163. Quando vemos as marcas dos impactos criados pela rodovia, fica fácil imaginar o que a ferrovia acrescentará. O mosaico, insisto nisso, de Unidades de Conservação e Territórios Indígenas está cada vez mais à mercê do desmatamento provocado pela ocupação. Depois, vem o garimpo que arruína a biodiversidade e corrói a convivência pacífica dos povos indígenas. O exemplo que tivemos recentemente da divulgação da exploração do garimpo no rio Madeira, com centenas de balsas em busca de ouro ilegal, sem fiscalização, não se compara com o que tem se passado na bacia do Tapajós e na sub-bacia do Jamanxim.
Não é necessário muito esforço de imaginação para entender o que significa construir uma ferrovia que atravessa a Amazônia na sua porção mais rica, justamente onde está a Província Mineral do Tapajós. O Congresso está prestes a aprovar o PL 191, que visa autorizar a mineração em Terras Indígenas, e estudos já demonstram que, se aprovado, esse PL vai induzir a pelo menos mais 20% o desmatamento e gerar prejuízos de US$ 5 bilhões anuais em serviços ecossistêmicos. A tese que defendo é que a ferrovia não vai tirar os caminhões da rodovia, mas vai ajudar a escoar o resultado da produção mineral na região da bacia do Tapajós.
O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, tenta fazer um Greenwashing [maquiagem verde, no sentido de vender a ideia de que é um projeto sustentável] no projeto da Ferrogrão, com a promessa de retirar 1 milhão de toneladas de gás carbônico da atmosfera com a redução de 90% no fluxo de caminhões na BR-163, que hoje leva a soja para o porto no Tapajós.
Você me pergunta sobre os impactos e eu devo mencionar que eles já estão acontecendo. Basta saber que, sem a ferrovia, no município de Jacareacanga, onde está a maior Terra Munduruku, já existem 34 mil pessoas com problemas neuropsicológicos devido à contaminação do mercúrio que é jogado nos rios pelo garimpo. Cada kg de ouro produz 2,6g de mercúrio e 13% são despejados nos rios. Nas aldeias, 9 a cada 10 indígenas estão contaminados e 15% das crianças têm problemas de neurodesenvolvimento.
Então, o Ministério da Saúde resolve dar uma solução inusitada: “reeducação alimentar” com supressão do consumo de peixes. Como conviver com uma decisão dessas? Resta claro que a situação é tão grave e ainda poderá piorar com esse conjunto de projetos do governo Bolsonaro, que vai desde a construção da Ferrogrão (principal projeto do Ministério de Infraestrutura), duplicação da BR-163 no trecho do Estado do Pará, liberação da mineração em Terras indígenas, facilitação do licenciamento ambiental e agilização da concessão de ferrovias, hidrovias e rodovias. Esse conjunto é uma verdadeira bomba atômica.
Para se ter uma ideia, os danos ambientais e socioambientais, entre 2019 e 2020, sem o novo “pacote” de infraestrutura, já passam de R$ 1 bilhão.
IHU – A senhora tem denunciado que, em missão de Nova Iorque a Dubai, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e sua equipe têm oferecido à iniciativa privada o projeto da Ferrogrão como a “cereja do bolo” de um grande plano de infraestrutura para o Brasil. Como analisa esse plano e qual a centralidade da Ferrogrão, especialmente para investidores estrangeiros e privados?
Telma Monteiro – Antes, devo mencionar que o Roadshow da Ferrogrão não começou neste ano de 2021. Desde 2019, a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos – SPPI, a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e a Empresa de Planejamento e Logística – EPL apresentaram os detalhes do projeto para investidores interessados na Ferrogrão. O Tribunal de Contas da União – TCU começou a avaliar o projeto só em julho de 2020. E, ainda em 2020, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, se referiu à Ferrogrão como “o projeto mais importante do Brasil” e na sua concepção a ferrovia seria uma espécie de marco para o agronegócio.
Segundo ele, teriam sido tomados todos os cuidados com a questão ambiental. Na investida do Roadshow da Ferrogrão, em 2020, participaram das reuniões virtuais a Hidrovias do Brasil, New Development Bank, VLI (Vale Logística), China Railway Group. Já em 2021, durante a COP26, o ministro da Infraestrutura e uma equipe estiveram com investidores em Nova Iorque, Europa e Emirados Árabes para apresentar a Ferrogrão e um conjunto de projetos ferroviários no novo programa federal Pro Trilhos, dentro do Novo Marco Legal das Ferrovias. Mas o mais importante é mencionar que essas “ofertas” estão sendo estimuladas por meio do instrumento da outorga por autorização, o que significa simplificar e tornar mais céleres os processos para a iniciativa privada, com menos burocracia. Pode-se dizer que o objetivo é pular etapas que faziam parte do modelo tradicional de concessão.
Essa inovação vai contribuir também para que o licenciamento ambiental seja mais rápido, portanto, a Ferrogrão, em plena Amazônia, já está sob o crivo desse novo modelo de licenciamento com regras mais maleáveis que têm por objetivo atrair investidores e empresas internacionais. E não estamos falando apenas de ferrovias, mas de modal rodoviário e hidroviário também. O objetivo é a expansão da fronteira agrícola brasileira em direção à Amazônia.
IHU – Outro projeto na região amazônica, a rodovia Cuiabá-Santarém, ou BR-163, já tem trazido danos a populações indígenas e meio ambiente. Que danos são esses e como a construção da Ferrogrão pode ainda piorar esse cenário?
Telma Monteiro – O ciclo integracionista iniciado nos anos 1960, pela ditadura brasileira, tinha como objetivo a ocupação do território para integrar a região Amazônica ao restante do Brasil. O vazio demográfico, no enfoque dos governos da época, significava vulnerabilidade do território à cobiça internacional. Os militares tomaram a decisão de que seria preciso incorporar a exploração da Amazônia à economia para integrá-la ao desenvolvimento do Brasil. A ditadura determinou, então, a construção de rodovias, a implantação de projetos de colonização agrícola, o desenvolvimento da agropecuária e da infraestrutura para levar a floresta à modernidade. O lema, como já mencionei aqui, era “Integrar para não Entregar”.
Em 1971, o governo da Ditadura Militar começou a construir a BR-163, que corta o Brasil longitudinalmente, e o trecho Cuiabá-Santarém, com 1764 quilômetros, que serve para escoar a produção de grãos do Mato Grosso para o porto de Miritituba, no Pará. O norte do Mato Grosso recebeu, então, milhares de colonos do sul e sudeste do Brasil para compor os programas de assentamentos, fato que deu início a uma expansão do agronegócio em direção à floresta amazônica. A construção do trecho da rodovia no Pará provocou o desmatamento e a ocupação das suas margens no formato chamado “espinha de peixe”, que se estendeu até o rio Tapajós. Com isso se deu a degradação da região, alimentada pela retirada de madeira ilegal e pelos incêndios criminosos para abertura de pastagens.
O trecho da BR-163 em MT está duplicado até a divisa com o Pará e a partir daí a rodovia está pavimentada. Já foi aprovado o projeto para sua duplicação, mesmo que a Ferrogrão venha a ser construída, mas a rodovia não perderá o seu status de servir aos desmatadores e de impulsionar o agronegócio para o interior da floresta. Nos estudos do projeto da ferrovia não foram sequer considerados os impactos sinérgicos e cumulativos associados à BR-163 que rasgou a floresta, atravessou terras indígenas, afetando toda a bacia hidrográfica do Tapajós.
Quero lembrar que o governo Bolsonaro inaugurou, em 2020, a pavimentação do último trecho de 50 quilômetros da BR–163, próximo a Santarém, para facilitar as obras de construção da Ferrogrão, que tem o traçado paralelo. Somemos a isso a questão cada vez mais séria da exploração mineral da região do Tapajós, que vai se intensificar com a construção da Ferrogrão.
IHU – Todo esse “pacote” de projetos e investimentos em infraestrutura vem sendo discutido na Justiça. Como está esse processo?
Telma Monteiro – Apesar das pressões políticas, o processo da Ferrogrão está parado. Quando o projeto foi enviado para o Tribunal de Contas da União – TCU, para análise, ainda não haviam sido concluídos os trâmites legais do licenciamento, em especial a Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos indígenas ao longo do traçado. O Ministério Público Federal – MPF, provocado por organizações da sociedade civil, remeteu ao TCU, em março de 2021, uma representação questionando as irregularidades do processo.
Para se ter uma ideia da má fé dos desenvolvedores, as apresentações públicas mencionam que não há sobreposição do traçado com Terras Indígenas ou Unidades de Conservação. No entanto, o documento do MPF ao TCU aponta violações de direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais por parte do Ministério de Infraestrutura e da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. Ainda menciona que o governo Bolsonaro, ao planejar a ferrovia, desconsiderou totalmente os impactos sobre os indígenas em franca violação à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT e à Constituição Federal. E tem mais, na Audiência Pública nº 14/2017, a ANTT assinou um documento se comprometendo a promover a consulta aos povos indígenas antes que o processo fosse remetido ao TCU, para análise e parecer. Mas a consulta nunca aconteceu.
Os procuradores que assinam a representação ressaltam o direito dos indígenas de serem informados e consultados sobre seu consentimento ainda na fase de planejamento do projeto. Para se ter uma ideia do que significa construir a Ferrogrão, basta mencionar que o MPF aponta impactos em 48 territórios de povos indígenas. O governo brasileiro recebeu oito pedidos de associações indígenas para a realização de consultas e ainda duas recomendações do MPF no mesmo sentido. Não foram atendidos.
O MPF aponta ainda potenciais impactos no conjunto de terras do povo Munduruku das regiões do médio e alto Tapajós, nas terras dos povos Panará, Kayapó e Kayapó Mekragnotire, no sudoeste do Pará, e sobre seis terras indígenas no Mato Grosso, incluindo áreas de povos isolados e o Parque Indígena do Xingu. Até o momento, os procedimentos para consulta, obedecendo os protocolos de cada povo indígena, ainda não foram iniciados.
Fora essa representação do MPF que está sendo analisada no TCU, existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e que resultou na liminar que paralisou o processo de licenciamento. A ação, que será julgada em plenário, é respaldada na inconstitucionalidade da desafetação do traçado da Ferrogrão dentro do Parque Nacional do Jamanxim (PARNA).
IHU – Como esse projeto, o Ferrogrão Roadshow 2021 do ministro Tarcísio Gomes de Freitas atualiza a história de exploração na Amazônia? Que questões de fundo seguem sustentando ações como essas?
Telma Monteiro – A exploração da Amazônia, no meu entender, ainda é uma história sem fim. À medida que a tecnologia evoluiu ao longo dos últimos séculos, e especialmente agora, as riquezas da Amazônia satisfazem as necessidades cada vez mais complexas do consumismo e da economia mundial. Mesmo com a atual consciência que se disseminou sobre a importância da preservação ambiental para a manutenção do clima do planeta, não há como negar a ambição de empresas na exploração dos recursos naturais e principalmente das reservas de água subterrânea. Um estudo publicado pelo coordenador de sustentabilidade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea no Brasil, José Aroudo Mota, demonstra que os recursos naturais da Amazônia valem dois quatrilhões de dólares.
A Amazônia sempre foi e será objeto de cobiça, não só por sua rica biodiversidade e riquezas minerais, mas principalmente pela imensa reserva de água. Os povos indígenas são os guardiões de toda essa riqueza e para mantê-la intacta é necessário preservar a floresta e manter as terras indígenas fora do alcance da ação de predadores na pele de grandes investidores e empresas nacionais e internacionais.
Eu batizei a Ferrogrão de “cereja do bolo” de um conjunto de projetos de infraestrutura ofertado desde Nova Iorque, passando pelas principais capitais da Europa e depois pelos Emirados Árabes. Dá para se ter uma ideia da importância dessa ferrovia para viabilizar a logística de exploração mineral, de exportação de madeiras nobres, e até de água, uma riqueza sem precedentes na Amazônia.
A Ferrogrão não estará sozinha nessa composição, ela é apenas o fio condutor, pois junto com ela e a BR-163, outros ramais de estrada de ferro estão previstos para interligar rodovias do norte do Mato Grosso no sentido oeste/leste, passando por Rondônia em direção à hidrovia do Madeira até o rio Amazonas. Todos os governos brasileiros, ao longo da história, não deixaram de pensar em formas de exploração dos recursos naturais da Amazônia, acreditando que com isso transformariam o Brasil na maior potência econômica do mundo.
E por falar em riqueza, quero dar um exemplo atual e triste. Entre 2019 e 2020 foram extraídas 30,4 toneladas de ouro na Amazônia, das quais, 17,7 toneladas - ou 58,4% - saíram do Estado do Pará. Dali foram viabilizadas 5,4 toneladas de ouro ilegal, sob falsa indicação de origem, ou seja, se descobriu que viriam de fora do local de lavra, de floresta intacta ou de local sem título de lavra. Mais ainda, 18% desse ouro ilegal no Pará tiveram origem na Terra Indígena Munduruku e Kayapó, na Bacia do Tapajós. Jacareacanga já tem o maior número de conflitos violentos no Pará.
Isso, sem a Ferrogrão. É dessa forma que o atual governo federal de Bolsonaro não poupa esforços e estratégias, como o Roadshow internacional, para ofertar projetos de infraestrutura, modal hidroviário, rodoviário ou ferroviário que facilitariam o acesso à exploração da Amazônia por empresas de capital privado especulativo. Essas riquezas como ouro, reservas de petróleo, ferro, alumínio, que podem beirar os US$ 20 trilhões, são objeto de cobiça da comunidade econômica internacional, das grandes potências e das multinacionais brasileiras. Essa exploração moderna da Amazônia é potencializada perigosamente, hoje, pelo aumento de compra de terras por estrangeiros, segundo o estudo do Ipea.
IHU – E nessa história de expropriação e destruição da região amazônica, quais os maiores projetos que, em nome de uma ideia de desenvolvimento, foram cruciais para grandes devastações?
Telma Monteiro – No meu último trabalho para uma organização suíça, fiz um resumo sobre como se iniciou a exploração da Amazônia desde que Cristóvão Colombo esteve pela segunda vez na América, entre 1493 e 1495, quando teve contato com a borracha e levou a notícia para a Europa. Foi o “start” para o primeiro ciclo de exploração da Amazônia, a partir de 1743, e depois, com o desenvolvimento do processo de vulcanização da borracha, no início do século XIX.
O primeiro ciclo da borracha se deu de 1879 a 1912. Depois, com a necessidade de exportação da borracha, era preciso escoar a produção para fora da floresta, então, em 1907 começou a construção da ferrovia Madeira–Mamoré para integrar o território ao resto do mundo, aproveitando o sucesso da borracha e a sua comercialização no mercado mundial.
Outra obra de infraestrutura que tinha o objetivo de, novamente, promover a ocupação do território e integrar a região Amazônica ao resto do Brasil, se deu durante o ciclo integracionista nos anos 1960. O chamado “vazio demográfico” foi a bola da vez, e a prioridade do governo da ditadura militar passou a ser a construção de rodovias, implantação de projetos de colonização agrícola, desenvolvimento da agropecuária e da infraestrutura para ocupar a floresta e levá-la à modernidade. O famoso “Integrar para não Entregar”.
Daí a ideia de construir a rodovia Transamazônica, que acelerou a ocupação da Amazônia entre 1970 e 1991, que pulou de 4 milhões de pessoas para 10 milhões, além de promover a expansão agropecuária e o aumento do PIB na região. Mesmo assim, segundo o IPAM do ano 2000, esse crescimento não resultou em índices melhores de analfabetismo ou renda popular. Faltam dados que demonstrem os impactos negativos para os povos indígenas, populações tradicionais e para a biodiversidade. Mas não há dúvidas com relação aos danos causados na Amazônia pela implantação da Transamazônica e depois, nos anos 1970, pela BR–163, Cuiabá-Santarém e pela Belém-Brasília.
Nessa esteira, a migração para o Pará, em especial na bacia hidrográfica do Tapajós, acabou por propiciar o ambiente ideal para a exploração dos recursos naturais e a corrosão crescente de todo o território. É impossível entender a história completa da exploração da Amazônia sem mencionar os impactos ambientais e sociais impostos pelo delírio integracionista da ditadura militar brasileira no período de 1964 até 1985.
IHU – Enquanto isso, em outra frente, o atual governo segue adiante com o Novo Código da Mineração. Qual sua análise acerca de mais essa proposta do governo Bolsonaro?
Telma Monteiro – Não tenho dúvidas que tanto o Novo Código da Mineração como a Ferrogrão estão umbilicalmente ligados. O Novo Código da Mineração, que está tramitando no Congresso, pretende, na verdade, que os interesses comerciais minerários se sobreponham aos direitos das comunidades tradicionais e às leis ambientais. Com isso, o Estado, cujo papel principal seria o de regular a atividade, passa a transferir essa atribuição para as empresas e investidores. Esses são os agravantes que põem em xeque a legitimidade do Novo Código, uma vez que o Estado praticamente sai de campo para que o poluidor pagador tome as decisões sem oposição dos órgãos regulatórios do setor.
Os interesses estão muito claros e se levarmos em conta o que está em jogo; fica clara a intenção de facilitar as regras para acesso a concessões de processos minerários. É preciso não esquecer que estamos lidando com uma riqueza infinita e que a maior província mineral do mundo, a Província Mineral do Tapajós, está localizada exatamente na região que será atravessada pela Ferrogrão. Já pesquisei e escrevi muito sobre esse tema e a Província Mineral do Tapajós – PMT e cada vez mais tenho certeza de que a Ferrogrão não tem esse traçado por mera coincidência. A PMT tem 100 mil quilômetros quadrados e é onde se encontra, também, o maior distrito aurífero do mundo.
Estudos indicam que podem ser retirados dali cerca de 1000 toneladas de ouro. Os indícios são gritantes: há presença de garimpos na região e 300 pistas de pouso até o rio Tapajós. A logística é clara e basta juntar as peças do quebra-cabeças para entender que há mais interesses por trás da construção da Ferrogrão do querem nos fazer crer. O governo Bolsonaro nunca escondeu sua determinação (na campanha ele assumiu esse compromisso) de facilitar a mineração, inclusive em terras indígenas. No Departamento Nacional de Produção Minerária – DNPM tramitam 17.408 processos minerários em análise, a caminho da exploração.
Para se ter uma ideia da importância da mineração para o governo brasileiro, a Prospectors & Developers Association of Canada (PDAC) realizou no Canadá três eventos de ofertas de áreas para mineração, em 2019, 2020 e 2021, em que o Brasil foi a “joia da coroa”. Oportunidade que o governo brasileiro aproveitou para convidar empresas multinacionais a investir em mineração, inclusive em terras indígenas, e nesse pacote foram disponibilizados financiamentos públicos para atrair grandes mineradoras. Mais ainda, foram ofertados 35 mil áreas e oito blocos para pesquisa mineral e, inclusive, áreas da província mineral do Tapajós. Mato Grosso e sul do Pará fizeram parte do cardápio com ofertas para os investidores de áreas na província mineral de Alta Floresta, na região dos rios Juruena e Teles Pires, rica em ouro, cobre, chumbo e zinco.
Observemos, ao mesmo tempo, que a bacia do Tapajós tem a maior área de mineração ilegal do Brasil, com 4.700 pontos de garimpo (imagens de satélite), 3,8 milhões de hectares de Unidades de Conservação e 2,4 milhões de hectares de Terras Indígenas ameaçadas pela mineração de ouro, com presença de mercúrio e exposição crônica dos indígenas Munduruku. Está em andamento um modelo de revisão regulatória e legal da indústria mineral brasileira. A Agência Nacional de Mineração – ANM pretende com isso reduzir a burocracia.
Além disso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES está criando mecanismos de suporte financeiro aos projetos de mineração. Nunca é demais repetir que, claramente, o Novo Código Nacional de Mineração tem a assinatura do governo Bolsonaro para ampliar o acesso aos recursos minerais em áreas atualmente restritivas à mineração, principalmente em terras indígenas. Este eu considero o pior dos mundos.
Para concluir, devo acrescentar que no PDAC 2021 foram realizados diariamente leilões de 5 mil áreas públicas de interesse para a mineração em cada edital e 35 mil áreas deverão ser integralmente ofertadas ao mercado até o primeiro semestre de 2022. Não esqueçamos que, em 2021, entrou em pauta, para aprovação, o projeto de desregulamentação e flexibilização da legislação ambiental brasileira.
IHU – Que outros projetos de desenvolvimento e infraestrutura, mas que se convertem em projetos de destruição, estão em curso?
Telma Monteiro – Tenho que mencionar a privatização da Eletrobras e seus desdobramentos para a Amazônia. A aprovação da MP da “privatização” da Eletrobras se deu em apenas 24 horas (lei 14.182/2021). O modelo adotado, fora do padrão que assistimos em outras privatizações, foi o de venda de ações na Bolsa de Valores, chamada de capitalização, que deve render aos cofres cerca de R$ 100 bi. O governo brasileiro tem 60% das ações, ficará com 45% e, apesar de não ser majoritário, terá o poder de veto, o que é chamado de “Golden Share”.
Neste momento, 63% da geração de energia elétrica no Brasil se dá por hidroeletricidade. No entanto, estamos vivendo uma grande alteração no regime de chuvas com a maior seca dos últimos 90 anos, o que criou uma condição para que os reservatórios das usinas ficassem excepcionalmente baixos e comprometessem a geração. Não podemos esquecer a saga da construção de hidrelétricas nos rios amazônicos e os impactos que criaram. O projeto de privatização da Eletrobras, já aprovado no Congresso, obriga a geração de 8 GW de energia de termelétricas ao longo de 15 anos, dos quais 2 GW sairão do Norte do Brasil com a exploração de reservas de gás natural na Amazônia. Mais uma vez a Amazônia vai ficar com o ônus.
Contas feitas, isso equivale a um acréscimo de 25% de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE); o projeto de privatização prevê, ainda, a contratação obrigatória de construção de Pequenas Centrais Hidrelétrica – PCH para gerar 2 mil MW em regiões ambientais sensíveis, também na Amazônia, satisfazendo um interesse da empresa Brasil PCH. O projeto de privatização é tão inusitado que ainda deverá ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Alguns detalhes dessa privatização realmente chamam a nossa atenção, como o fato de que a exploração de gás natural para abastecer as termelétricas requerem a construção de gasodutos e, em se tratando da Amazônia, pode-se imaginar os impactos que não estão sendo considerados.
Há que se mencionar, também, que energia de termelétricas é mais cara, e é preciso descobrir quem levará vantagens nesse modelo obsoleto. Não há dúvidas que empresas e investidores, políticos e parlamentares estão interessados na construção de gasodutos, linhas de transmissão e exploração de gás natural na Amazônia. Apenas um parágrafo da MP da privatização, aprovado em prazo recorde no Congresso, tem três páginas de “jabutis” (penduricalhos para satisfazer interesses políticos) onde estão listadas as obrigações da Eletrobras pós privatização, a um custo estimado de R$ 400 bilhões para os consumidores.
Exigir a construção de termelétricas que produzem energia suja e ainda na Amazônia é, em tempos de redução das emissões de GEE e às vésperas da COP26, no mínimo mais uma aberração do governo Bolsonaro. Os governos anteriores priorizaram as grandes hidrelétricas e deixaram de investir em energias limpas como solar e eólica, e agora este governo se aproveita das mudanças climáticas para priorizar a energia suja e cara das termelétricas.
IHU – Que caminhos podemos conceber, desde já, para frear e reverter esse estado de destruição ambiental e degradação social que temos vivido no Brasil?
Telma Monteiro – Antes será preciso expurgar o governo Bolsonaro. Extirpar esse câncer que tem corroído a sociedade brasileira e minado a Democracia. O retrocesso que vivemos nesses últimos três anos deve ter servido de lição para muitos brasileiros que se deixaram levar pelo canto da sereia de um governo fascista. A “boiada” já está passando, como sugeriu o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e isso, por incrível que pareça, não está visível para a população.
O novo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Álvaro Pereira Leite, que por mais de 20 anos foi conselheiro da Sociedade Rural Brasileira, representante do setor do agronegócio, que apoia a frente Parlamentar Agropecuária da bancada ruralista, está dando continuidade ao trabalho do seu antecessor na calada da noite. Enquanto estamos preocupados com a pandemia, com vacinas, com a corrupção do Ministério da Saúde, infelizmente, muita coisa está acontecendo sem que os brasileiros tenham ideia do impacto que isso gerará nas suas vidas num futuro próximo. O Brasil está sendo rifado no exterior, e desta vez, voltando a uma de suas perguntas, somos nós que estamos oferecendo o país para a exploração. Sim, esse é um novo ciclo de exploração, principalmente da Amazônia.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Telma Monteiro – Sim. Ainda sem a Ferrogrão, foram contabilizados, segundo levantamento recente, 2.576 focos de garimpo ilegal que atingem 17% das áreas protegidas e 10% das terras indígenas. A mineração ilegal de ouro movimenta até R$ 28 bilhões por ano e a contribuição do garimpo para as taxas de desmatamento em territórios indígenas aumentou de 4%, em 2017, para 23% em junho de 2020 segundo o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter) INPE.
Apenas para complementar, o governo federal prometeu disponibilizar R$2,2 bilhões de recursos federais para a futura concessionária da Ferrogrão para garantia de “riscos não gerenciáveis” atribuídos ao poder público.