13 Julho 2024
"No momento em que o poder computacional pessoal começou a caber nos nossos bolsos, também começou a nos roubar uma certa autonomia: o smartphone precisa de um substrato invisível e fundamental, a rede, que garante sua operabilidade e que alimenta o poder computacional de bolso que temos e 'datafica' as nossas existências pessoais. De fato, o smartphone começou a se interpor cada vez mais entre nós e as coisas que fazemos diariamente, reconfigurando, em termos de transações digitais, a maioria dos atos que compõem a nossa vida cotidiana", escreve Paolo Benanti, frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida, em artigo publicado por Avvenire, 05-07-2024.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os primeiros computadores foram desenvolvidos para fins bélicos: o Colossus, criado em Bletchley Park, no Reino Unido, e, nos EUA, o Atanasoff-Berry Computer e o Eniac.
No período imediatamente posterior à guerra, a partir da década de 1950, a introdução dos transistores de silício permitiu a criação de computadores menores, mais rápidos e mais confiáveis, enquanto os circuitos integrados, que surgiram na década de 1960, reduziram ainda mais as dimensões e o custo, aumentando a funcionalidade dos computadores. Inaugura-se, assim, uma época em que o poder computacional se espalha por toda a sociedade.
Naqueles anos, essa distribuição do poder computacional estava confinada aos "mainframes". No entanto, é o surgimento de uma nova corrente cultural que podemos definir, com o perdão pelo trocadilho, como Bit generation, que produziu o profundo mecanismo de descentralização das décadas seguintes. A revolução tecnológica foi alimentada pela semente da contracultura californiana dos anos 1960. O centro dessa maneira de ver os computadores e a informática foi e é o Vale do Silício, a área entre São Francisco e São José.
Acima de tudo, foi o ideal comunitário dos "flower children", sua natureza libertária, seu desejo de ampliar os horizontes e seu desprezo pela autoridade centralizada que formaram o eixo dos fundamentos filosóficos e éticos da Internet e de toda a revolução dos computadores pessoais. A internet iniciou justamente no crepúsculo daquela experiência.
O fim desse processo de democratização ocorreu no final da primeira década deste século com o advento do smartphone.
No momento em que o poder computacional pessoal começou a caber nos nossos bolsos, também começou a nos roubar uma certa autonomia: o smartphone precisa de um substrato invisível e fundamental, a rede, que garante sua operabilidade e que alimenta o poder computacional de bolso que temos e "datafica" as nossas existências pessoais. De fato, o smartphone começou a se interpor cada vez mais entre nós e as coisas que fazemos diariamente, reconfigurando, em termos de transações digitais, a maioria dos atos que compõem a nossa vida cotidiana. Mas se a nossa existência e a nossa capacidade de agir no espaço público foram reconfiguradas em forma digital, o nosso direito e poder de cidadania se tornaram, de fato, computacionais.
Hoje, as nossas existências democráticas são existências computacionais. A democracia que hoje se tornou computacional também desfruta das potencialidades das tecnologias da informação para tornar a participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas mais eficaz e inclusiva. Entretanto, se a primeira década do século terminou com as primaveras árabes, fazendo com que esperássemos que a conexão digital fosse o espaço onde a democracia liberal se difundiria e se fortaleceria, o final da segunda década, com a invasão do Capitólio, começou a nos fazer temer pelo futuro da democracia no espaço digital-computacional.
O advento das inteligências artificiais está novamente mudando o horizonte. Os serviços de IA desfocam a fronteira entre o poder computacional pessoal e o poder centralizado na nuvem: ao usar nossos telefones, quase não sabemos mais o que é executado localmente e o que é executado na nuvem. Essa nova forma de centralização na nuvem, no entanto, agora também traz consigo uma centralização da capacidade computacional pessoal associada à democracia. A questão a ser enfrentada, então, será como tornar democrático o poder centralizado da nuvem e da IA evitando que a democracia computacional se transforme em uma oligarquia da nuvem.
A experiência de uso do computador está prestes a passar por uma nova transformação radical. Desde o início da história dos computadores, o homem foi o gargalo na relação com a máquina. Em 1975, com a introdução do sistema operacional DOS, aceleramos a relação com a máquina graças aos teclados. Em 1985, os sistemas de janelas, como o Windows, nos permitiram ganhar velocidade com o mouse. A partir do final da década de 1990, o touch foi mais uma mudança de relação. Hoje, parece que chegamos à mais natural e rápida das interfaces: a linguagem humana. Musk continua a sonhar com fronteiras mais rápidas com seus implantes cerebrais. Na verdade, a infusão de sistemas operacionais com Large Language Models (LLMs) executados localmente é uma revolução na interface e na velocidade de uso da máquina: nunca antes havia sido possível dizer à máquina o que fazer como faríamos com um nosso semelhante e, como a capacidade de cooperar entre membros da nossa espécie é a base de nossa ascensão planetária como espécie dominante, não poucos estão começando a sonhar com um futuro feito de utopias ou distopias que beiram o hibridismo entre homem e máquina.
Um dos aspectos mais preocupantes dessa nova fronteira da interação com a máquina é a enorme ampliação da superfície de ataque cibernético. Poder fazer com que o computador execute processos por meio de comandos linguísticos significa, efetivamente, transformar os LLMs em agentes capazes de realizar operações no computador: mordomos eletrônicos. Se até hoje os hackers podiam invadir os nossos sistemas e retirar dados, excluí-los ou criptografá-los para pedir resgate ou usar o nosso computador para fazer ataques a outros computadores, o que poderão fazer hoje? Com a mesma eficiência com que nos ajuda, o nosso mordomo pode encontrar todas as nossas informações comprometedoras e comunicá-las ao mal-intencionado.
Em resumo, a democracia conseguirá ser resiliente a essas novas formas de poder computacional?
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Democracia computacional. O que muda na era da IA. Artigo de Paolo Benanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU