20 Agosto 2024
"Ninguém foi mais nem por tanto tempo o rosto (...) de um tempo e de um ofício – a encenação, o teatro e o cinema – que Alain Delon. Notadamente no espaço europeu. Mais diretamente no francês e no italiano. Ninguém, assim, também, encarnou melhor esse papel da imagem serena e concreta de um país. Um país – ora a Itália ora a França – cansado de guerra e carregado em desilusões", escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (Brazil Publishing, 2019).
Alain Delon se foi. E, com ele, várias camadas da mais profunda e persistente cultura universal. Notadamente aquelas edificadas pela sétima arte. Mais francamente no cinema europeu. Muito densamente no espaço franco-italiano. E sempre fortemente advindo do no mais puro e inequívoco savoir faire francês.
Um monumento, assim, desaparece. Uma experiência e uma existência se apagam. Todo um planeta se erode. Alain Delon não é mais. E, sem ele, um tempo se vai. Um tempo em que ator e personagem se confundiam. Onde a arte e a vida se fundiam. Quando o sonho fluía tão real quanto a realidade. Onde encenar e viver não tinham verdadeira distinção. Como realizar e desejar. Feito margens de um mesmo rio. Sem dias obtusos nem noites sem sal. Sem terceira margem para fugas em escapadas noturnas. Sem em ensaios ininterruptos em temporais.
Os entendidos se amparam em Diderot (1713-1784) para aferir a pulsão a alma de um verdadeiro ator e identificam se tratar daquele que não, necessariamente, estuda nem teoriza a encenação. Primeiro por não ser teórico. Segundo por não precisar sê-lo. Aquele que, por não precisar nem querer estudar nem teorizar, simplesmente, vive. E, vivendo, com afã de plenitude, lança-se ao desconhecido. Aos dilemas de Shakespeare. Ao ser ou não ser. Com o desejo de partir tornar-se algo. Ou, do contrário, apagar-se no tédio do nada ser.
Alain Delon foi. Partiu. Atravessou tormentas. Superou a indecisão. E, ao fim, tornou-se algo. Em verdade, tudo. Foi o maior ator – e, quem sabe, o maior artista – de sua geração. Sendo, ao mesmo tempo, alma, vibração e paixão. Pulsão, natureza e verdade. Tudo à flor da pele. Sem teorização. Pura fluição. Águas em foz. Catadupas. Sem desconforto nem concessão. Como em Quevedo, “arando o mar”. Se meio-termo. Onde tudo vai latente. E todos sabem. É viver ou viver. E Alain Delon viveu. Primeiro pela beleza.
Esse espécime francês foi, sinceramente, dos homens públicos mais, simetricamente, belos do planeta no século XX. Coisa de cinema. Tendo por concorrente, quem sabe, apenas Marcello Mastroianni (1922-1996). Outro gigante em tudo que fez. Mas Alain Delon, nesse quesito, foi mais. E foi, então, por assim dizer, antes de tudo, um rosto, um olhar, um semblante.
Depois, de rosto, ele foi uma presença. Presença de corpo. Presença de espírito. Presença presente. Onde Alain respondia por Delon e Delon, por Alain. Sempre claro e escuro, black and white, sol e chuva. Um homem de carne e osso. Mas, também, de coração. E com os defeitos e as imperfeições de homens de carne, osso e coração. Afinal, vivia no Olimpo, mas era humano. Por certo, demasiado humano. E, por fim, esse humano, demasiado humano também era um estilo.
Um estilo que expressava o modelo acabado de charme, elegância e personalidade, cortesia, cortejo e sedução. Tudo à moda antiga. Ao estilo francês. Como encarnação e perpetuação de mundos desabados. Mundos que, por claro, não existem mais. Mundos que, um dia, foram a França, a Itália e a Europa, antes das tragédias do século XX, as guerras totais, que desencantaram de vez a existência, roubando dos olhares a sua inocência, tornando o respirar mais hesitante e fazendo da vida um singrar inseguro.
Mundos que permaneciam respirando com a vibração de samurai, com a constância do guepardo, com a imperiosidade de César, com a audácia do Monsieur Klein, com a eficácia dos eyes of the street. Todas personas de Alain Delon. Que, por destino, ele, agora, leva consigo para destinos impenetráveis.
Quando Jean Gabin (1904-1976) se foi, em 1976, parecia evidente o crepúsculo de uma bela época. Quando Jean-Paul Belmondo (1933-2021) se foi, em 2021, esse crepúsculo já era noite fria e muito escura. Quando Jean-Luc Godard (1930-2022) preferiu, no ano seguinte, acompanha-los tudo ficou ainda mais sombrio e nada parecia recuperar, nas telas, o desejo por dias bons.
Tudo anunciava um fim de partida. Tudo aludia a fins de tempos. Todos os previam para o fim de mês. O sinistro era completo e agudo demais. E, sendo assim, anunciava tempos aziagos. Muito tristes e imperfeitos. Imperfeitos demais. E, por princípio, fora de lugar. E, agora, sem Alain Delon, perdem muito mais. De saída, o sentido. De conteúdo, todas as suas rugas. De arremate, a própria face.
Ninguém foi mais nem por tanto tempo o rosto – “le visage” – de um tempo e de um ofício – a encenação, o teatro e o cinema – que Alain Delon. Notadamente no espaço europeu. Mais diretamente no francês e no italiano. Ninguém, assim, também, encarnou melhor esse papel da imagem serena e concreta de um país. Um país – ora a Itália ora a França – cansado de guerra e carregado em desilusões. Nem mesmo Marlon Brando (1924-2004).
O que demonstra que vai complexo ser o todo poderoso chefão, mas continua impossível encarnar César, como Alain Delon – e só ele – encarnou. E, por isso mesmo, tudo conquistou e tudo venceu. Partido, agora, neste domingo, 18 de agosto de 2024, puro. Sem dever nada. Nem a si nem a ninguém.
Lino Ventura (1919-1987), também gigante, não teve nenhuma dessas pretensões de grandeza. Mas quando se foi, em 1987, soube-se logo que uma página robusta do métier de ator terroir, enraizado nas artes e nas águas profundas de um país, ia sendo arrancada do livro de ouro das artes expressivas mundiais. Do cinema à frente.
Por isso, entre os brasileiros, louve-se Amácio Mazzaroppi (1912-1981), gênio e gigante vivo em nós. E, por favor, deseje-se, sempre, vida longa a Fernanda Montenegro, Ary Fontoura, Lima Duarte, Tony Ramos, Antônio Fagundes e tantos outros. Pois, entre os franceses, após Ventura, foi-se notando que o cinema nacional perdia muito embora ainda tivesse valências. Meias-vidas. Evidências. Brigite Bardot vivia – e vive – e nela pulsava o paradigma do monde en rose que a brutalidade dos dias sempre ensejou extirpar. Gérard Depardieu também vivia – vive – e, com ele, Asterix, os Valorosos, o Monte Cristo, Danton ainda respiram. Catherine Deneuve, musa maior, também seguia lá – e ainda hoje honra o melhor da sétima arte em francês.
E o que dizer de Daniel Duteuil, Isabelle Huppert, Juliette Binoche; gigantes em seu ofício, infinitas personas por vida? Pode-se dizer-se tudo. Menos que sejam, eles próprios, capazes de suportar o eclipse e o fim da época de ouro do cinema mundial francês perto de cinquenta anos sem Gabin, quase quarenta sem Ventura, perto de trinta sem Mastroianni, exatos vinte sem Marlon Brando, plenos três sem Belmondo e, agora, menos de um dia e poucas horas sem Alain Delon. Alain Delon foi sem nenhuma hesitação um verdadeiro star. Quem sabe, o último entre os grandes. Foi um ícone. O guardião de um ofício. O sustentáculo moral do fazer de uma arte. Longe, muito longe, assim, de permitir-se vedete.
E, por isso, como aludiu a própria Catherine Deveuve, tão logo soube de sua passagem, sem ele, Alain Delon, as cortinas se fecham. Nascido na periferia de Sceaux, na França, em 1935, Alain Delon era filho de um pequeno empresário, proprietário de um pequeno cinema, o Regina, e de uma mãe, funcionária de uma farmácia, que se separaram em 1939-1940, deixando-o em desamparo e obrigado a se refugiar de pensão em pensão até se fixar na pensão de Issy-les-Moulineaux.
Nessa última pensão, o jovem órfão de pais vivos foi iniciado ao canto, ingressado num coral e, para a surpresa geral, tornado bom cantor. E, se isso não bastasse e para a surpresa dele próprio, o seu coral seria escolhido para brindar a recepção do bispo apostólico Angelo Roncalli (1881-1963) – futuro Papa João XXIII – que o bendiria com a moção “você tem talento, menino. Já é bom. Mas será grande”. E, claro, foi. Os anos se passaram. A guerra acabou. E o talento do menino, como previsto, em tudo, aflorou.
Aos quinze anos, por volta de 1950, profundamente marcado pelos feitos da resistência francesa guiada pelo general De Gaulle, ele se decidiu pelas forças armadas. Escolheu, de início, a aeronáutica. E, para formação, migrou para Chicago, nos Estados Unidos. Onde percebeu não ser o que ele, de fato, queria. O que o levou a seguir para a marinha. E, sendo marinheiro, serviu a França na Indochina. Ele tinha dezessete anos. Era, antes de tudo, um patriota. Queria o seu amor à França com armas nas mãos. Sendo – como o tempo exigia – altivo e viril. Nem morno nem frio. Ardente defensor de seu país.
De retorno à França e, agora, à Paris, em 1956, ele precisou se refazer. Renascer de novo e novamente. Ao menos, profissionalmente. E, para tanto, começou a frequentar a noite da cidade luz. Mais diretamente em seus recantos boêmios. Mais precisamente Pigalle. Povoado, à época, pelo círculo de artistas alemães. Onde se aproximaria da atriz Brigitte Auber que o apresentaria ao realizador Jean-Claude Brialy que o proporia acompanhar, com toda a trupe de artistas, a edição do Festival de Cannes de 1957, restando a Alain Delon, apenas, aceitar e ir. Uma vez lá, ele foi ele mesmo e não passou despercebido. Foi, imediatamente, localizado pelo afamado caça-talentos hollywoodiano, Henry Wilson (1911-1978), que o recomendou ao realizador, também norte-americano, David O. Selznick (1902-1965), baseado em Roma.
Alain Delon, assim, de Cannes, partiu para Roma. E em Roma, adentrou, de fato, no métier, que, ao fim das contas, sempre foi seu e só seu. Aprovado, então, no teste de atores aplicado por David O. Selznick, Alain Delon assinou um contrato de sete anos. Comprometeu-se a aprender o inglês. Retornou a Paris. E ficou esperando o primeiro roteiro. Que veio rápido. O ano era 1957. O diretor, Yves Allègret. A peça, Quand la femme s’en mêle. Foi o seu começo. Discreto, mas penetrante. Juvenil, mas, já, grandioso.
Depois da estreia, ele voltaria em Sois belle et tais-toi de Marc Allégret (1900-1973) em 1958, Christine de Pierre Gaspard-Huit (1917-2017) também em 1958 e Faibles femmes de Michel Boisrond (1921-2002) em 1959. 1959 quando o jornalista Georges Beaume assumiu a gestão de sua carreira, tornando-se seu empresário, e, nessa condição, promoveu, imediatamente, ainda em 1959, o encontro dele com Luchino Visconti (1906-1976), patrono do cinema planetário.
O encanto entre os dois, Alain Delon e Luchino Visconti, era previsível. Mas a sua intensidade instantânea e mútua causou espécie. Inclusive a eles dois, ator e realizador. Que, em urgência, tornaram-se amigos. E começariam, sem tardar, a marcar a história do cinema, francês, italiano e mundial, para a eternidade. Ainda em 1960 com o sucesso inconteste de Rocco et ses frères.
Depois, em 1961, com a estreia de Alain Delon, quem sabe, para apurar a sua arte, no teatro com Domage qu’elle soi une putain. Tudo em prenúncio da obra, até ali, maior, deles dois, o Guépard, de 1963. É difícil mensurar o impacto estético e moral desse guepardo francês sobre a cena italiana no após-guerra, após Mussolini, após Hitler, após Vichy, após fim do mundo. Quem sabe, entre os vivos, apenas Sofia Loren consiga dimensionar. Alain Delon completara 28 anos na véspera. Era, assim, um jovem homem bem formado. Mas, em alma, não passava de menino. E, como menino, agora, retornava a Cannes – onde tudo, em algum sentido, para ele, começou – para receber a Palma de Ouro, o maior prêmio oferecido aos praticantes do invento dos irmãos Lumière. Impressionante. E foi assim.
Alain Delon, ali, ia consagrado o ator, o astro, o talento e o rosto mais festejados do mundo. Do Japão aos Estados Unidos, do Reino Unido à África do Sul. Em toda parte, onde ninguém, com alguma cultura e algum bom gosto pela sétima arte, passou por seu nome indiferente. O resto é história. Que entrou para a história. Marcando-a para sempre. Servindo, doravante, somente de inspiração. Foram, ao todo, mais 90 filmes com mais de 135 milhões de espectadores – apenas nas bilheterias francesas. Impossível, assim, distinguir, nisso tudo, o que foi melhor. Monsieur Klein, Le professeur? Enfim.
Ninguém da geração de Alain Delon atuou mais nem melhor que ele. Ninguém foi mais presente. Tampouco emplacou mais sucessos. E, se isso não bastasse, o astro ainda foi, política e socialmente, atuante em todo o seu tempo. Feito um intelectual público, na acepção mais aguda da expressão praticada por Jean Paul Sartre e Raymond Aron. Fiel seguidor do gaullismo e dos preceitos originais do general, Alain Delon sempre se fez uma certa ideia da França. Jamais se envolveu, é verdade, eleitoralmente, em política. Mas nunca esteve longe dela. Teve controvérsias com, praticamente, todos os partidos, governos e presidências sob a Quinta República Francesa, inaugurada pelo general De Gaulle em 1958.
Jamais se sensibilizou com tendências à esquerda. Sempre foi, em contrário, muito cético – e, às vezes, também áspero – aos socialistas e comunistas, no poder ou fora dele, fossem de Georges Marchais (1920-1997) ou François Mitterrand (1916-1996). Para além disso, Alain Delon também foi afortunadamente aferrado aos esportes. Não, necessariamente, como esportista. Mas como admirador, espectador e estudioso. E, devido a isso, possuía conhecimento aprofundado sobre o cotidiano de várias modalidades. O que levou a televisão francesa a convidá-lo, em variadas ocasiões, para comentar jogos e, inclusive, servir de consultor para programas esportivos. Os Jogos Olímpicos de Atlanta de 1996 foram uma ocasião onde ele, nessa persona de comentarista, brilhou sublimemente. A Copa do Mundo da França de 1998 foi outra. Na final da competição, ele ingressou no estúdio em pessoa e, claro, roubou a cena. Primeiro por seus comentários agudos. Depois pela sua presença natural de astro sem par. O que, novamente, confirma que, por todos os prados onde passou, algo do seu brilho Alain Delon deixou.
Em 2019, todo o seu brilho o levou de volta a Cannes. Agora para receber a Palma de Ouro pelo conjunto de sua obra. Uma emoção sem par tomou conta dele e de todos. Ele sabia, exatamente, quem era e o que fizera. E, considerou aquele momento, a sua aposentadoria. Do encenar e das telas. Mas, todos sabem, não só. Por isso, diante de sua filha, seu último grande amor, e do mundo inteiro ele reportou que, após 62 anos de carreira, aquela honraria, nada mais era que um prêmio de fim de carreira, fim de vida; homenagem póstuma, a um monumento vivo, que, em breve, haveria de partir.
Pouco depois, ele seria acometido por um acidente vascular cerebral (AVC), que indicaria, de fato, que ele estava prestes a, fisicamente, verdadeiramente, partir. Doravante, ele foi reduzido em potência e humor. E não o habilitava a fugir do reencontro com seus amigos e mestres Gabin, Ventura e Belmondo. De toda a sua vida – quem sabe em memória de sua infância –, ele sempre se portou triste, pessimista, melancólico e nostálgico. Mas, agora, após o AVC, ele vivia tudo isso muito mais. Quem sabe, pela convicção da imensidão do glamour que ele – e só ele – fabricou e ia ficando pra trás. Talvez pela tristeza de não localizar ninguém, em vida e das novas gerações, verdadeiramente, capaz de suportar o seu legado, apanhar o bastão e, avante, fazer mais e melhor. Seguramente pela certeza de que, sem ele, o melhor da arte que ele tanto amou – a encenação, em teatro, cinema e televisão – encontraria também o seu fim. Daria um certo adeus. Como quem, em verdade pensa, sabe e diz: adeus a tudo, adeus, Delon.
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Adeus, Delon. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU