25 Fevereiro 2023
A reportagem é de Elizabeth Oliveira, publicada por Mongabay, 21-02-2023.
Pressionadas pela retomada da construção da controversa ferrovia EF-170, a Ferrogrão, lideranças de povos indígenas diretamente afetados por essa obra de infraestrutura na Amazônia exigem serem consultadas. Também afirmam que vão lutar por reparação pelos impactos que já são sentidos nos territórios, muito antes de o projeto sair do papel.
Com um traçado planejado de 933 quilômetros entre Sinop, no Mato Grosso, e Miritituba, no Pará, região estratégica para o escoamento de commodities do agronegócio, fortemente pressionada pelo desmatamento, a Ferrogrão foi mencionada como obra prioritária no portfólio que o Ministério dos Transportes apresentou à imprensa, em 18 de janeiro.
Durante a coletiva, o ministro Renan Filho mencionou o objetivo de ampliar o modal ferroviário na matriz de transportes do país para 40% até 2035 — a representatividade atual é de menos de 20%. Também adiantou à imprensa que pretende mudar o marco regulatório das ferrovias e conversar com a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, “para destravar” o projeto da Ferrogrão.
Mas os debates sobre os impactos econômicos positivos que a Ferrogão poderia agregar à logística regional reacendem alertas sobre os riscos socioambientais desse megaprojeto, principalmente nos territórios dos povos indígenas Kayapó, Munduruku e Panará. Nesse contexto, não se pode desconsiderar que o traçado da Ferrogrão corre paralelamente à BR-163. Essa rodovia que liga Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará, é outra obra de histórico controverso, sobretudo no trecho Cuiabá-Santarém.
Traçado proposto da Ferrogrão/EF-170, em amarelo. (Foto: Reprodução)
A ferrovia partirá ao meio diversas Terras Indígenas da bacia do Rio Xingu, causando altos danos socioambientais, segundo estudo de 2021 da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os autores sinalizam também impactos na bacia do Rio Tapajós, outra área fundamental para a proteção dos recursos hídricos, das florestas e das populações tradicionais da Amazônia.
Como existem outras obras propostas para a região, os impactos da Ferrogrão devem ser analisados de forma sinérgica, alertam os pesquisadores. Estão previstas as construções de um terminal de transbordo em Matupá (estrutura intermediária em Mato Grosso) e de uma ponte sobre o Rio Xingu, além do asfaltamento de trecho da rodovia MT-322, que passa rente à divisa norte do Parque Indígena do Xingu.
O trânsito intenso de veículos carregados de soja nos arredores do parque “não apenas aumentará a pressão por conversão de florestas para agricultura” como deverá “acelerar a invasão e consequentemente o desmatamento nas Terras Indígenas da região”, afirma o estudo.
“Caso seja também implantado o terminal de transbordo de Matupá, perdas econômicas advindas de emissões de CO2 pelo desmatamento se situariam no patamar de US$ 1 bilhão (US$ 10/ton CO2) somente para as Terras Indígenas”, advertem os especialistas. O estudo estipula uma perda de mais de 230 mil hectares em TIs do Mato Grosso até 2035 associados à construção da ferrovia. Mais da metade somente no Parque Indígena do Xingu.
“Soma-se a isso a redução do volume anual de chuvas que em algumas regiões já atingiu uma diminuição de 48%, acarretando em redução de produtividade agrícola e geração de energia de Belo Monte, que pode cair a 25% do máximo da capacidade, e mais uma perda incalculável de serviços ambientais e da rica sociobiodiversidade da região”, acrescentam.
Como a implementação do terminal de Matupá tem o potencial de desencadear a divisão de blocos contíguos de florestas conservadas do Parque Indígena do Xingu e da Terra Indígena Capoto Jarina, os pesquisadores advertem que, “qualquer análise de impacto ambiental da Ferrogrão deve considerar toda a zona de influência do empreendimento, e não apenas os 10 km de cada lado da linha”.
Os alertas complementam outro estudo da UFMG, de 2020, que já chamava a atenção para os riscos socioambientais envolvidos nessa infraestrutura ferroviária e reiterava a necessidade de respeito aos direitos de consulta dos povos indígenas.
Kokoba Mekrãgnotire, cacica da aldeia Mekrãgnoti Velho, durante o protesto que bloqueou a BR-163 em agosto de 2020. (Foto: Reprodução | Instituto Kabu)o
Em conversa com a Mongabay, ainda em cenário de encerramento do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, Doto Takak-Ire, líder indígena Kayapó Mekrãgnoti e Relações Públicas do Instituto Kabu, ressaltou que uma das marcas desse processo da Ferrogrão tem sido a falta de diálogo da gestão pública com os povos indígenas.
“A gente não é contra o desenvolvimento. Só que o governo tem que cumprir a lei”, observa. A reafirmativa de luta das lideranças indígenas foi expressa em audiência realizada em dezembro, na Câmara dos Deputados. “Conforme eu tinha falado na audiência, caso os ministros do Supremo julguem pelo encaminhamento do processo da Ferrogrão, a gente vai lutar. A gente vai ter que criar uma aldeia no traçado do trem. Aí eu quero ver se eles vão passar por cima da gente”, alerta.
Ele acrescenta que as articulações têm focado na exigência do direito de consulta, assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, em casos de territórios tradicionais afetados por obras como as da Ferrogrão.
Ao resgatar o contexto conturbado desse projeto, desde 2017, Takak-Ire relata que audiências públicas chegaram inclusive a ser suspensas pelos povos indígenas que não foram consultados antes da realização dos eventos. Relembra, ainda, o compromisso que Alexandre Porto, presidente da audiência pública realizada em Brasília em dezembro de 2017, confirmando às lideranças indígenas Kayapó das Terras Indígenas Baú e Mekrãgnoti, que haveria consulta prévia, como determina a Convenção 169. “Mas isso ainda não aconteceu”, afirma.
Em junho daquele mesmo ano, lideranças Kayapó haviam enviado uma carta ao Ministério dos Transportes chamando a atenção para os direitos indígenas assegurados por esse marco internacional, não cumpridos até então.
Doto Takak-Ire, líder indígena Kayapó Mekrãgnoti. (Foto: Raissa Azeredo | Instituto Kabu)
O padre e ativista José Boeing, membro do Núcleo de Direitos Humanos e Incidência da Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil), alerta que, no caso do trecho Cuiabá-Santarém da BR-163, prevaleceram os interesses de grandes grupos econômicos, em detrimento das vozes dos povos e comunidades tradicionais que foram impactados. Não houve reparação aos danos causados aos seus territórios e modos de vida.
Como advogado, missionário e representante da Rede na Campanha de Autoproteção de Comunidades e Lideranças Ameaçadas A Vida por Um Fio, além de atuante no acompanhamento de inúmeras violações de direitos humanos nessa região, o religioso teme que os erros sejam repetidos no caso da Ferrogrão, “já que tem prevalecido a visão economicista no debate sobre a ferrovia, apesar da forte resistência dos povos indígenas”.
Boeing defende que a Amazônia precisa de outro modelo de desenvolvimento que considere a natureza e a cultura de seus povos como elementos capazes de gerar progresso socioeconômico no longo prazo. “Essa ferrovia vai formar um corredor de exportação que só trará benefícios para o agronegócio. E o agronegócio não é sustentável”, conclui.
O advogado do Instituto Kabu, Melillo Dinis do Nascimento, também representante de outras organizações no caso da Ferrogrão, afirma que nessa nova proposta de infraestrutura “não se pode repetir a tragédia que foi a BR-163”. Ele opina que o projeto da ferrovia “não se sustenta em pé nem do ponto de vista econômico e nem da engenharia porque se insere em Terras Indígenas”.
“No Instituto Kabu, defendemos que a lei seja cumprida. Não podemos concordar com mais esse equívoco na Amazônia para atender aos interesses dos produtores de commodities”, observa.
Representantes do povo Kayapó durante protesto em agosto de 2020; na ocasião, os indígenas fecharam a BR-163 exigindo direito de consulta na concessão da Ferrogrão. (Foto: Fernando Sousa | Instituto Kabu)
Em março de 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, deferiu medida cautelar da Ação Direta de Inconsticionalidade (ADI 6553) interposta pelo Psol, suspendendo, assim, os efeitos da Lei 13.452/2017 que propôs a retirada de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, (municípios de Itaituba e Trairão, no Pará), para permitir a passagem da Ferrogrão.
Desde então, todas as ações que envolvem a proposta da ferrovia estão paralisadas, até que o processo seja julgado no plenário da Corte. Marcado para 31 de maio, o referendo poderá destravar ações judiciais em curso.
Moraes acatou os argumentos da ADI de que os limites do Parque não poderiam ter sido alterados por uma lei originada do projeto de conversão da Medida Provisória (MP) 758/2016 que gerou muita controvérsia na gestão do ex-presidente Michel Temer.
“Fomos até o STF porque esgotamos a capacidade de diálogo. E estamos confiantes em relação à votação porque o STF tem demonstrado ser um profundo defensor dos direitos indígenas”, conclui o advogado Melillo Dinis do Nascimento.
Reunião do povo indígena Kayapó na Aldeia Kubenkokre, na Terra Indígena Menkrãgnoti, no Pará. (Foto: Reprodução | Instituto Kabu)
O Ministério Público Federal (MPF) informou que duas ações foram ajuizadas no Pará, com expedição de recomendações e notas técnicas sobre o projeto da Ferrogão. Em ambas, a Justiça já proferiu decisões favoráveis para “paralisar a concessão da ferrovia por insuficiência de estudos socioambientais e que a Ferrogrão só pode ser discutida se os protocolos indígenas de consulta forem respeitados.”
A União recorreu contra essas decisões judiciais e os processos aguardam sentença. “Um deles está suspenso até que o STF publique decisão final no processo relativo à ADI 6553”, informou o órgão do Pará.
Segundo o MPF, “o Governo Federal vem descumprindo a Constituição e uma série de leis, normas e tratados”. Além disso, “a desconsideração do direito de indígenas a consulta e consentimento livre, prévio e informado desde a fase inicial de planejamento provoca subdimensionamento dos custos do projeto”.
O MPF destaca que “relatórios publicados pela própria Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em 2020 apontam que a Ferrogrão, se implementada, atingirá 48 Terras Indígenas e outras Unidades de Conservação, gerando uma série de impactos sinérgicos e cumulativos sobre a biodiversidade e as populações locais”.
Por fim, o comunicado à reportagem informa que “a ANTT prometeu aos indígenas respeitar o direito das etnias à consulta e consentimento livre, prévio e informado, no entanto, nem a primeira consulta foi feita”.
Por intermédio da sua Coordenação de Comunicação, a ANTT afirmou à Mongabay que “o processo [da Ferrogrão] passou por ampla participação social, com diversas sessões presenciais”. E assegurou que “o processo de participação social específico dos indígenas será realizado na fase do licenciamento ambiental”.
Pelo processo de participação social, foi informado pela Agência que foram gerados subsídios e ajustes no projeto da ferrovia, estando os documentos relacionados às audiências públicas realizadas em Cuiabá, Belém, Sinop e Brasília disponíveis online. “Em seguida, o Plano de Outorga foi aprovado pelo Ministério da Infraestrutura e enviado para análise do TCU em 10 de julho de 2020”.
Embora a referida consulta aos povos indígenas, com base nas diretrizes da Convenção 169 da OIT, esteja prevista, “será necessário aguardar a regularização do processo junto ao STF, para a posterior retomada do processo de licenciamento junto ao Ibama, para a continuidade do Estudo de Impacto Ambiental do Componente Indígena, onde o rito estabelecido pela Funai e Ibama deverão ser seguidos”, afirma a ANTT.
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Ferrogrão: indígenas exigem consulta antes que nova ferrovia da soja saia do papel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU