19 Setembro 2024
Essa retórica nos Estados Unidos sobre o “vírus chinês” durante a pandemia desencadeou um aumento dos ataques racistas contra asiáticos, demonstrando que o medo fabricado de um lugar distante como a China também pode semear o ódio contra pessoas percebidas como originárias desse lugar.
O artigo é de Fan Yang, professora de Estudos de Mídia e Comunicação na Universidade de Maryland, publicado por Nueva Sociedad, setembro de 2024.
O espectro da China apareceu na campanha presidencial dos Estados Unidos. Enquanto os democratas se concentram no problema da competição comercial e tecnológica, os republicanos destacam a necessidade de “proteger” os Estados Unidos de forças estrangeiras e acusam alguns democratas de serem “marxistas” e “amigos da China”.
No discurso na Convenção Nacional Republicana de julho de 2024, Donald Trump mencionou o país asiático 14 vezes.
Em seu discurso de 92 minutos, o ex-presidente reciclou seu conceito amplamente criticado do “vírus da China” para a pandemia de covid-19, afirmou que a China estava roubando empregos na indústria automobilística e se vangloriou de que seu governo havia vencido a China em várias frentes.
A China também esteve presente nos principais discursos da Convenção Nacional Democrata de 2024. Na primeira noite, o presidente Joe Biden afirmou que, ao assumir o cargo, “a opinião geral era que a China inevitavelmente superaria os Estados Unidos”. E acrescentou: “Ninguém diz isso agora”.
A candidata democrata à presidência, Kamala Harris, ecoou esse sentimento na última noite, afirmando que, se eleita, garantiria que “os Estados Unidos, e não a China, ganharão a competição pelo século XXI”.
Como especialista em representações da China na cultura midiática e na política dos Estados Unidos, acredito que o fato de a China estar entrando lentamente na retórica eleitoral não é uma surpresa, assim como o desequilíbrio de ênfase que as candidaturas democrata e republicana colocam nesse país.
Desde que Biden abandonou a corrida presidencial, os candidatos democratas aparentemente limitaram suas referências à China na campanha, em contraste com seus colegas republicanos.
Trump e seus aliados republicanos há muito recorrem à China para se posicionarem como anticomunistas e polirem suas credenciais de “America First” (Primeiro os Estados Unidos). Para Trump, em particular, isso é uma estratégia eleitoral testada e comprovada. No período que antecedeu as eleições de 2016, Trump mencionou a China com tanta frequência que o jornal Huffington Post produziu um vídeo amostrado em que o candidato repetia “China” 234 vezes.
Essa situação continuou durante o atual ciclo eleitoral.
Além das frequentes menções nos discursos de Trump e outros, a plataforma republicana de 2024 enfatiza a “independência estratégica segura da China” como um compromisso-chave, por meio da limitação do comércio e do investimento, assim como a necessidade de “contrabalançar a China” para “retornar a Paz por meio da Fortaleza”. Em contraste, outros países percebidos como adversários, como Rússia e Irã, não receberam nenhuma menção na plataforma oficial republicana.
Enquanto isso, o Projeto 2025 (o plano de políticas da conservadora Heritage Foundation, que costuma ser associada a Trump, embora seus responsáveis pela campanha neguem o vínculo) menciona a China nada menos que 483 vezes em um documento de 922 páginas. O site oficial do projeto até enfatiza o objetivo de “enfrentar a China” na seção “Sobre”.
Não surpreendeu, portanto, que setores apoiadores de Trump na imprensa americana tenham se precipitado sobre a notícia de que Tim Walz, o governador de Minnesota escolhido para ser companheiro de chapa de Harris, deu algumas aulas na China e havia viajado ao país cerca de 30 vezes desde 1989, incluindo sua lua de mel.
Embora Walz tenha dito que “não é nem um ‘matador de dragões’ nem um ‘abraçador de pandas’” em relação à China, alguns comentaristas conservadores o retrataram como um “marxista” que faria a China comunista “muito feliz”. Jesse Watters, apresentador do Fox News, chegou a pedir que Walz fosse submetido a uma verificação de antecedentes pelo FBI devido aos seus vínculos com aquele país.
Em 16 de agosto, o presidente da Comissão de Supervisão e Responsabilidade da Câmara dos Representantes, o republicano James Comer, abriu uma investigação sobre os relacionamentos de longa data de Walz com a China.
Os vínculos que alguns republicanos consideram suspeitos incluem a empresa de viagens educacionais Educational Travel Adventures, que Walz dirigiu da esposa, Gwen Walz, entre 1994 e 2003. A empresa que fundaram ajudou estudantes de pequenas cidades a viajar para a China para aprender sobre a história e a cultura do país. Walz também fez parte da Comissão Executiva do Congresso sobre China, encarregada de monitorar os direitos humanos, durante seu tempo na da Câmara dos Representantes.
Embora Walz tenha criticado constantemente o governo chinês, também reconheceu que a relação entre os Estados Unidos e a China não precisa ser de adversários e que pode haver muitas áreas de cooperação.
Apesar de sua vasta experiência relacionada à China, o candidato democrata à vice-presidência ainda não mencionou o país durante seus principais discursos de campanha: a China não foi mencionada em seu discurso na Convenção de seu partido, ao contrário dos discursos de Harris, Trump e do rival de Walz para a vice-presidência, J.D. Vance.
A aparente relutância de Walz em destacar seus conhecimentos sobre a China também contrasta com o que fez um anterior candidato presidencial republicano, Jon Huntsman, que se desempenhou como embaixador na China e fala chinês fluentemente. Em sua campanha de 2011, possivelmente um momento diferente nas relações entre os Estados Unidos e a China, Huntsman demonstrou repetidamente seu domínio do idioma chinês, o que lhe rendeu muitos elogios.
Uma das razões que explicam a ênfase diferente em relação à China das duas candidaturas presidenciais é, acredito, o diferente quadro da eleição. Para os democratas, a próxima votação tem a ver com o movimento: eles a apresentam como uma opção entre retroceder ou avançar. Lemas como “Não vamos voltar atrás” de Harris pressupõem que os Estados Unidos e seus habitantes estejam marchando em direção a um futuro promissor de unidade e oportunidades que, em sua opinião, deixa para trás o caos, a divisão e a repressão do passado.
Nesse quadro, o papel da China como ameaça baseia-se principalmente na competição no campo das tecnologias avançadas; as menções de Harris em seu discurso na Convenção referiram-se ao futuro do espaço e à inteligência artificial.
Em contraste, a campanha republicana baseia-se mais em proteger uma essência americana imaginária de forças estrangeiras, e é por isso que se ouve mais Trump e Vance falando da muito dramatizada “invasão” de imigrantes que cruzam ilegalmente as fronteiras e “trazem” drogas e crimes.
Eu diria que é a mesma lógica que articula a frequente invocação da China pelo Partido Republicano como uma ameaça geopolítica e econômica.
Afinal, Trump há muito atribui uma grande quantidade de ações ao governo chinês, desde chamá-lo de criador do “vírus de Wuhan” até culpá-lo por ter produzido o “engano” das mudanças climáticas. Em seu discurso na Convenção, Vance vinculou a China diretamente ao comércio transfronteiriço ilegal de drogas. Em um comício em Michigan no dia 27 de agosto, também acusou Harris de usar dólares dos impostos para pagar ao Partido Comunista Chinês para construir fábricas em solo americano, omitindo o fato de que o programa foi desenhado pelo corpo legislativo liderado pelos republicanos.
Essa caracterização da China se encaixa no que, em meu livro Disorienting Politics [Política desorientadora], denominei a “racialização” do Estado chinês.
Essa retórica descreve a China como um poderoso agente que realiza ações nefastas que só podem prejudicar os Estados Unidos.
Nas últimas duas décadas, alguns meios de comunicação americanos têm misturado o governo do Partido Comunista da China com o fascismo e o totalitarismo.
Essa retórica nos Estados Unidos sobre o “vírus chinês” durante a pandemia desencadeou um aumento dos ataques racistas contra pessoas asiáticas, demonstrando que o medo fabricado de um lugar distante como a China também pode semear o ódio contra pessoas percebidas como originárias desse lugar.
Nesse sentido, a relutância de Walz em invocar a China pode responder a uma negativa em simplificar demais a complexa sociedade daquele país. “A melhor maneira de estudar as pessoas é ouvi-las contar como é o lugar onde vivem”, disse o ex-professor de estudos sociais em 1991, enquanto descrevia um programa de amigos por correspondência entre os Estados Unidos e a China com um jornal local.
À medida que a campanha eleitoral avança, é provável que o espectro da China retorne, embora os títulos continuem dominados por conflitos geopolíticos mais urgentes.
Afinal, até mesmo um dos ex-alunos de Walz – um autodenominado “republicano latente” que tentava defender o candidato à vice-presidência dos ataques republicanos ao seu caráter – aconselhou os responsáveis pela campanha de Trump a “focar na política e relacioná-la com a China”.
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O "espectro chinês" se infiltra na campanha presidencial americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU