24 Setembro 2024
"Uma preocupação que poderia ser estendida a toda a realidade eclesial: percepção e uso inadequados são os elementos essenciais sobre os quais, não apenas em Medjugorje, deve-se vigiar", escreve Umberto Rosario Del Giudice, teólogo canonista, em comentário publicado por Theoremi, 19-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Das Declarações sobre Lourdes e Fátima até as de Medjugorje: parece que a abordagem mudou e há mais atenção ao que há de bom (ou de ruim) nas práticas religiosas. Não mais videntes a seguir, mas experiências religiosas a apoiar (e sobre as quais vigiar). E não mais a espera de sangue liquefeito, mas a atenção ao sangue derramado.
Com a Nota[1] de hoje, 19 de setembro de 2024, a Igreja se pronunciou sobre os acontecimentos de Medjugorje.
O tom se mostra imediatamente diferente em relação a Discursos, Declarações, Encíclicas, Notas (assinadas pelos papas ou pelas várias Congregações) que trataram dos fatos que envolviam a pequena Bernadette e os pastorinhos de Fátima (note-se que não se mencionam nomes de "videntes" na Nota de hoje).
Mas o que aparece não é apenas uma avaliação diferente.
A bem ver, os primeiros (cautelosos) enfoques dos fatos de Lourdes ou de Fátima foram, no mínimo, comedidos, seguidos de declarações graduais. No entanto, os fatos, embora complexos, foram "reconhecidos" em pouco tempo. Foram necessários doze anos para uma primeira declaração sobre os fatos relatados por Bernadette, permitindo o fluxo de fiéis e a veneração em Lourdes.
Fátima teve relevância quase imediata: apenas dois anos após os eventos declarados pelos pastorinhos, o bispo local, com o beneplácito da Santa Sé, declarou "dignas de crédito, as visões dos pastores da Cova da Iria, ocorridas na paróquia de Fátima, nesta diocese, de 13 de maio a 13 de outubro de 1917".
Mas eram também outros tempos e contextos. Na França, na época dos acontecimentos de Lourdes, o imperador Luís Napoleão bloqueava qualquer acordo com a Igreja além do concordato de 1801. Em Portugal, os pastorinhos foram presos por dois dias por ordem do então prefeito de Vila Nova.
Além do contexto histórico, podemos dizer que as declarações da Santa Sé sobre os fatos de Lourdes e Fátima foram tempestivas e diziam respeito a "fatos considerados extraordinários".
Para os fatos de Medjugorje, foram necessários mais de quarenta anos para a publicação de uma Nota que valorizou mais a experiência religiosa do que os dados das mensagens (presumidas).
As razões que levaram ao "não reconhecimento" dos fatos "presumidamente sobrenaturais" de Medjugorje deverão ser refletidas em outro espaço.
O que aqui importa, porém, não é apenas o "dado da não oficialidade", ou seja, o "não reconhecimento", mas a mudança substancial de abordagem e respeito às experiências e seu uso.
De um lado, Lourdes e Fátima se mostravam à Igreja como "aparições marianas" úteis à fé vivida na época entre os séculos XIX e XX por diversos aspectos (ateísmo, conflitos entre Estados, ameaças bélicas, Guerras...); do outro lado, Medjugorje, embora os fatos remontem aos tempos dos comunismos ideológicos anteriores à sangrenta guerra de separação – independência – dos países bálticos, permanece um "lugar de culto" como tantos outros, onde é possível uma "experiência de fé".
Vale a pena retomar o que foi escrito na Apresentação por ocasião da publicação do "segredo de Fátima".
A Congregação para a Doutrina da Fé, assinada então pelo secretário Tarcisio Bertone, declarou em 2000:
"Aparições e sinais sobrenaturais pontilham a história, entram no âmago dos acontecimentos humanos e acompanham o caminho do mundo, surpreendendo crentes e não crentes. Essas manifestações, que não podem contradizer o conteúdo da fé, devem convergir para o objeto central do anúncio de Cristo: o amor do Pai que suscita nos homens a conversão e concede a graça para se abandonarem a Ele com devoção filial. Esse é também o caso da mensagem de Fátima, que, com o apelo veemente à conversão e à penitência, impulsiona, na verdade, ao coração do Evangelho"[2].
A abordagem da Nota de hoje não leva tanto em conta o dado doutrinário, embora haja uma análise das "mensagens", mas destaca o "fenômeno Medjugorje" enquanto centro de experiência religiosa, de penitência, de união em Cristo. Foi destacada "a espiritualidade medjugoriana na vida cotidiana" (Nota, 5b).
Para delinear essa espiritualidade, a Nota retoma o "título" da "Rainha da Paz" e remete àquela "paz que brota da caridade" e a Cristo, "Rei da Paz" (aqui se esperava uma referência à "paz" como "salvação". Mas embora não esteja explícito, o dado aparece subentendido).
A espiritualidade medjugoriana, então, é expressa por meio de algumas categorias, conforme algumas locuções: “somente Deus”, “encontrar Deus que está sempre presente na vida de cada dia”. Ao mesmo tempo, destaca-se o cristocentrismo e o apelo à ação do Espírito Santo que chama à conversão e à oração, com centralidade na “Missa”, ápice da oração dos fiéis reunidos em comunhão fraterna. Uma espiritualidade que exige e remete à dimensão eclesial e à "alegria e gratidão", ao "testemunho dos fiéis", à atenção à "vida eterna".
A partir dessas evidências da vida "cotidiana" cristã promovida pela espiritualidade medjugoriana, a Nota destaca os riscos: "Algumas poucas mensagens se afastam desses conteúdos tão positivos e edificantes e parece até que chegam a contradizê-los. É conveniente ter cuidado para que esses poucos elementos confusos não ofusquem a beleza do conjunto" (Nota 27).
Daqui, a Nota ressalta ambiguidades, como “repreensões e ameaças”, “mensagens à paróquia”, “autoexaltação da Virgem” (em algumas mensagens, diria “meu plano”, “meu projeto”..., cf. Nota 37).
A avaliação da Nota não reconhece o caráter sobrenatural dos fenômenos de Medjugorje, mas reconhece a experiência religiosa ali proposta como útil para a experiência cristã. A Nota assume o encargo de avaliar a congruência de algumas mensagens e declara, sobretudo, que a percepção dos autodenominados videntes pode interferir (se houver) na experiência do Deus de Jesus.
Examinando então as "mensagens" (todas consideradas presumidas, como a Nota especifica desde sua premissa, cf. Nota 2), nada mais faz do que remeter aos métodos e práticas das sãs tradições cristãs e, em continuidade com elas, não impede a experiência medjugoriana.
O fenômeno Medjugorje não teve um "reconhecimento oficial"; também é claro que foram dadas duas orientações preciosas que parecem como uma "mudança de paradigma teológico avaliativo" dos "fatos sobrenaturais", da "piedade popular":
1. A "percepção" dos indivíduos sempre desempenha um papel determinante, inclusive na "percepção de Deus";
2. A "experiência religiosa" pode produzir bons frutos, além de uma "doutrina ambígua" presente em alguns grupos. A Nota solicita aos vários bispos que vigiem sobre as experiências religiosas dos indivíduos e dos grupos; ao mesmo tempo, remetendo às normas, pede para "apreciar o valor pastoral e promover também a difusão dessa proposta espiritual".
A Nota não se limita a pronunciar-se sobre a ambiguidade do fenômeno, mas preocupa-se que este "fenômeno espiritual" possa ser utilizado de forma inadequada.
Acredito que esse seja um elemento essencial de toda a declaração do Dicastério: atenção ao dado em si (avaliação doutrinária), mas com a promoção da experiência religiosa (proteção da experiência espiritual).
Uma preocupação que poderia ser estendida a toda a realidade eclesial: percepção e uso inadequados são os elementos essenciais sobre os quais, não apenas em Medjugorje, deve-se vigiar.
"Falsa percepção" e "uso inadequado" podem se esconder também nas assembleias dominicais, nas práticas penitenciais, nas palavras homiléticas, nas aulas de teologia, nas catequeses, durante transmissões televisivas ou radiofônicas...
As experiências devem ser guiadas, não impostas nem bloqueadas. Por isso, acredito que seja justo retomar as palavras de mons. Battaglia, que hoje fez a homilia por ocasião da solenidade de São Januário (padroeiro da diocese de Nápoles), em referência ao fenômeno da "liquefação do sangue". Acredito que seja um bom exemplo de como guiar a percepção e o uso adequado das devoções que acompanham as experiências religiosas.
Dom Mimmo declarou:
"Eu lhes peço: não devemos nos preocupar se o sangue desta relíquia se liquefaz ou não. Mas devemos nos preocupar se o que corre em nossas ruas e em nosso mundo é o sangue dos deserdados, dos marginalizados, dos últimos, dos inocentes" (cf. min. 44,55: URL: Aqui.).
Não os "sinais sobrenaturais", mas "a experiência da e na fé".
Aos pastores, portanto, o dever de vigiar.
Ao magistério teológico, se correto, o dever de promover essa vigilância.
[1] Dicastero per la Dottrina della Fede, “La Regina della Pace”. Nota circa l’esperienza spirituale legata a Medjugorje. URL: “La Regina della Pace”. Nota circa l’esperienza spirituale legata a Medjugorje (19 settembre 2024) (vatican.va)
[2] URL: Aqui.
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Lourdes, Fátima e Medjugorje: uma mudança de paradigma teológico? Artigo de Umberto Rosario Del Giudice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU