31 Julho 2024
"Os desesperados de hoje se assemelham aos de Corinto, lamentando a morte de seus entes queridos antes da vinda final de Cristo", escreve Roberto Mela, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimanna News, 28-07-2024.
O exegeta milanês Franco Manzi, especialista em estudos paulinos, docente da FTIS em Milão e de outras instituições acadêmicas, leva o leitor ao coração do apóstolo Paulo em seu relacionamento profundo e cheio de nuanças com a comunidade de Corinto que ele fundou. Ele faz isso examinando extensas passagens da Primeira Carta aos Coríntios.
Livro Sfidare la crisi. La missione creativa di Paolo a Corinto (Sentieri di luce) de Franco Manzi
Na primeira parte da obra (p. 15-64), que de fato abrange 1Cor 1-6, o autor descreve a metrópole multiétnica e multirreligiosa de Corinto, à qual, após a decepção pastoral que teve em Atenas (que deve, no entanto, ser submetida a um discernimento apropriado), Paulo proclama a loucura evangélica da cruz. A gnose fornece apenas uma ilusão de salvação, assim como a filosofia e a retórica devem ser devidamente confrontadas com a singularidade decisiva da fé.
Manzi descreve as estratégias da primeira evangelização em Corinto, um corpo de Cristo de ossos quebrados pelas divisões, marcado pelas diferentes origens culturais e religiosas, com diferentes condições socioeconômicas que se chocam entre si, mas também caracterizado pela presença de diferentes líderes carismáticos.
Paulo lembra aos cristãos as perspectivas de um caminho comunitário, uma vez que eles são o corpo eclesial de Cristo e, ao mesmo tempo, templo eclesial do Espírito.
Na segunda parte do livro (p. 65-110), Manzi estuda 1Cor 12-14, debruçando-se no hino eclesial do ágape-caridade e sua constelação. O ágape de Cristo tem a primazia e deve ser comparado com o eros e Deus.
O ágape reveste, envolve e domina, mas também representa o critério decisivo para resolver o problema pastoral dos carismáticos.
Diante do impressionante carisma da oração em línguas, Paulo exalta e prefere o carisma "edificante-construtivo" da profecia. O apóstolo lembra o discreto fascínio do mistério e, com uma inteligente intervenção pastoral de relativização do extraordinário e da exaltação do construtivo, consegue fornecer os elementos para superar os complexos de superioridade e de inferioridade que feriam a comunidade de Corinto.
Paulo reconhece com gratidão os carismas, mas recorda vividamente sua conotação de fecundidade comunitária e a permanência eterna do ágape em relação a todos os outros carismas.
Na terceira parte da obra (p. 111-174), o estudioso aborda a questão decisiva da morte e a luz fulgurante e reconfortante que ela recebe da morte e ressurreição de Cristo. Estamos no c. 15 de 1Cor. Os desesperados de hoje se assemelham aos de Corinto, lamentando a morte de seus entes queridos antes da vinda final de Cristo.
Paulo anuncia a morte escandalosa de Cristo que ocorreu "segundo as Escrituras" e "pelos nossos pecados", ou seja, para eliminá-los. Estreitamente ligada a ela, Paulo anuncia, ao mesmo tempo, a gloriosa ressurreição de Cristo, que também ocorreu "segundo as Escrituras" e "no terceiro dia", de acordo com uma fórmula relativamente frequente nas Escrituras.
Paulo, então, ilustra uma espécie de escada nos retornos à vida em relação à ressurreição de Cristo, para depois se deter na gloriosa condição do Ressuscitado, o primogênito dos ressuscitados. Depois são descritos os encontros com o Cristo ressuscitado, seus sinais oferecidos aos vários crentes e a fisionomia da nova evangelização centrada na ressurreição.
A quarta parte do estudo (pp. 175-259) é caracterizada como uma reflexão de viés bíblico-teológico sobre os aspectos que ligam a morte e o que a segue, especialmente a ressurreição e os diferentes estados de vida professados pela tradição viva da Igreja.
Da "concupiscência" da vida, passa-se a refletir sobre a náusea de "ser demais". A tradição viva da Igreja é confrontada com a hipótese de que os mortos não ressuscitam e com a visão materialista da revivicação de um cadáver.
Manzi ilustra a visão espiritualista da imortalidade da alma e, em seguida, enfatiza a singularidade da pessoa humana e a concepção da imortalidade da alma encontrada no livro da Sabedoria.
Depois é estudada a imortalidade "como" a de Cristo. A reflexão sobre o juízo e a ressurreição precede a reflexão sobre o paraíso e os exercícios para o coração, a reflexão sobre o inferno e suas visões e, finalmente, a reflexão sobre o encontro com o Ressuscitado e o purgatório. O itinerário termina com uma meditação sobre Cristo, a meta de nossa esperança.
Em nossa análise do livro de Manzi, acompanhamos o desenvolvimento de sua reflexão sobre algumas passagens da Primeira Carta aos Coríntios.
Um conselho que pode ser dado ao leitor, entretanto, é ler atenta e imediatamente a Conclusão do livro (pp. 260-268). Nela, "os afetos pastorais de Paulo e os sentimentos de Cristo" são ilustrados com uma riqueza de dados e paixão expositiva. Eles são bem ilustrados na exposição feita ao longo da obra.
O fio vermelho que percorre a Primeira Carta aos Coríntios é - de acordo com Manzi – o nexo entre a configuração do apóstolo Paulo com Cristo e a sua caridade pastoral. Paulo é afetivamente polarizado em Cristo. O apóstolo vive "descentralizado". Não é mais ele que vive, mas Cristo, o Filho de Deus que o amou e se entregou por ele.
Paulo se configura com Cristo. Para Paulo, viver é identificado com Cristo, morrer é um ganho, porque vai se estar para sempre com ele.
Paulo tem certeza de que ressuscitará e, portanto, também vive a morte como uma passagem serena para estar sempre com Cristo. Comparado a ele, tudo é lixo, incluindo até mesmo os grandes privilégios histórico-religiosos concedidos por Deus aos judeus. O amor reconhecedor de Paulo pelo Senhor, o Kyrios Jesus ressuscitado, torna-se o inamovível fundamento de seu amor abrangente pela Igreja, seu corpo, e pelos cristãos, seus membros. Paulo está convencido de que a Igreja é o corpo de Cristo (cf. Rm 12,4-5) e ele a ama com intenso amor pastoral.
O apóstolo, no entanto, não ama a Igreja de forma genérica, como se fosse uma ideia, mas ama cada um dos crentes dentro dela. Ele exorta cada um deles como um pai e uma mãe amorosos, confiáveis e cheios de autoridade (não autoritários).
A preocupação pastoral de Paulo é personalizada. O livro de Atos dos Apóstolos, que deve ser lido em paralelo com os escritos autênticos de Paulo, testifica o amor e o encorajamento incansáveis de Paulo a cada um dos crentes (cf. o Testamento Pastoral de Paulo de At 20 e especialmente At 20,31).
Paulo está profundamente envolvido em nível afetivo em sua atividade pastoral. Vive a caridade pastoral. É isso que permite que Paulo, em 1Cor, enfrentar com determinação pessoal, inteligência pastoral e habilidade pedagógica os vários problemas da comunidade.
Paulo ama os crentes de Corinto, mas não cede a nenhum protagonismo eclesiástico ou ao culto da personalidade. No entanto, sem falsa modéstia, lembra de seu papel paterno e materno-generativo para com a comunidade, tendo sido o primeiro a lhe anunciar o evangelho.
O discurso de Paulo é sempre repleto de agape-caridade "desinteressada". Como apóstolo de Cristo, ele está bem ciente de que desempenha apenas um papel de mediador na salvação divina oferecida aos coríntios pelo próprio Cristo. Os coríntios não são filhos de Paulo, mas filhos de Deus (cf. Rm 8,14-23.29; 9,8.26; 2Cor 6,18; Gl 3,26; 4,5-7).
Somente Deus dá a vida eterna; Jesus Cristo a recebe, como Filho unigênito, e a comunica em seu Espírito a todo homem que a recebe na fé transmitida por apóstolos como Paulo.
Com essa lúcida consciência apostólica, Paulo conseguiu combinar harmoniosamente sua própria carga afetiva com os aspectos mais funcionais de seu ministério apostólico. Ele se entendeu como um embaixador de Cristo, mas nunca como um reles repassador. Nele, todos os afetos, pensamentos e gestos, tempo, energias e carismas, passado, presente e futuro, foram colocados a serviço da Igreja, corpo de Cristo, "seu" Senhor (cf. Fl 3,8).
À imitação de Cristo, Paulo viveu sua missão evangelizadora como celibatário e de maneira fraterna com uma equipe de outros missionários colaboradores. Paulo escolheu anunciar a oferta amorosa de vida vinda do Pai por meio de uma gestão celibatária e fraterna de todas as suas capacidades afetivas.
Ao se configurar com Cristo, Paulo procurou cultivar em si mesmo não apenas seus sentimentos (cf. Rm 15,5; Fp 2,5; Cl 3,12-17), mas também suas "preferências", que aliás são as mesmas de Deus Pai.
Deus ama incondicionalmente os pecadores, atraindo-os a si para uma conversão de vida que lhes doe alegria e festa (cf. Lc 15).
Por sua vez, Jesus preferiu ser amigo de publicanos e pecadores (cf. Lc 7,34).
Paulo escolheu a opção preferencial pelos gentios e pelos "mais fracos" na fé, seguindo essencialmente os critérios seguidos por Jesus. Com isso, Paulo se configurou com Cristo: "Porque, ainda que foi crucificado por fraqueza, todavia vive pelo poder de Deus. Porque nós também somos fracos nele, porém viveremos com ele pelo poder de Deus para convosco" (2Cor 13,4).
O apóstolo amou visceralmente seu povo, mas se houvesse uma escolha a ser feita entre judeus e gentios, Paulo preferia proclamar o evangelho a estes últimos (cf. Rm 15,15-21). Ele parece se identificar com o Jesus testemunhado pelo Evangelho de Lucas, embora seja difícil determinar com certeza a influência literária entre os escritos epistolares de Paulo e o Evangelho de Lucas.
É inegável que Paulo reservou um cuidado especial para os fiéis mais necessitados de Corinto e chamou os "mais fortes" na fé para estarem atentos aos "mais fracos" de consciência (1Cor 8,9-11).
Contra as tendências de viés gnóstico e, em última análise, mais "mundanas", Paulo sempre agiu sabendo que os membros mais fracos do corpo eclesial são os mais necessários e necessitados de cuidados (cf. 1Cor 12,22-23).
"A tal ponto Paulo chegou a imitar Cristo (1Cor 11,1), conclui Manzi em sua obra, que chegou a sentir os mesmos sentimentos que ele (Fl 2,5), a pensar como ele (1Cor 2,16), a ser um só com ele (Gl 2,20; Fl 1,23). Paulo sentia o Ressuscitado tão vivo e real que aspirava a se tornar sua memória criativa: tornar-se Cristo à maneira de Paulo" (p. 268).
Lendo o QRcode fornecido pelo autor na p. 271 será possível acessar uma bibliografia articulada e aprofundada sobre a Primeira Carta aos Coríntios (pp. I-XXVII).
O livro de Manzi contribuirá muito para uma compreensão mais profunda do que movia o incessante e contínuo trabalho apostólico de Paulo, mostrando seu profundo enraizamento no Cristo morto e ressuscitado, amado visceralmente como também o foi seu corpo eclesial. Paulo é a configuração em Cristo.
A linguagem acessível torna o livro uma ajuda valiosa para apreciar a dedicação pessoal e a obra do Apóstolo dos Gentios, um modelo também para a evangelização nos nossos dias.
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A crise: Paulo e os Coríntios. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU