18 Abril 2016
O respeito a ser dado ao texto bíblico, na reconstrução da tradição, torna-se um ponto qualificador da "releitura" que qualifica a Amoris laetitia e que faz decorrer dela consequências para a concepção da doutrina e das formas da disciplina.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 15-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Como já destacamos no segundo artigo desta série, as consequências da Amoris laetitia se fazem sentir também no plano de uma renovada "hermenêutica jurídica" do amor e do matrimônio. Precisamos "mudar de olhar" também no modo pelo qual a tradição lê a si mesma, com a devida prioridade.
O respeito a ser dado ao texto bíblico, na reconstrução da tradição, torna-se um ponto qualificador da "releitura" que qualifica a Amoris laetitia e que faz decorrer dela consequências para a concepção da doutrina e das formas da disciplina.
Em um artigo importante, Adrián Taranzano, biblista argentino, estuda o texto paulino que está na base de documentos doutrinais e jurídicos onde é fundada, na tradição, a "persistência obstinada no pecado grave" como motivo de excomunhão sacramental estabelecido pelo cânone 915. Trata-se de uma leitura muito útil, que esclarece de modo competente e profundo como deverá se orientar a aplicação pastoral e jurídica à luz da Amoris laetitia.
Aqui, encontra-se uma síntese do estudo, editada pelo próprio autor, a quem agradeço de coração.
* * *
Um texto "fora do seu contexto": 1Coríntios 11, 17-34
de Adrián Taranzano
Na recente exortação apostólica Amoris laetitia, o Papa Francisco faz uma afirmação quase en passant:
"... convém tomar muito a sério um texto bíblico que habitualmente é interpretado fora do seu contexto ou duma maneira muito geral, pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais imediato e direto, que é marcadamente social. Trata-se da Primeira Carta aos Coríntios (11, 17-34), onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da comunidade" (AL 185).
Trata-se de um texto que merece uma análise aprofundada. De fato, é o texto fundamental que inspira a disciplina vigente no que diz respeito ao acesso ou não aos sacramentos. O Pontifício Conselho para os Textos Legislativos o evidenciou na Declaração sobre a Admissibilidade à Santa Comunhão dos Divorciados Recasados, de 24 de junho de 2000:
"A proibição feita no citado cânone (= 915), por sua natureza, deriva da lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja. O texto das Escrituras ao qual a Tradição eclesial sempre remonta é o de São Paulo: 'E, assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se cada qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice. Aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação' (1Co 11, 27-29)."
Comparando a expressão do cânone 712 com a expressão correspondente do Código dos Cânones das Igrejas Orientais que fala de excluir os "indignos" da Eucaristia, o texto descreve de maneira particularmente dura os danos que se seguiriam a partir de uma práxis diferente daquela em vigor:
"Com efeito, receber o corpo de Cristo sendo publicamente indigno constitui um dano objetivo para a comunhão eclesial; é um comportamento que atenta contra os direitos da Igreja e de todos os fiéis a viver em coerência com as exigências dessa comunhão. No caso concreto da admissão à sagrada Comunhão dos fiéis divorciados que voltaram a se casar, o escândalo, entendido como ação que move outros ao mal, diz respeito ao mesmo tempo contra o sacramento da Eucaristia e a indissolubilidade do matrimônio."
O texto paulino é interpretado aqui de maneira insuficiente, sem uma análise crítica e histórica. Aqui, limito-me apenas a oferecer algumas considerações sobre o texto e remeto a comentários científicos para um estudo cuidadoso (por exemplo, D. Fee, The First Epistle to the Corinthians [NICNT], Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1987; W. Schrage, Der erste Brief an die Korinther. VII/ 3: 1 Kor 11,17-14,40 [EKK], Neunkirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1999, 5-107; A. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians [NIGTG], Grand Rapids, Michigan – Cambridge, U.K., Eerdmans, 2000, 848-899).
Comer e beber a própria "condenação"?
O ponto de partida da repreensão de Paulo é constituído pelas divisões da comunidade coríntia (cf. 1Co 11, 18). A menção insistente às divisões sugere que não se trata, aqui, sobretudo, de comportamentos individuais, mas de atitudes comunitárias errôneas e provavelmente relacionados com questões de status (cf. THEOBALD, Quelle, 7; SCHRAGE, Korinther, 20; P. L AMPE, “Das korinthische Herrenmahl im Schnittpunkt hellenistisch-römischer Mahlpraxis und paulinischer Theologia Crucis [1Ko 11,17-34]”, ZNW 82/3-4 [1991], 183-213, 192). Paulo ataca esses abusos recorrentemente na carta (1Co 8-14). O contexto em que ele se move é eclesiológico (cf. Schrage, Korinther, 9).
Em nossa perícope, o Apóstolo constata que a assembleia não corresponde à "ceia do Senhor" (cf. 1Co 11, 20): cada um come insensivelmente sua própria ceia, esquecendo-se de quem passa fome. Na mesma assembleia, convivem o excesso de uns e a carência de outros. Não se condena o excesso em si, mas a falta de comunhão e de atenção aos desfavorecidos (cf. Schrage, Korinther, 26).
O apóstolo pontualiza duas vezes o motivo concreto do escândalo: enquanto alguns se embriagam, outros passam fome (cf. 1Co 11, 21). Não se percebe a diferença entre a ceia do Senhor e a refeição normal comida nas suas casas. Isso equivale a depreciar (kataphronéo) a Igreja de Deus e a desonrar (kataisjýno) aqueles que não têm nada (toús mè éjontas). A grande ofensa à ceia do Senhor é a insensibilidade perante os que sofrem em meio da sua própria assembleia. Isso atenta contra a verdade mais profunda da assembleia eucarística, já que é a comemoração da ceia do Senhor naquela noite em que foi traído (cf. 1Co 11, 23-25). Todas as vezes que se come o pão e se bebe do cálice, anuncia-se a sua morte até que Ele venha (1Co 11, 26).
Dentro desse contexto, Paulo expressa que "quem come o pão e beber do vinho de maneira indigna" será "réu do corpo e do sangue do Senhor" (1Co 11, 27). O advérbio empregado (anaxíos). D. Fee sustenta que, aqui, não se faz referência a uma disposição pessoal – a um estado –, mas sim à maneira de participar da ceia (The First Epistle to the Corinthians, 560).
A única outra passagem bíblica em que aparece o advérbio é 2Mac 14, 42, onde se fala de Razias, que prefere "morrer nobremente do que cair nas mãos desses criminosos e ter a sua dignidade insultada de modo indigno (anaxíos)". Schrage também considera que a atitude equivocada na passagem é a de pensar na própria refeição (ídion deīpnon), o desprezo para com a comunidade e os marginalizados (v. 21-22). Não se pode desconectar o advérbio da situação apresentada pelo apóstolo (cf. 1Co 11, 17-22).
A expressão ser "réu do corpo e do sangue do Senhor" se refere ao corpo e sangue do Senhor, entregue à cruz. Não se entende aqui um "sacrilégio" contra os sinais do pão e do vinho, mas sim contra o próprio Senhor (cf. Thiselton, 890; Schrage, Korinther, 49). A ideia é análoga à de 1Co 8, 12, onde a culpa contra o irmão pressupõe um pecado contra Cristo. Como não se trata de uma ceia qualquer, mas do memorial da morte do Senhor, os abusos contra aqueles que não têm nada são uma ofensa contra o Senhor crucificado.
Paulo não exorta a se abster do banquete eucarístico, mas a examinar a si mesmos para, depois, comer e beber (cf. 1Co 11, 28). Há uma nova razão: quem come e bebe sem discernir o corpo (mè diakrínōn tò sōma), come e bebe um juízo (kríma) sobre si mesmo (1Co 11, 29). Discernir o "corpo" pode ter um significado cristológico ou eclesiológico, como sugere o v. 31, mas não se refere ao sinal sacramental, como, por exemplo, distinguir o pão comum do sacramental (Schrage, Korinther, 51; Theobald, Eucharistie, 77).
Comer e beber o kríma geralmente são interpretados como uma referência à condenação, em sentido escatológico. Mas uma atenção ao contexto exclui essa interpretação. Paulo explica a sua afirmação com referência a fatos concretos: por isso (dià toūto), de fato, entre os coríntios há muitos enfermos, doentes e mortos (1Co 11, 30). Esse é o juízo ou castigo que "comem e bebem" todas as vezes em que não discernem o corpo e o sangue, e se tornam culpados do corpo entregue e do sangue derramado do Senhor. Aparentemente, o apóstolo faz referência a um caso conhecido e patente na comunidade, interpretado como castigo divino. Na carta, está presente essa ideia mediante os exemplos da história de Israel (1Co 10, 1-10; cf. Lv 25, 1-9). Para Paulo, os coríntios, de fato, são castigados. Se, em vez disso, os coríntios examinassem a si mesmos (ei dè heautoùs diekrínomen), como se diz no v. 29, então não seriam castigados (ouk àn ekrinómetha). Paulo fala de juízo ou castigo, não de condenação. Além disso, esse juízo tem um sentido pedagógico (paideuómetha: 1Co 11, 32). O castigo pedagógico tem como objetivo a salvação: a fim de que não sejam condenados com o mundo (hína mè syn tō kósmō katakrithõmen).
Em poucas palavras
Comer o pão e beber o vinho de maneira indigna, isto é, sem discernir o corpo, envolve o risco de um castigo temporal. Os fatos que acontecem na comunidade são prova disso. No entanto, o objetivo é evitar a condenação! Uma interpretação acurada do texto permite superar uma aplicação anacrônica da passagem. Em minha opinião, tal leitura é responsável por posições intransigentes e rígidas. F. Moloney lamenta que, não raramente, o texto foi mal-entendido (A Body broken for a broken People. Eucharist in the NewTestament, Grand Rapids, Michigan 2010, 165-166). Foi usado como um dictum probans de uma tese a priori. A necessária atualização do texto não pode prescindir do seu sentido original. O amor pela verdade implica a purificação de interpretações, até mesmo tradicionais (cf. CCC 83).
Paulo não pensa aqui em um estado de pecado mortal, mas, certamente, pede uma vida coerente com o mistério da cruz do Senhor. Participar da ceia implica a abertura da própria existência ao mistério de um Cristo entregue para a salvação de todos. Pensar nas condições concretas é tarefa do discernimento da Igreja.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": texto bíblico e maravilhosa complicação. Sobre o uso canônico da Escritura. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU