18 Abril 2024
El ministerio de la verdad (Capitán Swing, 2022) é um livro sobre outro livro, uma espécie de biografia de George Orwell baseada em suas referências ao escrever 1984. Nele, o jornalista Dorian Lynskey percorre “as múltiplas vidas” do clássico da literatura mundial, uma das obras mais citadas da história e, apesar disso, uma das mais desconhecidas pela sua multiplicidade de nuances e significados.
A entrevista é de Dani Domínguez, publicada por La Marea, 17-04-2023. A tradução é do Cepat.
A publicação de ‘1984’ completa 75 anos no momento em que a Europa vive uma guerra dentro das suas fronteiras e diferentes países alertam para uma possível escalada bélica. O mundo atual se parece ao que Orwell imaginou em seu romance?
Por um lado, estamos muito melhor do que eu imaginava, porque não vivemos em um mundo dividido em três superestados totalitários. Ainda que a democracia esteja atualmente em retrocesso, assistimos a uma grande melhora no que diz respeito à situação em 1949.
Contudo, 1984 era uma advertência, não uma profecia, e continua sendo um conjunto de ferramentas úteis para compreender o crescimento de tendências antidemocráticas, incluindo a vigilância, a censura, a propaganda e a destruição do conceito de verdade objetiva.
Certamente, ajuda a explicar a Rússia de Vladimir Putin. É importante lembrar que Orwell baseou o mundo de 1984 no que já havia acontecido sob os regimes de Hitler e Stalin. Estava explicando mais do que imaginava. Sendo assim, se em alguns aspectos, Putin se parece com o Grande Irmão, na realidade, é porque se parece com Stalin.
Em ‘El ministerio de la verdad’, você recorda a afirmação de Orwell que, durante a guerra, cada avanço científico “acelera a tendência que nos leva ao nacionalismo e à ditadura”. A atual corrida armamentista vai nessa direção?
Durante a guerra, Orwell observou que a rádio era utilizada principalmente para propaganda e que o avião estava associado ao lançamento de bombas. Estas não eram invenções perversas em si, mas facilmente se abusava delas para fins bélicos e tirânicos.
Hoje, o mesmo poderia ser dito sobre a Internet e a inteligência artificial: têm o potencial de acelerar o avanço para um mundo melhor, mas, muitas vezes, são utilizadas para piorar as coisas, seja através da desinformação online ou para travar a guerra com drones operados pela inteligência artificial.
Não é preciso ser tão cético em relação à tecnologia como foi Orwell para perceber que o progresso tecnológico não caminha de mãos dadas com o progresso moral.
No momento de sua publicação, uma parte importante da esquerda não entendeu ‘1984’ e uma parte da direita não se sentiu interpelada, muito pelo contrário. Hoje, acontece algo semelhante e esse romance é utilizado pela direita e pela esquerda para atacar o oponente. Quem não compreende Orwell?
A maioria dos leitores britânicos entenderam que Orwell estava satirizando o totalitarismo de Hitler e Stalin, mas muitos conservadores estadunidenses interpretaram mal 1984: pensaram que era um ataque à esquerda em geral, incluindo o governo trabalhista de Clement Attlee. Como socialista democrático, Orwell ficou tão incomodado com isto que fez declarações à imprensa para esclarecer as suas intenções.
Hoje, muitos conservadores continuam utilizando 1984 para criticar a esquerda. Como o livro é muito conhecido, mesmo por pessoas que realmente não o leram, tornou-se uma arma útil para usar contra qualquer pessoa que não agrada.
Penso que é importante ler o livro e outros trabalhos de Orwell para compreender o que realmente estava dizendo e não reduzi-lo à categoria de um insulto barato ou um clichê.
Hoje, o desaparecimento da “verdade objetiva” parece ser realidade e a extrema-direita tem uma grande capacidade de ampliar o que Trump chama de “fatos alternativos”. E estas formações, como preveem todas as pesquisas, verão as suas posições reforçadas nas próximas eleições europeias. Uma parte dos cidadãos deseja receber a mentira?
Orwell escreveu sobre o totalitarismo em seus primeiros trabalhos acadêmicos. Descrevia muitos fenômenos que ainda não tinham nome: teorias da conspiração, pensamento de grupo, viés de confirmação etc.
Nos últimos 75 anos, historiadores e psicólogos trabalharam muito para esclarecer por que as pessoas são tão suscetíveis à desinformação. Em 1984, as pessoas se veem obrigadas a aceitar as mentiras do Ingsoc, pois, caso contrário, seriam presas e torturadas.
A realidade deprimente hoje é que milhões de pessoas que vivem em democracias apoiarão voluntariamente as mentiras mais escandalosas e ignorarão o que Orwell chamou de “fatos inconvenientes”, quando estes não servem para apoiar os seus preconceitos. Não necessitam da ameaça do Grande Irmão.
Quando você lê os artigos jornalísticos de Orwell, fica claro que estava consciente desta tendência naquele momento e não ficaria surpreso. Uma de suas mensagens subestimadas é que todos deveríamos estar conscientes de nossos próprios preconceitos e de como distorcem a nossa compreensão do mundo.
No Twitter, você afirmou que, “nos anos 1990, os teóricos da conspiração eram fascinantes, para o bem ou para o mal. “Agora, são pessoas incrivelmente maçantes, para quem cada notícia é uma bandeira falsa ou um complô deliberado”. Qual a razão dessa facilidade em espalhar mentiras?
É uma questão ampla e importante. Penso que uma das razões é que a Internet permitiu a difusão de informações falsas e a construção de comunidades online que habitam efetivamente em realidades alternativas.
Outra é o colapso da confiança nos políticos, nos meios de comunicação social e nas instituições públicas. Quando as pessoas, instintivamente, não acreditam nas narrativas oficiais, tornam-se vulneráveis a explicações alternativas, sem importar o quão estranhas ou logicamente inconsistentes são.
Um terceiro fator é a forma como os principais políticos e meios de comunicação, especialmente de direita, normalizam as teorias da conspiração e eliminam o tabu que as rodeia. Como sociedade, devemos estar mais atentos às teorias da conspiração e não permitir que contaminem ainda mais o panorama político.
Israel virou uma potência tecnológica que exporta os seus avanços para o resto do mundo. De acordo com a Anistia Internacional, as autoridades israelenses utilizam tecnologia de reconhecimento facial “para consolidar o apartheid” na Palestina. As políticas israelenses são discípulas da obra ‘1984’?
Há elementos no comportamento de Israel que lembram 1984, mas o mesmo poderia ser dito do Irã, da China, da Rússia, da Hungria, dos Estados Unidos de Trump e de muitos outros. Orwell modelou a “Faixa Aérea 1” com base no stalinismo, mas a localizou em Londres para ressaltar que nenhum país é invulnerável à tirania. Seu tema era a abuso de poder, e isso pode acontecer em qualquer lugar.
Se hoje fosse necessário encontrar um cenário real para filmar ‘1984’, onde encontraríamos o mais parecido?
Certamente, seria o da Coreia do Norte, o regime totalitário mais duradouro e fechado do mundo. Está tão distante do resto do mundo e exerce tal poder sobre os seus cidadãos que a liberdade de pensamento e expressão é impossível. Segundo a minha própria teoria, um país onde se pode ler legalmente 1984 não é o tipo de país que vemos em 1984. A Coreia do Norte supera este teste. É uma distopia da vida real.
Orwell sempre foi um defensor do chamado “socialismo democrático”. Após 75 anos da publicação de seu romance, há esperança nesta ideologia?
Orwell tinha uma interpretação muito pessoal do socialismo democrático, levando-o muitas vezes a discutir com outros socialistas democráticos. Nunca conseguiu encontrar um político ou um partido, em qualquer lugar do mundo, que pudesse aprovar plenamente.
No fundo, representava a política da esquerda não comunista: nem o comunismo e nem o capitalismo de livre mercado ilimitado, com a missão de reduzir a desigualdade econômica, sem sacrificar as liberdades civis.
Seu socialismo era mais moral do que ideológico. Valorizava a decência, a justiça e a liberdade. Sigo pensando que é um equilíbrio admirável e alcançável.
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“O progresso tecnológico não caminha de mãos dadas com o progresso moral”. Entrevista com Dorian Lynskey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU