31 Outubro 2024
Samah Jabr é psiquiatra e psicoterapeuta palestina de Jerusalém Oriental e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde palestino desde 2016. É autora de Sumud em tempos de genocídio, traduzido e publicado no Brasil pela Editora Tabla (2024).
Em junho de 2024, Jabr esteve no Brasil em uma série de encontros com ativistas, jornalistas, profissionais da saúde mental e acadêmicos. Nessa entrevista, ela fala sobre os aspectos de saúde mental do genocídio em Gaza, sobre a violência e traumas psicológicos da ocupação colonial e sobre o papel da solidariedade global aos palestinos.
A entrevista é de Reginaldo Nasser e Isabela Agostinelli, publicada por ComCiência, 24-10-2024.
Você mencionou em outras ocasiões que na Palestina não há transtorno pós-traumático porque o trauma é contínuo. Com base na sua experiência, como é possível tratar esses traumas contínuos?
O trauma palestino é colonial, deliberado, repetitivo, cumulativo e transgeracional. Toda a ideia da ocupação da Palestina é matar o maior número possível de pessoas e impor desamparo às pessoas. E o que é melhor do que traumatizar as pessoas para impor desamparo? É uma estratégia. Estou testemunhando advocacy, a conscientização, ferramentas básicas que todos podem contribuir para usar, a fim de interromper esse trauma deliberado.
Agora, quanto ao que nós, profissionais de saúde mental, fazemos: eu sou clínica, mas também formuladora de políticas em saúde mental. Nós reunimos profissionais de saúde mental, redigimos políticas públicas, respostas nacionais de saúde mental para situações de crise e assim por diante.
Quero te contar o que estava acontecendo antes deste ataque em grande escala e a política antes do genocídio. Em Gaza, tínhamos 7 centros psiquiátricos licenciados – apenas 7 para 2,4 milhões de pessoas – e um número maior de psicólogos clínicos. Tínhamos um hospital psiquiátrico com capacidade para 45 pacientes e 6 hospitais comunitários de saúde mental. A forma como trabalhamos na Palestina é mais voltada para a psicologia comunitária, onde tentamos não depender muito das instalações psiquiátricas, mas incentivamos um programa de integração da saúde mental com a atenção primária.
Por exemplo, incentivamos um programa de saúde mental escolar para que possamos minimizar a necessidade de recorrer a uma clínica psiquiátrica especializada. Como há poucos profissionais especializados em saúde mental, contamos muito com outras pessoas, como médicos, enfermeiros, professores, conselheiros e, às vezes, líderes religiosos, que podem desempenhar um papel importante na prevenção do suicídio e em problemas de abuso de drogas. Esse era o sistema antes do ataque.
Como está a situação da assistência à saúde mental em Gaza desde 07-10-2023?
No primeiro mês deste ataque, 5 dos 7 centros psiquiátricos foram completamente destruídos. E o único hospital psiquiátrico foi totalmente danificado. Eles atendiam 15 mil pacientes psiquiátricos graves. Essas pessoas dependiam dessa estrutura, desse centro governamental, e agora foram deixadas sem medicação.
Eu conversei com o diretor do hospital psiquiátrico e ele me disse que, de vez em quando, quando percebia que seus pacientes estavam em uma condição muito ruim, ele ia sob os escombros do hospital e procurava por algumas caixas de medicação para dar a eles. E você pode imaginar que as pessoas que dependiam dos médicos, enfermeiros, psicólogos clínicos ou de nossos colegas, todos foram deslocados. Todos se mudaram. Conheço 13 pessoas que formei, com quem interagi, que perderam suas vidas. Eles foram mortos sob os escombros. Muitos deles tiveram seus filhos ou outros membros da família feridos.
Portanto, a perda das pessoas que estavam oferecendo ajuda é tão grave que não podemos contar com elas neste momento. Isso me levou a escrever um artigo para a revista The Lancet em novembro de 2023, explicando a situação crítica da saúde mental em Gaza, concluindo que a saúde mental é muito importante, mas o mais importante agora é o cessar-fogo, porque não podemos implementar nenhuma intervenção funcional quando não há um lugar seguro. E não é apenas que não há um lugar seguro. Não há lugar. Não há lugar para fornecer intervenções de saúde mental.
Um dos meus colegas me descreveu a reação das crianças quando um assistente social estava tentando realizar uma atividade. Ele disse que as crianças estavam distraídas, não estavam concentradas porque estavam com fome. Durante a Covid, construímos um sistema remoto onde podíamos intervir online. Mas agora não há internet, nem eletricidade. Quando as necessidades básicas estão faltando, não conseguimos trabalhar. Tudo o que construímos anteriormente colapsou.
Como os profissionais da saúde podem tratar essas pessoas durante um genocídio?
Eu continuo dizendo aos meus colegas que precisamos ser humildes, não devemos fingir que somos salvadores. Vamos observar o que está acontecendo. Como as pessoas se ajudam? Eu vejo pessoas se reunindo, lendo poesias, às vezes entoando canções nacionais, ou recitando versos do Alcorão, ou tentando cuidar dos idosos ou das crianças. Vimos alguns professores que reuniram crianças ao redor e tentaram ensiná-las. Essas iniciativas orgânicas, nas quais as pessoas tentam se ajudar, tentam estar juntas, são algo com o que podemos aprender.
Espero que haja um cessar-fogo e que possamos reconstruir Gaza, e que a reconstruiremos de forma melhor. Eu acrescentaria ao que fizemos anteriormente – esse sistema de saúde mental integrada – que precisamos de mais intervenções coletivas, porque esta é uma experiência coletiva e não podemos colocar cada palestino em uma cadeira de terapia. Podemos fornecer espaços terapêuticos, grupos de escuta e círculos de cura para eles. Em um círculo de cura, somos libertados da suposição de que “ok, eu sou o terapeuta, você é a pessoa doente e precisa buscar ajuda”. Não. Em um círculo de cura, as pessoas se apoiarão mutuamente, e o profissional da saúde será apenas um facilitador, tentando permitir que o processo aconteça. Dessa forma, as pessoas estarão dando e recebendo em uma intervenção coletiva.
Também vejo um espaço para a expressão simbólica. Muitas pessoas falam sobre os eventos como algo indescritível; levará muito tempo para que consigam colocar em palavras o que viram e vivenciaram. Então, eu acho que esculturas, artes, teatro e qualquer expressão simbólica facilitarão o processamento do que aconteceu com elas.
Por fim, um sistema de saúde mental que entende que as pessoas não estão necessariamente doentes, mas feridas, e que promove a cura, não a medicalização, é o que aspiramos estabelecer na Palestina.
Partindo de uma avaliação crítica das questões de saúde mental, como a atual situação humanitária de Gaza revela as políticas coloniais de Israel em relação aos palestinos em geral e aos de Gaza em particular?
Israel é responsável por essa situação anterior ao genocídio ao isolar o povo de Gaza em uma prisão a céu aberto, decidir quais itens alimentares são permitidos entrar ou sair, expor as pessoas a múltiplos ataques e bombardeios, criar muitas limitações em seu movimento, impedindo-as de ir para o exterior, nem mesmo para receber assistência médica. Ao permitir esse privilégio [de sair de Gaza] apenas se as pessoas estiverem dispostas a informar sobre seus próprios ativistas e seu próprio povo. Portanto, não vejo nenhuma experiência palestina que não seja influenciada pela realidade da ocupação israelense. Tudo o que fazemos é influenciado pela ocupação colonial, não apenas em Gaza, mas também na Cisjordânia – quando nos movemos, quando vamos trabalhar todos os dias, quando queremos emitir qualquer documento administrativo. A ocupação existe em nossa vida diária. Nós a respiramos o tempo todo.
No campo acadêmico das Relações Internacionais não é muito comum tratar questões de saúde mental ou questões emocionais como uma questão política. Mas, ao mesmo tempo, podemos dizer que as emoções são uma parte muito importante da política. Como podemos avaliar a política do afeto? Por que a política da compaixão não é direcionada aos palestinos, como se suas vidas não valessem a compaixão?
É muito pior do que isso. Os aspectos psicológicos do conflito, da situação da ocupação, nunca foram levados em consideração no planejamento de qualquer solução para os palestinos. A comunidade internacional, as potências internacionais – os EUA e a Europa, os EUA em maior medida e a Europa em menor medida – têm recrutado pessoas que não são reconhecidas como representantes pelos palestinos para representá-los. Portanto, isso vai contra todos os sentimentos e aspirações dos palestinos. Eles impõem a solução política. A solução política não leva em conta as emoções dos palestinos, e isso provoca raiva e rejeição. É por isso que todos os passos políticos que foram tomados são inúteis e criaram mais danos do que benefícios para os palestinos. Os Acordos de Oslo são abominados pelos palestinos.
Finalmente, como você avalia a solidariedade do Sul Global em relação aos palestinos? Está sendo produtiva?
Muito precisa ser feito para tornar a solidariedade produtiva. A solidariedade é importante, tem um valor terapêutico para as pessoas que se sentem abandonadas, isoladas e invisíveis. Mas, eu também acredito que a solidariedade é boa para a consciência, porque, caso contrário, você lidará com a culpa, se tiver alguma consciência. Portanto, a solidariedade é necessária e ajuda as pessoas em seus extremos. Agora, para torná-la eficaz, acho que isso requer um pensamento estratégico; as pessoas que têm esse sentimento de solidariedade com os palestinos precisam se reunir e elaborar estratégias. A solidariedade não é caridade falsa. A solidariedade não é apenas um sentimento. Trata-se de ações que precisam ser realizadas. A solidariedade também precisa ser um trabalho contínuo, não apenas uma resposta reativa a uma tragédia. É a perseverança, o trabalho persistente que traz mudanças e nos torna mais preparados para responder quando há uma emergência.
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Trauma colonial e a estratégia israelense na Palestina. Entrevista com Samah Jabr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU