20 Junho 2023
"A morte do general De Gaulle, em novembro de 1970, deixou um vazio imenso, mas a sua falta hoje parece ser mais intensa que outrora. Quase nenhum mandatário no mundo hodierno consegue se arvorar nos passos do velho general francês. O presidente Lula da Silva talvez tenha sido o único a estar às portas sê-lo", escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”, em artigo enviado diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
O apelo à razão, proferido por Charles De Gaulle, na BBC de Londres, no 18 de junho de 1940, representa um dos gestos políticos mais relevantes e eloquentes do século XX. Diante da ofensiva nazista e da capitulação do governo francês, o futuro general fugiu da França para a Inglaterra e na qualidade de militar francês herói Grande Guerra de 1914-1918, apresentou, diante da hecatombe francesa, a singela pergunta aos ouvintes do mundo inteiro: “teria a França dito a sua última palavra?” Ele perguntou e responder: “não”. Um “não” sonoro. Um “não” convicto. Um “não” histórico. Um “não” que deu início à resistência moral e intelectual mundial aos movimentos de Hitler.
Dessa convicção moral e intelectual, anos adiante, o inesquecível André Malraux chamaria a atenção para a importância da “força do ‘não’ na História”. E lembraria se tratar de um “não” que apenas estadistas conseguem encarnar e suportar.
Um “não” que altera o curso de destinos humanos. Um “não” que faz lembrar que a mediocridade da servidão não pode nem deve superar a imensidão da honra, do bom-senso e do interesse superior de pessoas, pátrias, nações e civilizações. Um “não” que tange o caráter de sociedades.
Quando as tropas de Hitler devastaram a capacidade militar e estratégica da França em 1940, franceses e europeus com memória, vivência ou cultura para se lembrar do tormento de 1870-1871 e da tragédia de 1914-1918 reconheciam a dimensão e a relevância multidimensionais daquela derrota.
O marechal Pétain, herói da Grande Guerra e guardião dos desígnios da França naquele momento, decidiu capitular frente ao rolo compressor das tropas alemãs. A memória da morte do milhão e meio de franceses no grande conflito de 1914-1918 conduzia o marechal a sucumbir à derrota para, talvez, inibir carnificina similar em 1940. Para muitos, uma postura nobre e digna. Para os resistentes, que ficaram do lado “correto” da História, uma desonra sem palavras. Inicialmente militar, mas também intelectual, moral, cultural, estratégica, política e de decência.
Comparação não é razão – especialmente porque nada talvez seja comparável às intempéries da Segunda Guerra Mundial –, mas quem acompanhou a resistência dos bravos e bravios vietnamitas ou mesmo, mais recentemente, a postura dos russos e ucranianos que, em pleno século XXI, prometem “guerrear até o último homem” pode, retroativamente, notar que a dimensão irreconhecível da capitulação dos franceses aos imperativos de Hitler.
O “não” do general De Gaulle, naquele 18 de junho de 1940, gerou estímulos para uma resistência mundial ao nazismo, ao fascismo e à fúria de Hitler. Quem decidiria a sorte do conflito seriam soviéticos e norte-americanos. Homens e dinheiros de Stálin e Roosevelt. Mas o gesto do general francês ficaria marcado como o contraponto das forças profundas da História.
A humilhação de 1870-1871 e de 1914-1918 estraçalhou o moral dos conterrâneos de Voltaire e Clemenceau, mas não eliminou a memória multissecular de dignidade de um povo. Aquela dignidade que impõe “cair em pé”. “Caso se caia, que se caia em pé”, como diz o adágio.
O momento-limite de 1940 conferiu a toda uma geração a opção da dignidade ou da desonra traduzida em conduzir o país da Revolução para a irrelevância ou resistir, inclementemente, “até o último homem”.
Essa resistência imantada no apelo do 18 de junho de 1940 permitiu à França, mesmo derrotada e humilhada, ingressar no hall das grandes nações após o conflito.
Não há enigma nem mistério à razão do ingresso da França como membro-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, principal organismo internacional, saído de 1945. Não há enigma nem mistério à razão da manutenção da França como referência intelectual em todo o planeta durante toda a Guerra Fria – e, em parte, menos, mas ainda, depois. Não há enigma nem mistério para o quase ocaso da influência da França e dos franceses neste quarto do século XXI.
Perdeu-se, paulatinamente, após o “não” francês à intervenção norte-americana ao Iraque em 2003, o sentido, a nobreza e a profundidade do “não” na História. A pasteurização cultural promovida pela aceleração da globalização tornou frações da França e de franceses incorrigivelmente derrotados da mundialização. O mercado e as finanças parecem ter corroído o sentido da dignidade política também nas paragens de Tocqueville.
A morte do general De Gaulle, em novembro de 1970, deixou um vazio imenso, mas a sua falta hoje parece ser mais intensa que outrora. Quase nenhum mandatário no mundo hodierno consegue se arvorar nos passos do velho general francês. O presidente Lula da Silva talvez tenha sido o único a estar às portas sê-lo.
Em seus mandatos do início do milênio, o retirante de Garanhuns e líder sindical do ABC, tornou o Brasil um dos países mais respeitados e respeitáveis do planeta. Em grande parte, pela força da palavra tangida por uma imensa dignidade de convicção.
Resta saber se agora, vinte anos depois do início de seu primeiro mandato em 2003 e mais de oitenta do apelo do 18 de junho de 1940, o presidente brasileiro vai seguir se mirando no exemplo do significado do gesto do general francês reafirmando o “não” a desonra como princípio de dignidade.
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O significado do apelo do 18 de junho de 1940. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU