01 Outubro 2024
"As guerras em curso não só poderiam ser evitadas, mas também podem ser interrompidas, e que, para isso, palavras de condenação não são suficientes, especialmente se vindas da ONU e de seus vetos. Em vez disso, pode bastar uma interrupção total do envio de armas tanto para Israel quanto para a Ucrânia, que não pode vencer e terá de negociar imediatamente para se salvar. A condição é interromper a cumplicidade dos governos com as indústrias de produção e comércio de armas".
O artigo é de Barbara Spinelli, jornalista e filósofa italiana, publicado por Il Fatto Quotidiano, 26-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É comum ouvirmos políticos e comentaristas dizerem que os europeus não são mais o que costumavam ser: têm medo da guerra, não sabem mais combater. Mesmo quando lutam por procuração, deixando os ucranianos morrerem pelos chamados valores ocidentais, eles estão prontos para vender as armas, mas não a pele.
Coisas semelhantes são ditas sobre os Estados Unidos, embora Washington tenha um objetivo específico: fingir uma hegemonia planetária que já foi perdida. A Europa apática e invertebrada careceria de coragem: aquela que empurra com entusiasmo para o front e a economia de guerra para defender uma Causa.
Essas lamentações aparentemente gostariam de despertar, de comover, mas na verdade são desprovidas de sentido. A razão pela qual a guerra e os extermínios são vistos com mais prazer na TV do que pessoalmente - mas ainda assim são vistos e defendidos - não decorre do medo de se envolver e sacrificar soldados, mas de uma espetacular falta de medo.
As guerras do século XX são lembradas, não sem temores, mas estranhamente há uma guerra que não parece despertar medo genuíno e duradouro nos políticos: o conflito nuclear, desencadeado talvez pelo uso russo de bombas atômicas táticas no teatro de guerra ucraniano e seguido, não improvavelmente, por um confronto nuclear entre a Rússia e o Ocidente. Com relação às guerras do Estado israelense (Gaza, Líbano, Cisjordânia, Síria, Iêmen e, em perspectiva, Irã), o que é ocultado, em vez de esquecido, é o potencial atômico que Israel dispõe desde a década de 1960: hoje, entre 100 e 200 ogivas. Cabe se perguntar se esse grande lamento dos políticos não teria origem em uma memória propositalmente enterrada do que foi o bombardeio do Japão em 1945, primeiro em Hiroshima e depois em Nagasaki, apesar do fato de Tóquio já estar pronta para se render. Isso foi decidido pelo presidente Harry Truman. Depois, durante a Guerra da Coreia (1950-1953), o uso da bomba atômica foi novamente cogitado pelo general Douglas MacArthur. O comandante das tropas na zona de guerra pediu a Truman que atacasse a Coreia do Norte e a China com 34 bombas nucleares. Felizmente, foi demitido.
Portanto, já na Coreia, a bomba atômica era banalizada. Os movimentos antinucleares se multiplicaram na Europa, mas a experiência de Hiroshima e Nagasaki caiu no esquecimento. Certamente foi um crime contra a humanidade, se não um genocídio, mas muitos especialistas e políticos continuam dizendo que a guerra, com seu rastro de morte, teria durado anos, se não tivesse sido providencialmente interrompida por “Little Boy” e “Fat Man”, os dois nomes jocosos dados às ogivas. Nos anos posteriores, o governo japonês preferiu ocultar o fato de que Tóquio estava preparada para se render antes de agosto e que as bombas nucleares foram lançadas para enviar um sinal à União Soviética, tendo em vista a iminente divisão da Europa.
Um dos motivos pelos quais a banalização e os ocultamentos foram possíveis e aceitos pelos vencedores em 1945, de acordo com o historiador do direito internacional Richard Falk, é a “coincidência impressionante”, no período pós-guerra, de dois eventos cruciais: a decisão dos vencedores de convocar o Tribunal de Nuremberg contra os crimes nazistas em 8 de agosto de 1945 e os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki dois dias antes e um depois, em 6 e 9 de agosto do mesmo ano.
O Tribunal não apenas adotou uma justiça dos vencedores, colocando apropriadamente sob acusação a Alemanha de Hitler, mas passando por cima dos crimes de guerra dos Aliados (destruição total e indiscriminada de Dresden e de muitas cidades alemãs, lucidamente descrita por Winfried Sebald em História Natural da Destruição). Ainda mais gravemente, o Tribunal não se pronunciou sobre as bombas atômicas usadas no Japão.
O crime dos vencedores ocidentais - os EUA na frente - perdura apesar das repetidas comemorações, e as duas bombas não recebem o nome que merecem: um crime condenável ao lado dos crimes nazistas. Até hoje, os EUA não são chamados a prestar contas e, no mínimo, a pedir desculpas pelo que foi um inequívoco crime contra a humanidade: nem militarmente justificado, nem legal, nem legítimo. Os mortos pelas duas explosões em Hiroshima e Nagasaki foram 214.000, e os feridos, 150.000. Nos anos que se seguiram, milhares de sobreviventes morreram ou adoeceram de câncer, leucemia e outros efeitos das radiações.
Richard Falk escreve ainda sobre a impunidade que as administrações dos EUA desfrutaram e ainda desfrutam: “Não se trata apenas de insensibilidade. Trata-se de entorpecimento moral, que predispõe os atores políticos - sejam eles estados, impérios ou líderes - a abraçar crimes passados e cometer crimes futuros“ (Counterpunch, 12.8.2022). Revelador é o título do filme de Stanley Kubrick de 1964: Dr. Fantástico - Como aprendi a parar de me preocupar e a amar a bomba. A bomba atômica é abraçada, é amada. Assim, é transformada em um meio de guerra utilizável. A guerra de Israel no Oriente Médio e entre a OTAN e a Rússia na Ucrânia, além da guerra iminente com Pequim sobre Taiwan e o Mar do Sul da China, pode resultar em uma conflagração nuclear. À luz dessa possibilidade, é tolice depreciar e denunciar o medo que permeia parte das populações.
Desde Hiroshima e Nagasaki, e desde que Israel e outros países se equiparam com a bomba atômica, a natureza da guerra mudou inevitavelmente. Nem mesmo o planeta, cambaleante como é, suportaria tais desastres. Repetir que na Ucrânia o Ocidente “não sabe mais combater as guerras” é irracional.
Washington parece estar mais ciente disso do que a União Europeia.
Em 1979, o filósofo Hans Jonas disse, em seu livro O Princípio Responsabilidade, que existe uma heurística do medo, que exige que busquemos e conheçamos melhor a nós mesmos graças às energias contidas em nossos medos, se nos importarmos com o futuro da Terra. Existe a possibilidade de corrigir políticas e comportamentos, escreveu, se não confiarmos em visões salvíficas (exportações do comunismo, da democracia), mas em visões de possíveis catástrofes.
Parte dessa heurística (pesquisa, descoberta) é a consciência de que as guerras em curso não só poderiam ser evitadas, mas também podem ser interrompidas, e que, para isso, palavras de condenação não são suficientes, especialmente se vindas da ONU e de seus vetos. Em vez disso, pode bastar uma interrupção total do envio de armas tanto para Israel quanto para a Ucrânia, que não pode vencer e terá de negociar imediatamente para se salvar. A condição é interromper a cumplicidade dos governos com as indústrias de produção e comércio de armas, interessadíssimas em continuar as guerras. De acordo com o SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), os três principais fornecedores de armas para Israel são os EUA, a Alemanha e a Itália. Quando começaremos a falar sobre isso na Itália?
É por isso que é realmente uma contraverdade continuar ignorando ou insultando os temores dos cidadãos e imaginar uma Europa belicosa como nos “bons velhos tempos”. É a coragem da paz que é necessária, mas combinada com a vontade de levar a sério o medo da bomba atômica.
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Por que hoje a bomba atômica é novamente possível? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU