06 Novembro 2024
Modos de existir: Más allá de la inteligencia humana (Galaxia Gutenberg, 2024) analisa as diferentes inteligências não humanas e a forma como se relacionam com a humana (e a artificial). Seu autor, James Bridle (1980), atua entre a biologia e a tecnologia para investigar a comunicação entre espécies baseada na solidariedade. Esta diversidade cognitiva pode ser determinante na busca de soluções para a emergência climática.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ethic, 05-11-2024. A tradução é do Cepat.
Começa o ensaio falando sobre o desastre ambiental que a possibilidade da existência de petróleo em Épiro provocará. O que aconteceu para os humanos antepor a riqueza a seu futuro?
Essa é uma questão bastante importante, mas seria necessário primeiro perguntar de quais humanos estamos falando e sobre o futuro de quem. A maioria das pessoas está consciente de que estamos nas primeiras etapas de uma catástrofe massivamente imparável, mas algumas pessoas apostam em superá-la, acumulando agora uma riqueza enorme. Essa decisão, facilitada pelo sistema político global dominante e pelos mercados financeiros, condena todos nós a um futuro aterrador, que na trajetória atual inclui o fim da civilização tal como a conhecemos dentro de gerações vivas.
Estamos ultrapassando os limites planetários e é importante ter muita clareza sobre o que está acontecendo, para onde vamos e quem, no momento presente, está impulsionando e se beneficiando disso. Nos últimos séculos, a maioria que vive no Ocidente se separou do solo sobre o qual nos encontramos. Não estamos mais intimamente ligados à biosfera que nos sustenta, nem às cosmologias que tornaram essa ligação significativa. O resultado é a extração em massa de combustíveis fósseis e outros materiais, a destruição de florestas e terras silvestres, a poluição da terra, dos oceanos e da atmosfera…
O legado atual do imperialismo, do colonialismo e das violentas guerras por recursos também são a causa e o efeito dessa separação. Isto, unido a algumas outras questões, deixou-nos em grande parte incapazes de imaginar um mundo em que todos sobrevivamos e floresçamos juntos.
Aristóteles tinha razão, finalmente, quando afirmou que o animal e a planta têm “alma”?
Você pode usar a linguagem que quiser: alma, espírito ou campo de energia quântica que subjaz a tudo, mas sim. Tudo se move, tudo está vivo, tudo está ocupado e ativo e formando mundos juntos. Ao mesmo tempo, todos fazemos parte de um todo maior. Como disse Alan Watts: “Nós não “viemos” a este mundo; saímos dele, como as folhas de uma árvore. Assim como o oceano “cobre”, o universo “povoa””.
Não há separação, por isso não há ser que possa ter uma “alma”, se outro não a tiver. O que importa para a criação do mundo é como nós, encarnados do modo como estamos nesta porção de nosso ser infinito, percebemos e nos relacionamos com outros seres.
O que deveria caracterizar o “pensamento ecológico”?
Ao longo do século XX, quase todas as disciplinas científicas e filosóficas descobriram a ecologia, que é a ideia de que tudo está inter-relacionado, de que é impossível estudar qualquer fenômeno de forma isolada, porque impacta e é impactado por tudo o que o rodeia. Isto se aplica tanto à física quanto à biologia, à descoberta do mundo quântico, à economia e à sociologia. Claro, é o ensino da maioria das religiões não monoteístas. Tudo está material e significativamente ligado a todo o resto, o que faz com que, em última instância, seja impossível pensar e conceber binários e limites.
Somos humanos, mas nem sequer “indivíduos”. Somos compostos por conjuntos heterogêneos de outros organismos. Menos da metade de nossas células são humanas, o restante são microrganismos não humanos, e estamos em constante troca. Elementos de nosso “eu” se misturam com outros de nosso entorno, do ar que respiramos às coisas que tocamos, comemos, bebemos e percebemos. Somos ecológicos. O “pensamento ecológico” é reconhecer e começar a agir sobre esta realidade.
Como espécie, o que deveríamos aprender da inteligência não humana?
Temos muito a aprender de outros não humanos, mas a primeira coisa que podemos perceber é que existem muitas maneiras de “fazer” inteligência, que a inteligência em si não é um substantivo, mas um verbo. É ativa, infinitamente variável e relacional, ou seja, é algo que fazemos com os outros. A inteligência surge das relações, de nossas interações com outros seres e a totalidade de nossos mundos, daquilo que todos fazemos de forma diferente, incluindo os não humanos.
Tudo vem evoluindo ao longo do mesmo período de tempo, por isso não existe inteligência superior ou inferior, apenas diferentes formas de estar no mundo. Contudo, alguns usos da inteligência são mais destrutivos ou criativos quando se trata de florescimento mútuo. Essas formas destrutivas de inteligência são o que eu chamaria de estupidez, não menos inteligentes, mas opostas à cooperação e a regeneração, e as formas de vida que as colocam em prática tendem a não sobreviver por muito tempo.
Você afirma que uma das chaves para a inteligência não humana é a “relevância ecológica”. Pode explicar um pouco mais este conceito?
“Relevância ecológica” é um termo científico para avaliar as motivações e o comportamento dos organismos. Não é necessariamente um marcador de inteligência, mas é uma das formas como podemos reconhecê-la em não humanos, cujas formas de vida e encarnações são muito diferentes das nossas. Por muito tempo, algumas pessoas acreditaram que as plantas gostam que conversem com elas e de ouvir música. Talvez sim, mas isso não é ecologicamente relevante, da forma como a entendemos. No entanto, as plantas ouvem e respondem aos sons dos insetos mastigadores, por exemplo, inundando as suas folhas com defesas químicas contra os seus atacantes.
Isto é ecologicamente relevante, porque pertence ao seu ambiente e à sua sobrevivência, e também é algo que podemos reconhecer, medir e nos maravilhar, mesmo que ainda não compreendamos como se dá ou que não ignoremos outras coisas inteligentes que fazem. Então, a relevância ecológica nos permite validar cientificamente alguns aspectos da inteligência não humana, mas o método científico também não é a única ferramenta que temos para nos aproximar e nos relacionar com os seres não humanos.
Até que ponto é possível estabelecer um “diálogo” entre as diferentes inteligências?
É possível. Nós nos comunicamos interativamente com inteligências não humanas todos os dias, desde brincar com um animal de estimação até andar a cavalo, monitorar o comportamento dos animais da fazenda para alertar sobre terremotos (conforme demonstrado pela equipe de Martin Wikelski, na Itália) e empregar a tecnologia refinada de grão fino com aparelhos sensoriais colocados em mexilhões para detectar impurezas na água potável (como se faz na Estação de Tratamento de Água de Dębiec, em Poznań, Polônia). Também ao comer certos tipos de plantas e cogumelos psicoativos ou ao nos sentar debaixo de uma árvore. O mundo pede a gritos que escutemos o tempo todo, só corresponde a nós escutar e responder.
Podemos dizer que o uso da tecnologia cria ideologia?
Não é tão simples, mas as tecnologias codificam a ideologia de seus criadores. No nível mais simples, como diz o velho ditado, quando você tem um martelo, tudo parece um prego. Quando se constrói um sistema global para organizar informação que depende da coleta de dados sobre os seus usuários para sobreviver, então, o tipo de informação a ser organizada e a forma de ser estruturada perpetuarão uma ideologia da vigilância constante e de desigualdade de poder, que por sua vez manifesta essa sensibilidade em seus usuários.
Durante as últimas centenas de anos, a tecnologia do método científico promoveu uma ideologia da compreensão, uma epistemologia particular, que vê o mundo como essencialmente mecanicista, sem alma e desencantado. Isto torna muitos dos aspectos mais importantes do mundo, sua totalidade e vitalidade essenciais, incognoscíveis. É muito útil, mas não deixa de ser uma ideologia e apenas uma forma de conhecer o universo.
Como saber se a inteligência (seja de qual ordem for) está sendo usada de forma ética e correta?
A ética não é um exame, nem a pontuação de uma prova, mas um conjunto de princípios que escolhemos em função do que acreditamos ser a ação correta no mundo. A ética é construída individual e socialmente. Sob o sistema capitalista atual, pode ser perfeitamente ético vender os dados pessoais dos clientes aos anunciantes ou envenenar a terra de que todos dependemos, caso isso aumente o valor para os acionistas. Quando se pensa que talvez o valor para os acionistas não é o objetivo final, que talvez os direitos civis, as boas relações entre cidadãos e governos e o florescimento mútuo de todos os seres que habitam o planeta são mais importantes, então, a sua ética pode variar de maneira considerável.
Não podemos saber o que é correto e é pouco provável que todos concordemos sobre isso, mas podemos decidir o que acreditamos ser importante, prestar atenção em onde reside o poder e como é usado, e agir se assim decidirmos. Resistir, renunciar e redistribuir formas de poder que criam desigualdades de todos os tipos.
Quando nos referirmos à inteligência artificial, podemos ver que atua no mundo de diferentes formas, algumas delas benéficas, como no recente prêmio Nobel aos criadores do AlphaFold, e outras de formas violentamente imorais, como a fabricação de sistemas de armas automatizadas, a apropriação em massa de obras criativas, a desvalorização da mão de obra e necessidades energéticas descomunais. O destino que escolhemos para esta inteligência é, a todo momento, uma decisão ética.
O que distingue as inteligências não humanas da IA?
Eu diria que a IA é inteligência não humana, embora seja sempre importante distinguir entre a ideia generalizada, influenciada pela ficção científica, de “inteligência artificial generativa” e o que temos agora, que são as estatísticas. A questão é que a IA é apenas um tipo de inteligência, o tipo de inteligência realizada pelas máquinas capitalistas, porque esse é o ecossistema em que cresceu, estando inclinada a uma determinada ideologia. A IA treinada com dados de jogos de xadrez, mercados financeiros e redes sociais sempre terá um certo sabor não completamente humano.
As inteligências não humanas também são capazes de guardar segredos e impedir o acesso humano, assim como faz a IA?
Absolutamente, e isso foi documentado muitas vezes. Minha história favorita é a de Ken Allen, um orangotango que vivia no Zoológico de San Diego. Quando os trabalhadores perdiam uma ferramenta em seu recinto, ele a escondia para poder usá-la mais tarde para desparafusar uma janela ou construir uma escada. Às vezes, também fingia não perceber que a tinham deixado para poder usá-la novamente mais tarde, sem ser observado. Muitos outros primatas em cativeiro demonstraram um comportamento semelhante e isso revela o que a ciência chama de “teoria da mente”, a compreensão de que se é um indivíduo pensante em um mundo de outros indivíduos pensantes, o que é um marcador de inteligência.
A teoria da mente é necessária para guardar segredos, mas impedir o acesso humano pode ser entendido de muitas outras maneiras, como o uso da camuflagem pelos cefalópodes. A maior parte da inteligência não humana é obscura para nós porque é tão diferente da forma como funcionamos que é difícil para nós vê-la. Tendemos a reconhecer a inteligência não humana apenas quando se parece à inteligência humana, por isso somos cegos às outras formas que adota. Por isso, é necessário um descentramento radical do humano para pensar e pensar com todas as outras inteligências que compõem o mundo.
De todas as inteligências não humanas que você reúne no ensaio, qual delas gosta mais e por quê?
Não conseguiria escolher uma favorita, embora parte de mim responda à mais obscura e incognoscível, como as habilidades matemáticas sobre-humanas dos fungos limosos ou os mundos sensoriais das flores, que ouvem o som das abelhas. A pesquisa de Barbara Smuts, que passou anos convivendo com babuínos no Grande Vale do Rift, observou comportamentos de amizade entre animais. Somos capazes de ter muito mais compreensão, empatia e assombro do que comumente reconhecemos, e o mundo é muito mais animado e interessante do que fomos educados a acreditar.
Você provém do mundo das ciências e das humanidades. O que cada uma delas pode contribuir para o desafio climático?
Venho dos dois mundos, tenho formação acadêmica em Ciência da Computação e uma carreira em literatura e artes visuais. Não existe uma separação clara entre ciências e humanidades. Nenhuma delas é suficiente por si só, mas a capacidade da arte de imaginar as coisas de maneira diferente é um imperativo radicalmente diferente da exigência da ciência por “verdades” dedutíveis e reproduzíveis.
Ambas caminham juntas. Os cientistas se inspiram nos sonhos e nas fábulas, do mesmo modo que os artistas se inspiram nas revelações da ciência. A ciência pode nos dizer o que está mal no mundo e o que podemos fazer para melhorar a devastação, mas só a arte pode forjar o salto imaginativo para uma ação coletiva e significativa.
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“Nós nos comunicamos com inteligências não humanas todos os dias”. Entrevista com James Bridle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU