07 Junho 2023
Grandes bancos tornam-se obsoletos. Tecnologia permite, hoje, transações sem intermediários e, se usada por governos, pode libertar a sociedade do financismo. Isso exige enfrentar chantagens daqueles que julgam-se gigantes demais para falir.
O artigo é de Yanis Varoufakis, publicado por Project Syndicate e republicado por Outras Palavras, 05-06-2023. A tradução é de Maurício Ayer.
Varoufakis é economista, blogger e político grego membro do partido SYRIZA. Foi o ministro das Finanças do Governo Tsipras no primeiro semestre de 2015. Varoufákis é um assíduo opositor da austeridade. Desde que a crise global e do euro começou em 2008, Varoufákis tem sido um participante ativo nos debates ocasionados por esses eventos.
Quando o First Republic Bank faliu, a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) organizou a venda de seus ativos para o JPMorgan Chase. A operação violou a regra fundamental da FDIC de que nenhum banco que detenha mais de 10% dos depósitos segurados dos Estados Unidos deve ser autorizado a expandir-se ainda mais por meio da incorporação de outro banco do país. Mas, pelo fato de que pesou mais poupar os contribuintes do custo de outro resgate bancário, as autoridades dos EUA permitiram – ou melhor, efetivamente ajudaram – o maior banco do país, que já era uma instituição “grande demais para falir” (TBTF, da expressão “too big to fail”), a crescer ainda mais.
Em uma rara demonstração de bipartidarismo, democratas e republicanos aplaudiram juntos as ações da FDIC, celebrando o fato de que a intervenção do JPMorgan era um plano do “setor privado”, evitando sobrecarregar os contribuintes. Infelizmente, a verdade foi menos heroica: Jamie Dimon, o onipresente chefe do JPMorgan Chase, negociou uma linha de crédito de US$ 50 bilhões e um acordo de compartilhamento de perdas com a FDIC cujo resultado é uma perda de US$ 13 bilhões para os contribuintes americanos. Em suma, a solução encontrada para o First Republic trouxe aos estadunidenses o duplo fardo tanto de uma pesada carga tributária quanto de maiores riscos sistêmicos implícitos em se deixar crescer um banco TBTF.
O First Republic era pequeno, mas o que aconteceu a ele foi um prenúncio de coisas maiores. Devido ao aumento dos preços e (em menor medida) dos salários, a dívida pública dos EUA como parcela da renda nacional encolheu. Mas como o Federal Reserve aumentou as taxas de juros para deter a inflação, o valor das letras do Tesouro nos livros dos bancos caiu. (Por que alguém iria comprar um título de segunda mão e de baixo rendimento quando pode comprar um novo de maior rendimento?) E como a maioria dos ativos segurados mantidos pelos bancos são títulos do Tesouro, ocorreram falências como as do Silicon Valley Bank, do Signature Bank e do First Republic.
É improvável que essa dinâmica termine tão cedo. Mais bancos irão falir, o que ajudará os bancos “grandes demais para falir” a representar ameaças sistêmicas ainda maiores para a sociedade. Além de enganar o público com a miragem de que seus impostos estão sendo poupados, as autoridades estão preparando o cenário para uma futura crise bancária, que forçará o público, então exasperado, a pagar ainda mais.
Existe uma alternativa à absorção de pequenos bancos, como o First Republic, por megabancos, como o JPMorgan, financiada por impostos. E sem transferir para o contribuinte o custo de proteger os depósitos não segurados: criar contas de depósito do FED ou, de forma equivalente, o lançamento gradual de um dólar digital emitido pelo FED.
Vejamos de que modo uma “moeda digital do banco central” dos EUA, ou MDBC, teria funcionado no caso do First Republic. Em vez de fazer com que a FDIC garanta os depósitos do banco com dinheiro do contribuinte, o FED criaria contas (ou carteiras) digitais para os depositantes do First Republic e creditaria seu saldo a eles. Os depositantes poderiam manter o dinheiro em sua nova conta do FED, fazendo pagamentos usando um nome de usuário e PIN fornecidos pelo FED, ou transferir o saldo para qualquer outra conta bancária.
Enquanto estão em sua conta do FED, os depósitos são de facto garantidos pelo FED sem a necessidade de onerar os contribuintes ou cobrar taxas de outros bancos. Se o FED está preocupado que ao aumentar a oferta monetária o aumento associado em seu balanço seja inflacionário, ele pode esterilizar o novo dinheiro vendendo um valor equivalente de parte da montanha de ativos (como hipotecas e títulos) que ele já possui.
No final das contas, os contribuintes estão totalmente protegidos, enquanto os megabancos, como o JPMorgan, ficam proibidos de crescer ainda mais. Na verdade, Wall Street finalmente enfrentaria uma bem-vinda competição das contas do FED, forçando-os a melhorar seu jogo.
Imagino oponentes indignados contra as MDBCs correndo para seus teclados para me denunciar por ajudar no esforço nefasto do Big Brother estatal em obter controle sobre todas as transações dos cidadãos. Mas eles estão latindo para a árvore errada. O dinheiro digital já está aí, erradicando cada vez mais os pagamentos em dinheiro. Num piscar de olhos, o IRS, o FBI e até a polícia local têm acesso instantâneo aos nossos pagamentos. Justin Trudeau, o primeiro-ministro canadense, não precisou de uma MDBC para congelar as contas bancárias dos caminhoneiros que protestavam contra a vacinação. Bancos e Big Techs estão regularmente eliminando ou se recusando a negociar com pessoas cujas opiniões são consideradas inadequadas.
Em outras palavras, já vivemos em uma sociedade tecno-feudal na qual precisamos pedir ao nosso banco, e indiretamente ao nosso governo, permissão para realizar pagamentos. Nossos pagamentos digitais podem ser interditados centralmente por empresas de cartão de crédito, bancos, burocratas e outros intermediários nada transparentes e não responsabilizáveis.
Talvez, contraintuitivamente, as MDBCs podem melhorar a privacidade dos cidadãos em relação ao status quo e nos proteger do poder exorbitantemente centralizado. Verificações e balanços podem ser introduzidos com base em dois sistemas de gerenciamento de dados separados e isolados. O sistema que gerencia as contas do FED pode ser totalmente anônimo (assim como as contas criptografadas são anônimas e identificadas por uma longa sequência de números), enquanto um sistema separado supervisionado pelas autoridades competentes pode verificar atividades ilícitas, como evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Assim, uma implantação adequada e democraticamente controlada da MDBC pode trazer os benefícios combinados de fortalecer a arrecadação de impostos, lutando contra a deflação, e aumentar a proteção contra o Big Brother (e seus muitos irmãos menores).
Então, por que tanto veneno contra as moedas digitais dos bancos centrais por parte daqueles que não se incomodam com a vigilância e o controle já exercidos sobre nós pelo dinheiro digital controlado por Wall Street? Quem realmente tem medo de MDBCs?
Antigamente, a ganância das empresas de tabaco era canalizada para a indignação libertária contra a restrição à liberdade dos fumantes de escolher o câncer. Desta vez, a indignação está servindo aos interesses dos banqueiros em pânico com a perspectiva da existência das contas bancárias do FED. Dimon e outros mestres do universo dos “grandes demais para falir” estão certos em temer, porque uma MDBC do FED seria uma ameaça à construção de seu império. E banqueiros de todo o mundo estão certos em recear que muitos de seus lucrativos serviços já não sejam necessários. Com esses serviços – manter depósitos, processar pagamentos e assim por diante – “desintermediados”, de uma hora para a outra eles se tornariam incapazes de manter as sociedades como reféns.
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Quem teme moedas digitais do Banco Central? Artigo de Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU