06 Julho 2024
Paixões da alma é o título do novo livro do ex-primaz anglicano. As redes sociais impelem a buscar sucesso e consenso? Os Padres do Deserto, mestres da felicidade, "dizem-nos para esquecer a nossa imagem. Somos à imagem de Deus, isso basta".
É possível construir um manual para a felicidade do homem de hoje a partir da "filocália", a coletânea de textos escritos por mestres do ascetismo das Igrejas Orientais, como São João Cassiano e São Marcos, o Asceta, entre os séculos IV e XV? Sim, é possível. Foi o que fez Rowan Williams, ex primaz anglicano entre 2002 e 2012, famoso teólogo e professor em Cambridge.
O seu livro "Passions of the soul” (Paixões da alma), publicado pela editora britânica "Bloomsbury", é um diagnóstico do espírito humano e de como pode adoecer e entorpecer-se, ou crescer e desenvolver-se porque, como diz o próprio autor, "se não estamos crescendo na nossa vida espiritual, então estamos encolhendo". As paixões que dão título ao livro são os sete vícios capitais da tradição cristã, embora Williams lhes dê uma interpretação de alguma forma positiva, relacionando-os com as bem-aventuranças e explicando que o pecado pode ser uma oportunidade para crescer. O orgulho, por exemplo, é "o fracasso em aceitar a nossa dependência, com gratidão e graça, de Deus", uma condição que não aflige os "pobres em espírito", que sabem que não podem existir sem o Criador e a comunidade.
A entrevista é de Silvia Guzzetti, publicada por Avvenire, 02-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
No seu livro várias vezes é ressaltado que uma vida vivida em harmonia com Deus é uma vida mais em contato com a realidade, enquanto que uma vida guiada pelo pecado é uma vida onde a ilusão e a fantasia nos afastam da realidade. Pode explicar-nos como acontece e como evitá-lo?
Penso que tudo dependa da convicção de que os seres humanos são feitos, como disse Santo Agostinho, para Deus e, consequentemente, com um conjunto de capacidades que nos permitem nos desenvolver para nos tornarmos aquilo que Deus quer de nós. O pecado é a combinação de tudo que nos afasta desse projeto que Deus tem para nós, nos propondo uma certa imagem de nós próprios que não corresponde à realidade. Por exemplo, como se fôssemos mais poderosos do que realmente somos, ou também melhores ou mais perseguidos ou mais atormentados. As paixões, sobre as quais escrevo no meu livro, são um exemplo de como um instinto, um desejo ou um medo podem criar obstáculos à nossa capacidade de ver uma situação de forma clara e realista e de reagir em conformidade. As imagens e as emoções que controlam a nossa mente e que perseguimos impedem-nos de nos concentrarmos no que está realmente acontecendo na realidade.
Tudo isso tem uma dimensão social além de individual. Por exemplo, imaginemos que a nossa humanidade possa fazer o que quiser na terra sobre a qual vivemos enquanto o planeta está nos demonstrando claramente que tem limites precisos.
Então porque é que a nossa época olha para a religião, e para o cristianismo em particular, como algo irracional e irrelevante?
Porque, como cristãos, não conseguimos transmitir a mensagem de que a nossa visão de humanidade nos permite agir mais eficazmente no mundo em que vivemos. Os realistas somos nós porque vemos um pouco mais claramente do que aqueles que não creem, embora isso não signifique que sejamos melhores ou mais inteligentes do que aqueles que não têm consciência de Deus. "A verdade vos libertará", como diz o Evangelho, porque não corremos atrás de ideias abstratas ou difíceis, mas estamos onde Cristo está para ver e agir melhor no mundo. Às vezes, é mais fácil falar de regras e de abstrações do que de visões, porque os nossos olhos não estão habituados e ficam ofuscados pela luz que as visões produzem, mas só uma visão da verdade em sintonia com o mundo nos fará sentir à vontade com Deus e com os outros.
Usando aos textos dos Padres do Deserto, você faz uma análise detalhada da tentação e explica que ela, juntamente com o pecado, tem um aspecto positivo porque nos dá a possibilidade de crescer na consciência da nossa necessidade de Deus. Pode dar-nos alguns exemplos práticos?
Se nos dermos tempo para nos distanciarmos e nos apercebermos da direção para a qual os nossos instintos estão nos empurrando, tornamo-nos mais conscientes desses mesmos instintos. Por exemplo, se reagirmos com raiva porque alguém nos ofendeu ou se aceitarmos imediatamente, sem pensar, um aumento de salário para um trabalho de que não gostamos, a nossa reação é automática e corre o risco de bloquear a nossa criatividade e imaginação. Em vez disso, deveríamos parar, rezar e perguntar a nós mesmos se as decisões que estamos tomando enriquecem ou não a nossa humanidade e a humanidade que compartilhamos com os outros.
Infelizmente, não é o que acontece na nossa época, marcada pela pressa e por ritmos muito frenéticos.
Há mais de vinte anos, havia uma publicidade famosa no Reino Unido: "Take the waiting out of wanting", "vamos tirar a espera do querer", em suma, um convite a agarrar imediatamente o que queremos. É assim que funciona a nossa sociedade. Sem pausas. Sem o tempo para ter a justa distância e entender o que realmente está acontecendo. É como um poço de água que, ao longo de anos, se encheu de tapetes velhos, eletrodomésticos, carrinhos de bebê e outras tralhas. Este tumulto mental, que nos impede de ouvir Deus, foi amplificado pelas redes sociais que insistem na importância de ter sucesso, de ser convincentes, de ter muitos admiradores. Deveríamos, ao contrário, tentar parar e dizer a nós mesmos que podemos confiar em Deus o suficiente para não ter que nos reinventar constantemente para alcançar a popularidade. A tradição dos Padres do Deserto nos fala com clareza que devemos esquecer a nossa imagem porque já fomos feitos à imagem de Deus e isso nos deveria bastar.
Onde situa esse livro na sua produção e como gostaria que ele fosse usado?
Penso que, desde que publiquei pela primeira vez "The wound of knowledge” (A ferida do conhecimento), quando tinha apenas 29 anos, sempre tentei tornar atrativa, mas também intelectualmente sofisticada, a mensagem cristã para o homem de hoje. Diria que, no início, eu era muito impaciente com a ideia de ultrapassar a vida das paixões e chegar a um estado de apatia, e não compreendia muito bem esses textos dos Padres do Deserto. Hoje, sei que eles nos encorajam não a chegar a uma fonte atemporal, mas a visar uma autoconsciência amorosa e inteligente e a aprender a identificar a ilusão e o autoengano. E, também, a amar este processo de conhecimento e de autoconhecimento sem ficar paralisados pelo senso de culpa. Espero que esse livro seja lido por todos aqueles que pensam, mesmo que não sejam teólogos ou cristãos, que é importante aprender a parar e entender como funcionam as nossas emoções.
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Entre vícios, tentações e bem-aventuranças, vem à luz a nossa necessidade de Deus. Entrevista com Rowan Williams - Instituto Humanitas Unisinos - IHU