12 Abril 2012
Na rede, estamos além de Orwell: vigiados e felizes.
A opinião é do poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, ex-professor de literatura e filosofia das universidades de Erlangen, Friburgo e Hamburgo. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 08-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um homem clarividente, esse Eric Blair, mais conhecido sob o pseudônimo de George Orwell. Alguém que entendia de regimes totalitários, muito antes que o termo começasse a fazer parte do léxico dos historiadores. Alguém que, em 1943, quando Stalin, Churchill e Roosevelt se encontravam em Teerã, já via se perfilar o antagonismo entre as superpotências e a Guerra Fria.
Alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, Orwell publicou o seu romance mais célebre, 1984. O futuro que ele via no horizonte não lhe agradava. Ele pintou o panorama infernal de um reino do terror bem no meio da Europa, que, em um futuro não muito distante, aperfeiçoaria os métodos de Stalin e de Hitler: um partido único no comando de um "Grande Irmão"; uma "novilíngua" idealizada para inverter o sentido das palavras; a abolição da esfera privada; um regime de vigilância de 360 graus, reeducação e lavagem cerebral de toda a população; e, enfim, uma polícia secreta onipotente para sufocar na raiz qualquer tentativa de oposição com a tortura, os campos de concentração e o assassinato.
Felizmente, essa profecia não se concretizou, pelo menos no que se refere ao nosso lado do globo: George Orwell enganou tanto a nós quanto a si mesmo. Mas ele não imaginaria nem em sonho que, para obter ao menos em parte esse resultado – e em particular um amplo sistema de vigilância – não havia necessidade de uma ditadura. Podia-se alcançá-lo mesmo dentro de um sistema democrático, sem o uso de violência, com métodos civis, senão até pacifistas.
Mais de quatro séculos atrás, um jovem francês, Etienne de la Boétie, já tinha começado a refletir sobre esse tema: no seu Discurso sobre a servidão voluntária, não satisfeito em colocar na berlinda os déspotas absolutos do seu tempo, o autor se dirigia principalmente às consciências daqueles que se adaptavam à tirania: "São os próprios povos – escreveu – que sofrem essa chaga, ou melhor, que se fazem mal por si mesmos. Se apenas deixassem de se submeter à servidão, seriam livres. O povo se assujeita, condescende com a sua miséria, ou até mesmo a persegue... Não acreditem que um pássaro se deixe capturar, nem que um peixe abocanhe a isca com mais facilidade do que um povo pronto para se deixar seduzir pela servidão, por pouco que se lhe esfregue um pouco de mel na boca".
De fato, porém, há muito tempo já não temos mais a ver com a figura do monarca único, pessoalmente identificável e atacável, contra o qual Etienne de La Boétie se insurgia. E nem sofremos, como no livro de Orwell, a tirania de um Grande Irmão, mas sim o domínio de um sistema semelhante ao descrito por Max Weber nos anos 1920.
"A organização burocrática, com os seus profissionalismos e especializações, a separação das competências, os regulamentos e as relações de obediência com base em uma escala hierárquica estão levando adiante, em conjunto com a máquina morta, a edificação da estrutura, daquele futuro assujeitamento, no qual talvez um dia as pessoas serão forçadas a se inserir na mais total impotência, como os fellahin do antigo Estado egípcio, se para eles o único e último valor com base no qual se decide a natureza e a administração dos seus negócios for um bom sistema – bom e racional em sentido puramente burocrático – de tutela, abastecimento e gestão. Porque nele a burocracia é incomparavelmente mais eficiente do que qualquer outra estrutura de domínio".
Nas suas previsões, essa estrutura de assujeitamento seria "dura como o aço": mas, embora clarividente, ao menos nisso Max Weber havia se equivocado, dado que, entretanto, a prisão se transformou em um habitáculo relativamente confortável, algo como uma cela espaçosa e elástica, de paredes de borracha. Os nossos vigilantes chegam na ponta dos pés, tentando, sempre que possível, alcançar seus principais objetivos estratégicos – ampla vigilância e abolição da esfera privada – sem fazer barulho. Eles recorrem ao cassetete só quando não há mais nada para fazer. Preferem permanecer anônimos. Não usam uniformes, mas sim roupas civis. Fazem-se chamar de administradores ou comissários e não atuam mais em quartéis, mas sim em escritórios com ar condicionado. Na realização das suas funções, eles têm modos amáveis e cordiais. Aos residentes, eles garantem a segurança, a assistência, o conforto e o consumo. Por isso, podem contar com a aprovação tácita dos habitantes e não duvidam de que os seus protegidos irão pressionar com zelo um botão invisível que diz "Curtir".
Também sobre outro ponto a análise de Weber parece ser anacrônica hoje: a sua desarmadora confiança na força e na capacidade de ação do Estado. Se entre nós essa confiança perde força, não é só porque os Estados são perseguidos, caçados pelos mercados financeiros globais, mas também porque hoje nem Berlim, nem Bruxelas e nem Washington seriam capazes de garantir sozinhas o controle total da população, e isso simplesmente porque os seus funcionários são muito ingênuos e desajeitados.
Além disso, eles não conseguem sequer manter o ritmo dos progressos da tecnologia. Por isso, as autoridades dependem do "mundo econômico", ou seja, das corporações da informática. Só se as duas partes prosseguem lado a lado – os governos de um lado, e empresas como Google, Microsoft, Apple, Amazon ou Facebook de outro – é que as garras sobre as liberdades dos cidadãos atingem a máxima eficácia. No entanto, é claro que nessa frágil aliança o papel das instâncias políticas é o do parceiro mais fraco, dado que só as empresas dispõem das competências indispensáveis, do capital e da necessária mão-de-obra: analistas de sistemas, engenheiros, programadores de software, hackers, matemáticos e criptógrafos.
No século XX, nem a Gestapo, nem a KGB ou a Stasi sequer imaginariam remotamente os meios tecnológicos disponíveis hoje: as onipresentes câmeras de vigilância, o controle automatizado dos celulares e do e-mail, as imagens de satélite de alta definição, os perfis de movimento superdetalhados, os sistemas de reconhecimento biométrico do rosto, programas gerenciados graças a algoritmos impressionantes, memorizados em bancos de dados de capacidade ilimitada.
A última menção de reação, já quase esquecida, contra o zelo das autoridades alemãs e das megaempresas remonta ao distante 1983 – um ano antes da data que deu o título ao romance de Orwell. Um censo relativamente inócuo suscitou então um certo alerta, e as denúncias de muitos cidadãos foram acolhidas pela Corte Constitucional. Os juízes de Karlsruhe não só condenaram a iniciativa do governo, mas também instituíram uma nova lei constitucional sobre a "autodeterminação informática", em proteção da personalidade. Uma sentença que hoje parece ser ingênua: de fato, ninguém jamais se deu conta dela. Na ciberguerra contra a população, os defensores da privacidade dos dados são impotentes e há muito tempo jogaram a toalha.
Sobre um ponto, no entanto – o da evolução linguística –, George Orwell acertou em cheio: a "novilíngua" por ele descrita agora subiu ao posto de jargão oficial da sociologia. A Constituição não agrada aos chamados serviços. Distingui-los dos criminosos da informática não é nada fácil. AS novas carteirinhas de saúde, de fato, nada mais são do que um cartão eletrônico de censo das doenças, facilmente decriptável por qualquer hacker. E, quanto às redes sociais, elas alavancam o exibicionismo dos seus usuários para explorá-los impiedosamente.
Um último e incômodo resíduo de esfera privada é o dinheiro. Portanto, é lógico que o Estado, em conjunto com as corporações, coloque em campo um empenho coerente para aboli-lo, mediante a proliferação de cartões de crédito, de client cards e de outros sistemas de pagamento (via telefone e chips) a serem introduzidos em breve. O objetivo não poderia ser mais claro: exercer uma vigilância capilar sobre a totalidade das transações. Estão interessados nisso, além do fisco, as redes associais, o comércio online, as instituições de crédito, a publicidade e a polícia. Um outro efeito será o de apagar até a recordação da materialidade do dinheiro, reduzido a uma série de dados manipuláveis à vontade.
Com o único objetivo de completar o quadro, passaremos um olhar, por fim, sobre um setor colateral, assinalando as tentativas em curso para abolir os direitos autorais.
O copyright é uma conquista recente, que remonta ao século XIX. Até então, a leitura de livros era um privilégio reservado a uma pequena minoria. De repente, o romance se tornou um produto de massa. Os autores se deram conta de que, graças aos direitos sobre as tiragens e sobre as traduções, a literatura podia ser uma fonte de ganhos substanciais. Infelizmente, não tiveram muito tempo para ficar alegres. O livro impresso, hoje chamado de print, tornou-se um modelo de fim de série para as grandes editoras, que já consideram o copyright como um obstáculo, com grande júbilo das vanguardas digitais. Para esses alegres piratas, a obrigação de pagar um preço por aquilo que a indústria da informática define como content ainda é um absurdo. De agora em diante, os autores, como eram chamados, deverão se resignar a trabalhar de graça. Em compensação, poderão tuitar, usar chats e blogar à vontade.
Ninguém parece se preocupar com o fato de que agora o tempo da deterioração das técnicas à nossa disposição varia de três a cinco anos – o mesmo ritmo dos ciclos dos grandes grupos de informática. Enquanto um texto em pergaminho ou papel desacidificado permanece perfeitamente legível a uma distância de cinco séculos ou até de um milênio, as mídias eletrônicas devem ser passados adiante com uma certa frequência, para não se tornarem inutilizáveis depois de apenas 10 ou 20 anos: um dado que, obviamente, coincide com o espírito dos seus inventores.
A abolição do livro impresso, além disso, não é uma ideia nova. Ela foi anunciada no distante 1953 por Ray Bradbury, em seu best-seller (!) Fahrenheit 451, que descreve os seus desdobramentos até as extremas consequências. Nesse relato utópico, a posse de um livro é considerada crime e punida com a pena de morte. Nas suas visões do futuro, os grandes pessimistas tendem a exagerar. Mas o fato de serem refutáveis testemunham em seu favor e não contra eles. Isso é verdade tanto no caso de Bradbury e de Orwell, como no de Max Weber. Obviamente, para saber mais retrospectivamente, não há necessidade de ser um gênio.
Diante dos prognósticos mais tétricos, surge uma questão, inevitável como o amém na igreja: é possível que não haja qualquer elemento positivo? A resposta é fácil e de grande satisfação: tudo o que sobreveio graças à nossa voluntária servidão não exigiu o derramamento de sangue. Os "resíduos do passado" não foram liquidados, como Lênin tentou fazer na Rússia, mas continuam existindo.
E isso por um motivo evidente: a tolerância dos nossos vigilantes se baseia em um simples cálculo de custo-benefício. Seria muito caro tentar expulsar os últimos refratários, suprimir uma pequena minoria teimosa, que, por pura e simples teimosia, se opõe ao fato digital. Eis porque nos contentamos com uma vigilância de 95%. Portanto, não é o caso de nos deixar tomar pelo pânico: até porque o 5% restantes são equivalentes ainda a quatro milhões de pessoas. E assim também, no futuro, justamente aqueles que não poderão abrir mão dele poderão continuar comendo e bebendo, amando e odiando, dormindo e lendo analogicamente, sem se preocupar muito, e permanecendo relativamente inobservados.
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Vigilância e privacidade digitais: o ''Big Brother'' não previsto por Orwell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU