19 Novembro 2022
A lógica das máquinas não apreende a peculiaridade humana que se dedica ao outro, mesmo quando isso significa se sacrificar, até morrer, por quem se ama.
O comentário é do teólogo italiano Marco Staffolani, padre passionista italiano e professor assistente da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. O artigo foi publicado em Settimana News, 09-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quase 20 anos se passaram desde a trilogia original Matrix (“The Matrix”, 1999; “Matrix Reloaded”, 2003; “Matrix Revolutions”, 2003), e em janeiro de 2022 assistimos ao novo capítulo, o quarto (“Matrix Resurrections”). Ainda nos lembramos do fascínio da escolha, quando Morpheus faz a sua parte e propõe a Neo:
“Esta é sua última chance. Depois não há como voltar. Se tomar a pílula azul, a história acaba, e você acordará na sua cama acreditando no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha, ficará no País das Maravilhas, e eu te mostrarei até onde vai a toca do coelho. Lembre-se, tudo o que ofereço é a verdade. Nada mais.”
Que sensação, na época, ao ver Neo acordar do sono e descobrir que, na realidade, as máquinas assumiram o controle da terra, tornaram os seres humanos escravos e contentes nos seus pods, e que o mundo que ele conhecera desde pequeno não era nada mais do que uma simulação. A pergunta que nasce então é: é melhor uma vida doce e falsa, ou a realidade “crua” com o exercício da liberdade?
O tema da escolha é crucial na trilogia, e Neo torna-se o paladino, o “The One” profetizado de forma “inversa” pelo Oráculo e tão esperado por Morpheus, ou ainda (tentando uma comparação com a teologia paulina) o homem novo que desafia o Arquiteto e as próprias leis da Matrix.
A lógica das máquinas não apreende a peculiaridade humana que se dedica ao outro, mesmo quando isso significa se sacrificar, até morrer, por quem se ama. No diálogo, o Arquiteto, perto do fim do segundo capítulo, prevê a ilogicidade humana e desencoraja sua realização por meio de uma reinicialização de toda a Matrix, de efeitos dicotômicos: salvar a amada ou salvar o restante da humanidade.
“Já entrevejo a reação em cadeia, precursores químicos que sinalizam a insurgência de uma emoção destinada a sufocar a lógica e a razão. Uma emoção que já te cega e te esconde a verdade simples e óbvia: ela [Trinity] vai morrer e não há nada que você possa fazer para evitar isso.”
Neo vai além, confiando na esperança, superando a lógica binária, salvando tanto Trinity quanto Zion. Até os programas residentes na Matrix que terão nova vida no quarto capítulo.
Mas a tentação está sempre à porta, como por exemplo para Cypher, o traidor, que depois de anos de batalhas está cansado de combater contra um inimigo forte e irredutível como Smith ou as máquinas em geral e, portanto, repudia a verdade, preferindo o mundo das mentiras, em que ele pode desfrutar daqueles pequenos prazeres da vida já inexistentes no mundo fora da Matrix, como um bom jantar ou um bom charuto (virtuais).
No caso da figura de Smith, é eloquente o diálogo no confronto final com Neo (na realidade, um monólogo filosófico sobre o significado da existência dadas as pouquíssimas respostas de Neo).
Smith (que nunca apela a seu adversário a não ser com o velho nome de escravo na Matrix, ou seja, Sr. Anderson), pode muito bem ser lembrado não pelos efeitos especiais (o poder da clonagem o torna onipresente em Matrix), mas pela profundidade das palavras, que se interrogam e interpretam o sentido da resistência de Neo, do seu esforço em crer em um futuro possível, que não seja simplesmente destinado ao fim e ao nada.
Smith, objetiva e numericamente superior às forças de Neo, não entende por que seu adversário continua mantendo a posição e não desiste diante de uma nova evidência:
“Por que, Sr. Anderson? Por que, por que, por quê? Por que você faz isso? Por quê? Por que se levantar? Por que continuar lutando? Você acredita que está lutando por algo? Por mais do que sua sobrevivência? Você pode me dizer o que é? Você ao menos sabe? É liberdade ou verdade? Talvez paz? Será por amor? Ilusões, Sr. Anderson, caprichos da percepção! Construções temporárias de um intelecto humano débil, tentando desesperadamente justificar uma existência que não tem sentido ou propósito! E todos eles tão artificiais quanto a própria Matrix, embira somente uma mente humana pudesse inventar algo tão insípido quanto o amor. Você deve ser capaz de ver, Sr. Anderson! Você já deve saber disso! Você não pode vencer! É inútil continuar lutando. Por que, Sr. Anderson? Por quê? Por que você persiste?.”
A perspectiva de Neo é estaurológica e agápica, e sua resposta é lapidar e seca, assim como sua consequência é total e profunda: “Porque eu escolhi assim”.
É claro que as afirmações de Smith, um programa dentro da Matrix que alcança o livre-arbítrio graças ao confronto com Neo, transcende o próprio roteiro da Matrix e se torna a expressão universal da luta cósmica pela existência ou, ainda mais, do “racionalíssimo protesto filosófico” que toda razão humana pode aduzir contra todos os deuses sobre o aparente absurdo de que tudo está destinado a acabar. É claro também que a posição lapidar que Neo assume revela o núcleo irredutível de diferença em relação a todo o restante da criação, que o humano possui, ou seja, buscar uma resposta a todo o custo.
Neo, ao fim desse terceiro episódio, obterá a vitória sobre Smith e sobre o mal de uma forma inesperada e eu diria impopular quando comparada ao que ocorreu no fim do primeiro confronto. Neste, Smith havia sido literalmente humilhado e esmagado pelos poderes do Eleito, capaz de reconhecer os clones malvados entre os residentes comuns, desviar das balas e até mesmo voar entre os prédios.
No epílogo da trilogia, ocorre o contrário: Neo, com uma paz absoluta, a conselho do Oráculo que reaparece por alguns instantes de modo fugidio, deixa-se invadir e infectar paradoxalmente por Smith, a ponto de assumir sua aparência. Neo se entrega a essa rendição ao mal tranquilamente, como quem reina em seu trono (sou quase tentado a ler nisso a garantia do Jesus joanino que vai ao encontro da morte como um rei diante de seu maior empreendimento).
Smith, em sua cópia original, em vez de cantar vitória e exultar, torna-se inexplicavelmente hesitante, e as incertezas existenciais reveladas anteriormente buscam respostas novamente: assim, ele pergunta ao Neo/clone o que está acontecendo. A resposta é desarmante: está em curso o fim de todos, tanto de Neo quanto também de Smith e do mal.
Deus Ex Machina, o porta-voz das máquinas, que Neo havia alcançado e por meio do qual havia novamente se conectado à Matrix, entra em contato com a programação de Smith e de todas as suas cópias maliciosas. A “corporeidade de Neo” serviu como um cavalo de Troia para que Deus pudesse apagar definitivamente do sistema da Matrix o mal que o assediava, evitando assim a perigosa reinicialização ameaçada pelo Arquiteto.
O efeito cênico é sugestivo: um mundo feito de infinitas réplicas, vestidas com óculos e roupas pretas, perenemente coberto pelo cinza dos prédios e pela melancolia da chuva, finalmente se abre à luz.
Uma passagem digna de nota entre todas as outras, a meu ver, e que não foi devidamente levada em consideração pela crítica em geral é a sequência que se segue: a difusão da luz do interior da Matrix para o exterior. A luz se propaga superando as fronteiras legítimas do virtual, para se expandir também para o mundo real por meio do corpo de Neo, que agora está literalmente crucificado e suspenso do solo, ao mesmo tempo pregado pelos cabos elétricos que lhe permitiram a última (e mortal) conexão, mas também inundado de fótons!
As palavras de Deus servem de selo para as imagens, que, por meio das sentinelas, “mostra seu rosto” e diz: “Está consumado” (“It’s done”).
A Matrix finalmente conhece um tempo de paz, e, graças ao acordo entre Deus e Neo, os seres humanos poderão escolher livremente se querem aderir à Matrix ou serem aprisionados nela como escravos, e as próprias máquinas não terão mais que perseguir e expulsar os seres humanos para as áreas estreitas da Terra.
Neo morre alcançando a paz para todos, seres humanos e máquinas, mas sua aventura realmente terminou aqui? Faltam os acontecimentos do quarto capítulo. Tudo é possível na realidade virtual. Mas também na real!
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Matrix: “Porque eu escolhi assim!”. Artigo de Marco Staffolani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU