04 Outubro 2024
Ele demonstra tanta energia e entusiasmo ao responder que lembra um super-herói disposto a se preparar em frações de segundo para socorrer alguém que esteja necessitando de algum conhecimento para reparar o mundo. E faz tudo de forma rápida e eloquente em espanhol, uma das nove línguas que aprendeu para se comunicar no maior número possível de línguas. Markus Gabriel está convencido de que a filosofia deve ajudar a recompor o mundo a partir da cooperação e a ética, assim como Montesquieu, Rousseau e Kant assentaram as bases para o Estado de direito do modo como o conhecemos.
Nascido em Remagen (Alemanha), em 1980, professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade de Bonn, é um dos grandes promotores do Novo Realismo, uma corrente que desenvolveu em seu livro Por que o mundo não existe e que postula que a realidade é independente das construções sociais humanas. Seu discurso contém grandes lições para tempos de farsas e estridências. Conversou com Ideas no Palácio de la Magdalena de Santander [Espanha], sede emblemática da UIMP (Universidade Internacional Menéndez Pelayo), onde em agosto ministrou um curso magistral.
A entrevista é de Berna González Harbour, publicada por El País, 15-09-2024. A tradução é do Cepat.
Vivemos tempos de confusão entre mentira e realidade. Como você define este momento?
Vivemos em uma nova pós-modernidade porque a sociedade digital transformou o espaço público e este é hoje um Matrix, onde é impossível distinguir entre realidade e ficção. A realidade é o que corrige as nossas opiniões e, hoje, todas as opiniões na internet são confirmadas através das mesmas opiniões por meio de cliques. A ficção precisa de uma atitude humana para ser completa.
Por exemplo, a minha interpretação de um filme de Almodóvar será diferente da de um espanhol que conhece outros códigos. As diferentes interpretações de uma obra de arte são legítimas, ao passo que as diferentes interpretações da realidade não o são porque algumas são falsas e outras verdadeiras. É a grande diferença entre a realidade e a ficção. Na internet, realidade e ficção formam um híbrido. E essa é a nova situação, sobretudo com a inteligência artificial.
Parece que renunciamos não só à verdade, mas ao apego à verdade. Quando vemos que Trump e Elon Musk dialogam e o seu público é indiferente às mentiras, não fica a impressão de que se renunciou à ambição pela verdade?
Sim, exatamente. Merkel tinha razão quando disse que vivemos em uma era pós-factual, o sentimento é mais importante do que a verdade. Quem segue Musk, Trump ou pessoas assim não se importa com a verdade. O filósofo Harry Frankfurt define isto como bullshit (charlatanismo manipulativo): uma forma de falar que não se interessa pela verdade e que nem sequer é mentira.
Por isso, as frases de Trump não fazem sentido e isto é completamente novo. É o que eu chamo de pós-pós-modernidade. Mas sou otimista. Penso que essa nova política de bullshit já está morrendo. Tudo depende das eleições nos Estados Unidos e também da Ucrânia, porque o putinismo também representa tais formas de discursos pós-factuais, falsos e absurdos que nada têm nada a ver com a verdade. A guerra determinará o valor da verdade.
Sugere, então, que por trás das palavras de Trump não há doutrina?
Exatamente. Não existe, há zero doutrina. Em vez de doutrinas, hoje temos interesses e são muito banais, é como uma farsa do marxismo. A análise marxista do discurso ideológico ainda via relações entre palavras e interesses, ao passo que no caso de Trump e Musk falamos de lucros, de neoliberalismo sem doutrina, porque o neoliberalismo de Trump e Musk nem sequer é [o de] Milton Friedman ou Friedrich Hayek.
Não há doutrina, há interesses puros, por vezes criminosos, como no caso de Trump, cuja figura é um fenômeno ao estilo Soprano. E na Rússia falamos de interesses fósseis porque é também uma guerra contra a transformação ecológica da produção na Europa. Não existe uma doutrina de fundo como visão de futuro.
O mesmo que aconteceu com Hitler?
Hitler tinha doutrina. E Mao também. Xi Jinping também não é Mao. Estes são muito incoerentes, conversa fiada pura.
Pode ser mais perigoso?
Pode ser muito perigoso, porque uma vez que esta tolice pura se mistura com a realidade, como na Ucrânia, torna-se totalmente imprevisível. Hitler e Franco tinham uma estratégia nefasta, mas inteligível em sua lógica. Putin não. Ninguém sabe o que Putin quer, nem mesmo ele. O teórico da pós-modernidade Jean Baudrillard descrevia um mundo em que a verdade não tem valor, falava do crime perfeito, e talvez seja este, por isso é perigoso.
A internet gerou uma sociedade de analfabetos?
Em relação a certos fatos, sim. O paradoxo é este: os sistemas digitais ajudam a resolver um problema como encontrar uma mesa em um restaurante em tempo adequado. Contudo, a inteligência clássica, a inter-ligência, o que representa o alfabeto, o saber ler nas entrelinhas, entender um poema e mensagens complexas, decifrar um quadro de Velázquez... é outra dimensão da inteligência em que nos tornamos verdadeiramente analfabetos. A internet simplifica as diversidades e produz estereótipos inteligentes para alcançar resoluções fáceis, mas não no sentido mais amplo. É o grande perigo.
A inteligência artificial é capaz de ter consciência, neste segundo sentido?
Neste segundo sentido, zero. No primeiro, sim. Os problemas históricos, políticos, morais e éticos não são fáceis e a inteligência artificial tem zero capacidade de produzir soluções neste segundo sentido, não tem a capacidade de progresso. É o que Daniel Kahneman argumenta no contexto do direito: uma inteligência artificial pode ser mais justa do que um juiz, mas para que haja progresso é preciso uma interação entre um juízo falsificável e atitudes humanas que o corrijam. A incorrigibilidade da inteligência artificial, sua perfeição, é ao mesmo tempo a sua imperfeição. Esse é o paradoxo: novamente, o máximo conhecimento da ciência produz uma nova forma de ignorância.
As redes nos prejudicam?
Para mim, sim. Eu bebi uma garrafa de champanhe no dia em que Musk destruiu o Twitter. Ele tinha outra intenção, mas acabou com o Twitter, que despertava a ilusão de ser uma máquina progressista de informação e debate. Penso que isso sempre foi uma ilusão porque tinha antissemitas, racistas e terroristas, a informação era sempre manipulada, sempre havia bots russos.
Por que você fala no passado? Considera que já foi superado?
Sim, acredito que sim. Os progressistas não querem admitir, por isso ainda falam de tuítes e do Twitter. Agimos como se ele ainda existisse, mas não existe mais, é um zumbi. O X é um zumbi do Twitter. O Facebook é passado. O TikTok e Instagram são os mais influentes, mas já está claro que não possuem a ilusão da verdade. Antecipo esta possibilidade: por que não produzimos uma nova rede, a Ágora, para trocar ideias, como queríamos que o Twitter fosse? Agora, não existe.
Por que precisamos do Novo Realismo?
O pós-modernismo e grandes filósofos como Kant e Nietzsche entendiam a realidade como algo incompreensível, por isso construíram uma visão do pensamento isolada da realidade. Isso é um dano político para a humanidade porque produz um espaço público de pura luta: competição em vez de cooperação. E a textura da sociedade moderna necessita de uma forma de coesão social.
Após as Revoluções Francesa e Industrial, a diferenciação do trabalho foi a forma da sociedade moderna e funcionava. No entanto, agora, como diz o sociólogo Luhmann, o que temos é uma diferenciação de sistemas, sem uma visão do bem que pode nos unir. O Novo Realismo quer produzir uma nova visão do bem, algo que nos una para além do compromisso progressista contra a extrema direita.
A unidade na luta contra os loucos não é suficiente. Precisamos de um retorno à realidade e o Novo Realismo é um discurso sobre os fatos. A existência de mais de dois gêneros não é uma construção social, é um fato. A mudança climática também. O Novo Realismo muda a visão: não se trata mais de luta de classes, de gêneros ou de interesses, mas, sim, da cooperação da humanidade frente à realidade.
A ciência está evoluindo mais rápido do que a ética?
Exatamente. A Revolução Francesa nos deu a estrutura fundamental da emancipação moderna: liberdade, igualdade e fraternidade eram a promessa da modernidade. Mas, então, veio a Revolução Industrial. Por um lado, tínhamos uma revolução política baseada no reconhecimento ético, na divisão dos poderes de Montesquieu, como um resultado direto do pensamento. Sem ele e Rousseau não teríamos hoje um Estado de direito. Sem Kant e as suas ideias sobre a paz não haveria um direito internacional.
E por outro lado, a Revolução Industrial. Durante muito tempo, tivemos a esperança de que o progresso técnico-científico produziria automaticamente o progresso moral, mas era uma ilusão. Agora, temos contextos científicos e econômicos muito avançados na China e na Rússia, mas com zero progresso moral.
A inteligência artificial, assim como a bomba atômica e a energia fóssil, é consequência do progresso científico-tecnológico, mas não está acompanhada por uma reflexão ética. E o filósofo Derek Parfit dizia que a ética está começando, como a física de Galileu e Copérnico. Mal começamos, então.
A Europa retrocede, fecha-se aos estrangeiros. Qual é a sua avaliação?
O interessante é que nos lugares onde há progresso moral também há progresso econômico e ideológico. Por exemplo, o futebol espanhol neste ano, fantástico, invencível. E coincide com um momento de muito boas condições na Espanha em comparação com outros lugares. É um momento muito progressista no feminismo e questões de gênero e este progresso moral também se manifesta na economia. Em 2015, quando Merkel abriu as fronteiras por uma questão de progresso moral e não de cálculo, produziu-se o bem maior, a coincidência do lucro econômico com o bem: economia e ética caminham juntas. E funciona.
Isso se conecta com a sua ideia de um Novo Iluminismo?
Sim, é justamente o fundamento. O Novo Iluminismo combina humanidades e ciência com a política, a indústria e as empresas para alcançar um progresso fundado nos conhecimentos científicos e filosóficos. Trata-se de crescer juntos.
Desde muito jovem, você criou vários conceitos. Quais considera que precisaremos definir nos próximos 20 ou 30 anos?
Tudo o que inventei até agora em termos de conceitos tem algo de novo: Novo Realismo, Novo Iluminismo, neoexistencialismo... É por isso que meus alunos dizem que a doutrina de Gabriel é o novismo [sorri]. É necessário um conceito positivo que capture a linha entre os polos da polarização, algo que esteja entre e para além da esquerda e da direita. Ainda não o temos.
Precisamos de uma política do “entre” e para isso não temos conceitos. Sabemos que é um “entre”, não é mais um centro. Todos os centrismos estão sendo desconstruídos pelas razões certas. Não há centro. Tampouco periferia. Então, o que há? O grande desafio da filosofia para as próximas décadas é um conceito positivo do “entre”.
Atreve-se a definir o espírito do nosso tempo? O zeitgeist?
Penso que é o progresso moral, paradoxalmente.
Mas isso é uma ambição, não uma realidade.
É uma ambição, mas também uma realidade. Agora, parece que estamos nos defendendo das ameaças que nos cercam: Putin, Trump, mudança climática, inteligência artificial... Contudo, já estamos além das ameaças, já as superamos, por isso temos medo. O motor da história é o progresso moral.
Sloterdijk me disse que a ira é o motor da história. Você concorda? Para você, qual é o motor?
Absolutamente, não. Entendo a sua visão, mas o motor da história é o amor, o bem. O amor é o bem máximo e as decepções e a ira são a expressão dos desesperados. A ira e a guerra são um amor que não funciona. Por exemplo, Putin ama a Europa.
Tem certeza?
Sim, sim. Ele quer ser europeu, em outro sentido, e isso também é um amor. Acredito que quando Putin falou para o Parlamento alemão, há mais de 20 anos, e ofereceu uma nova ordem de segurança, foi sincero, mesmo que tenha sido 10 minutos da sua vida. Meu otimismo é o que diz: os valores positivos são o motor e quando não funcionam temos o mal, que também é real. Agora, Putin é realmente mau. E Netanyahu também. Contudo, o motor é o amor, a dimensão positiva da vida humana.
Do ponto de vista filosófico, por que a ultradireita avança quando ainda nos lembramos do nazismo?
Porque oferece uma visão de bem. É uma visão falsa, excludente, mas pelo menos é uma. A visão de bem que Le Pen oferece é “França”. Que França? Uma França sem muçulmanos, uma França sem estrangeiros, a França loira e branca. Claro. Contudo, oferece algo positivo para um determinado público.
Por meio da exclusão e da xenofobia.
Exato. Oferecem uma caricatura do bem. E o problema da esquerda é que só oferece o compromisso. Macron e Scholz são o compromisso, figuras ocas do progresso que não entendem que o compromisso não é suficiente como visão. O compromisso é uma precondição do bem, mas não é idêntico ao bem.
As pessoas querem mais do que isso e a ultradireita oferece uma farsa do bem. Essa é a estratégia. Por isso, não acredito que a xenofobia, a misoginia e o racismo sejam o grande tema, mas é cultural. Há medo de perder aquilo que nunca foi. E esta é a promessa, a nova visão.
Como encaixa a identidade nesta visão?
Eu rejeito qualquer política de identidade, a emancipação deveria se concentrar na diferença, não na identidade. Vivemos uma regressão conceitual neste sentido. O conceito de identidade fechada leva à impossibilidade de comunicar.
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“O motor da história é o amor, a dimensão positiva da vida humana”. Entrevista com Markus Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU