Segundo o teólogo italiano, o debate sobre o pós-teísmo não conduz ao ateísmo nem ao panteísmo, mas ao panenteísmo: “Deus se manifesta no cosmos, Deus se manifesta na criação”
Se hoje a ciência e a espiritualidade ainda são compreendidas como áreas incomensuráveis por alguns, o passado e o presente indicam que no futuro a relação entre ambas poderá ser diferente. É a partir dessa convicção que o teólogo Paolo Scquizzato afirma que "a física está nos ajudando a conceber a ideia de que temos uma só realidade e tudo é uno. E se um Deus existe, só pode ser aquela energia, aquele uno. É incrível pensar que podemos encontrar essa verdade já em Tomás de Aquino, quando ele define Deus como o Ser dos seres. Ou como a teologia medieval sempre afirmou e definiu: a alma como domina mundi/anima mundi, a alma do mundo, a alma, a substância, o tecido a partir do qual o mundo está constituído".
Segundo ele, a própria espiritualidade consiste em "fazer a experiência desse princípio que não está nos seus, mas impregna todos e tudo, e que na Idade Média é chamado de Espírito Santo, como Guilherme de Conches afirmou". E acrescenta: "Acredito que, se entrarmos nessa perspectiva, tudo muda".
Participante dos debates sobre novas formas de falar sobre Deus de modo que faça sentido às pessoas de hoje, o teólogo pontua que o pós-teísmo pode nos ajudar "a superar essa doença da dualidade pela qual sempre separamos e dividimos tudo em duas partes: céu e terra, natural e sobrenatural, alma e corpo, imanência e transcendência". Na avaliação dele, as discussões em torno do pós-teísmo não têm como consequência o ateísmo nem mesmo o panteísmo, mas reivindicam uma perspectiva panenteísta. "Acredito que hoje, dentro do discurso de pós-teísmo, não chegamos ao ateísmo, mas a essa visão panenteísta, de certa forma. Repito a definição: compreensão do mundo, do universo, enquanto corpo divino sempre em desenvolvimento no ato de criar, de modo que nada esteja separado dessa misteriosa criatividade. É uma definição belíssima: Deus se manifesta no cosmos, Deus se manifesta na criação."
Outra consequência do debate pós-teísta, assegura, é que "nos leva e nos conduz necessariamente até a mística. Acredito firmemente que o cristianismo precisa realizar essa tomada de consciência de ser um no uno: ou se faz uma experiência mística ou nunca se terá razão de existência. Karl Rahner já tinha intuído isso, falando que ou o século XXI será místico ou o cristianismo não existirá". E conclui: "Quero concluir com um convite: não a cultivar o pós-teísmo, mas cultivar a mística, a resgatar os grandes místicos, Mestre Eckhart, as grandes mulheres místicas, mas também os contemporâneos. Eles nos dizem que não precisamos nos contentar com a palavra Deus, com a imagem de Deus, de uma relação feita de mediações, mas que a única coisa que conta é fazer a experiência consciente de sermos um no uno, tudo no todo, para termos a experiência salvífica que São Paulo falou: Nele vivemos, nos movemos e existimos".
A seguir, publicamos a conferência virtual ministrada por Paolo Scquizzato no “Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas”, intitulada “Espiritualidade cristã em perspectiva pós-teísta”. As demais conferências do Ciclo estão disponíveis aqui.
Paolo Scquizzato (Foto: Gabrielli Editori)
Paolo Scquizzato é teólogo e padre diocesano há cerca de vinte anos. Trabalha e vive na Diocese de Pinerolo, na província da capital do Piemonte, onde atua na formação espiritual, sendo responsável pelo Escritório de Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso.
IHU – Qual é a relação entre espiritualidade e pós-teísmo?
Paolo Scquizzato – O pós-teísmo é um tema que me interessa muito porque sei que a teologia e o pensamento teológico estão situados nessa perspectiva. Vou apresentar uma reflexão sobre a relação entre espiritualidade e pós-teísmo. Por paradigma pós-teísta, entendemos repensar a divindade para poder voltar a dialogar com o nosso mundo, com as mulheres e os homens de hoje e, em especial, com o mundo científico, pois é evidente para todos que uma fratura foi se criando entre a assim chamada “religião” e o mundo. Nós, cristãos, é preciso dizer isso, somos pouco interessantes para o mundo. Não falamos mais nada às mulheres e aos homens de hoje e é cada vez mais evidente a fratura entre religião e ciência. Então, com o paradigma pós-teísta tentamos juntar e sanar essas fraturas que se criaram nos últimos cinco, seis séculos.
Na óptica pós-teísta, não entendemos mais Deus como um ser que possui um poder sobrenatural. Não aceitamos mais uma divindade com traços antropomorfos, patriarcais, o Deus onipotente, onisciente, criador, senhor, juiz. Não aceitamos mais uma divindade que tire para nós – como costuma dizer um ditado popular na Itália – “as castanhas do fogo”. Ou seja, que nos ajude em qualquer situação. Nessa perspectiva, então, é difícil aceitar uma divindade chamada de pai, tão carinhoso e justo que escuta as nossas súplicas, que nos recompensa pelo bem que fazemos ou nos castiga pelo mal cometido. Mesmo que isso seja difícil e nos afastamos dessa ideia, é fundamental entrarmos nessa óptica pois eu sempre digo que aquilo que ganhamos com a perspectiva pós-teísta é infinitamente maior do que aquilo que perdemos. Entendo e é claro que quando falamos dessas coisas, do sofrimento, de termos que nos afastar e abandonar uma divindade desse tipo, que é confortante, que é paterna, que está sempre pronta a intervir, nos afastamos do superpai que está no alto dos céus. Pode ser difícil e pode demorar anos para conseguirmos aceitar esse golpe, mas aquilo que ganhamos e adquirimos por meio desse afastamento é infinitamente maior do que aquilo que perdemos.
IHU – Qual é o problema com o Deus teísta?
Paolo Scquizzato – O Deus teísta, o Deus que o catecismo nos falou, pregado na grande maioria das igrejas, se pensarmos bem, como eu estava falando, é pouco mais do que o homem: um coágulo de projeções e de frustrações puramente humanas. Um importante poeta grego do sexto século antes de Cristo escreveu que os mortais imaginam que os deuses nascem, têm roupas, vozes e são figuras como eles, mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos ou se pudessem desenhar com as mãos e fazer obras como aquelas dos homens, eles representariam os deuses como eles são e fariam deles corpos como os que cada um tem. O que este poeta está dizendo é que se realmente os animais pudessem representar um deus, o fariam como eles são, como nós fizemos: somos homens, somos seres humanos e nós produzimos um deus à nossa imagem e semelhança. Essa projeção muito humana dessa divindade no alto dos céus, às mulheres e aos homens do século XXI, parece ser cada vez mais inverossímil e indiferente. É por isso que ninguém está mais nos seguindo, porque não somos intelectualmente honestos; propor que exista uma divindade assim no alto dos céus é primeiramente e intelectualmente desonesto. Como um teólogo espanhol afirma, o que a razão não aceita e não acolhe, o coração não pode contemplar. Um Deus que combate as guerras para nós, que está sempre do nosso lado e nunca do lado dos nossos inimigos, que consegue nos salvar da condenação eterna, é difícil de ser acolhido por um adolescente do ensino médio. Aos homens e às mulheres de hoje, é cada vez mais evidente: o que chamamos de Deus não é e não pode ser a resposta às nossas perguntas, não pode ser o amuleto das nossas insuficiências ou o preenchimento do próprio vazio existencial.
Existe um grande estudioso de hebraico, Paolo De Benedetti, que escreveu um livro muito interessante mais de trinta anos atrás, chamado “Qual Deus?”. Ele diz no prefácio que se Deus existe, hoje, mais do que nunca, Ele precisa de alguém que, se não puder dizer quem Ele é, pelo menos diga quem Ele não é, no sentido de uma destruição ou pelo menos de uma tentativa de destruição do ídolo metafísico imperial que confundimos com Deus. A fé pode ficar sem essa operação, mas também pode sucumbir diante desse Deus que não está lá. Neste ponto, faço uma pergunta: Se esse pequeno Deus, aos poucos, foi se diluindo com o amadurecer da consciência humana; se esse Deus nos serviu e fizemos um bom uso dele no alto dos céus, pensando nele como Deus onipotente, interventista; se esse Deus serviu por muito tempo, por milênios, e alimentou a assim chamada religião, hoje, na época das incomensuráveis descobertas científicas, diante das grandes conquistas astronômicas, diante dos últimos estudos das neurociências, das incríveis revelações da física quântica, a pergunta é: é possível tentar redizer Deus?
IHU – O que isso significa e que consequência tira desse pensamento?
Paolo Scquizzato – A questão não é o ateísmo. Pode parecer, pelo que eu falei, que estamos indo na direção de um certo ateísmo. Não, pelo contrário, o desafio é bem este aqui: podemos redizer Deus para o homem e a mulher de hoje, de forma que não seja mais banal ou intelectualmente desonesto? Hoje, no século XXI, habitado por cristãos adultos, existe outros caminhos e outras modalidades para pensar a divindade? Ou pelo menos temos alguns lugares prepostos onde possamos levar adiante essa discussão? Não estamos aqui para fornecer respostas ou falar a verdade, mas pelo menos estamos aqui juntos, procurando novos caminhos para um cristianismo maduro.
Acredito que diante da grande pergunta Deus, deveríamos ter uma atitude de grande humildade, ou seja, tentar renunciar àquelas definições ou às verdades sobre Ele. O homem e a mulher espiritualmente maduros são aqueles que sabem que não podem utilizar nenhuma definição e não podem professar nenhuma verdade apodítica sobre aquilo que vem depois. Mas homens e mulheres maduros do ponto de vista espiritual são cientes de que podem pelo menos ter a tentativa de um percurso a fazer. Se quisermos ser maduros, devemos primeiramente ter a consciência de que, na busca teológica, o que conta é a tensão para a frente e não a aquisição de uma verdade. Então, é o caminho que conta.
Nós, enquanto cristianismo religioso, enquanto religião, propusemos sempre o objetivo, o destino, aquele gozo da própria verdade apodítica. Mas não é assim. É o caminho que conta. O Tao afirma que a meta é o caminho, é a via, o percurso e a consciência de que estamos todos nesse caminho. É isso que nos torna maduros. E a verdade é essa. A verdade não é alcançar um objetivo, nem o gozo daquele objetivo. Mas a verdade é estarmos juntos, pois a verdade é sinfônica, para que a luz possa acontecer e estar presente nesse caminho. Por isso, talvez, tenha chegado o momento de ter a coragem de começar um percurso teológico, cultural, intelectual necessário para superar e ir além do teísmo, tentando redescobrir a sabedoria e as intuições proféticas de grandes teólogos e místicos de ontem e de hoje que pertencem ao cristianismo, mas também a outras tradições espirituais.
O que chamamos de Deus por meio de ferramentas completamente insuficientes e limitadas, como as definições dogmáticas, é infinitamente redutivo em relação à verdade. A verdade, ou a divindade, se a quisermos chamar assim, é infinitamente além de qualquer revelação. Sim, a divindade vai além de qualquer revelação porque é como um rio impetuoso que flui desde sempre e não teve origem e vai fluir para sempre. A divindade não teve uma origem e não vai ter um fim, pois a vida nunca nasceu e nunca vai acabar; pode apenas se transformar. Então, é preciso entrar nessa óptica. Cada religião, cada tradição religiosa, cada fé se molhou e ainda está se molhando neste rio. O rio que é a divindade ou a verdade. A religião é apenas a manifestação histórica, cultural deste momento de imersão e corresponde apenas àquele pouco de água que foi retirada do rio e colocada em uma cisterna. O grande erro que vivemos ao longo dos séculos e ainda hoje é confundir a água da cisterna com o rio. Mas o rio não é a água da cisterna. A religião seria essa água da cisterna porque veio do rio, mas não é o rio. Corremos o risco de confundir a parte com o todo. Então, o pós-teísmo tenta abrir os olhos em relação a isso, tentando nos falar que será necessário voltar ao rio para encontrar a água que vivifica, que é fecunda, pois se estivermos muito tempo na cisterna, a água se torna impura. A religião é sempre um meio e nunca o fim; é sempre o recipiente e nunca o todo.
Espiritualidade cristã em perspectiva pós-teísta
Quero fazer uma citação de um autor que gosto muito, o monge cristão pertencente à Ordem dos Camaldulenses [ordem religiosa católica de clausura monástica pertencente à família dos Beneditinos, fundada por São Bento de Núrsia no século VI], John Main, que junto com outros, como Bede Griffiths, tentou ter um diálogo com a Índia e abriu um monastério lá para poder chegar à riqueza da Upanishad [parte das escrituras Shruti hindus, que discutem religião e que são consideradas pela maioria das escolas do hinduísmo como instruções religiosas], para instaurar um diálogo com o cristianismo. Eles tentam unir essas riquezas cientes de que a verdade é sinfônica, é uma sinfonia que pode ser tocada somente com muitos instrumentos. Ele escreve em um livro que: “Na Upanishad, uma parte da literatura antiga hindu, podemos ler que aquele que diz eu O conheço – Deus –, não O conhece, e também aquele que diz eu não O conheço, também não O conhece. Só O conhece aquele que diz eu O conheço, porém, não O conheço.” Esse é o homem do desejo. Deus não satisfaz a sua fome de uma vez por todas, mas lhe dá comida e bebida dia após dia, pois em Deus há apenas o presente. A fome e a sede de Deus dos homens estão sempre satisfeitas, mas sempre insatisfeitas. Por um lado, ele é rico, por outro, é pobre. A sua pobreza é a sua riqueza e a sua riqueza é a sua pobreza.
Aquele que tentou definir a verdade não tem fome e sede de Deus. Quem pensa que Ele revelou tudo, e que não há mais nada para ser revelado, não tem fome e sede de Deus e de justiça de Deus. Cada religião dá uma certa visão de Deus e do relacionamento d’Ele e a humanidade. Toda religião afirma ter a plenitude da verdade, mas a verdade está além de todas as religiões. Está além de todos os nossos sistemas intelectuais e teológicos. A verdade, ele continua dizendo, supera até mesmo as nossas Escrituras reveladas. A verdade vai além até da Bíblia, como Marguerite Porete, uma grande teóloga e mística, afirma. Afinal de contas, a Bíblia é o instrumento dos cegos. Então, um Deus pensado e definido não existe mais. É isso que a reflexão pós-teísta tenta destacar.
IHU – O que é e como falar de Deus a partir de uma compreensão pós-teísta?
Paolo Scquizzato – O princípio saudável da teologia afirma que tudo aquilo que falamos acerca de Deus, precisamos, ao mesmo tempo, negá-lo. E tudo que afirmarmos e novamente negarmos, precisamos infinitamente ampliá-lo. Então, tudo que falamos acerca de Deus é pequeno demais para indicar a sua realidade. Por exemplo, ao falar que Deus é pai, nós deduzimos o significado dessa palavra da nossa experiência que, por mais bela e grande que possa ser, sempre será limitada – sem levar em consideração todos os homens e mulheres que tiveram experiências dramáticas, infernais da própria vivência com o próprio pai. Então, falar pai não quer dizer que Deus o seja, mas pode servir para nos reconhecermos como filhos. Então, ele é como um pai, mas não exatamente como um pai. E se falarmos que Deus ama como um pai, ainda não falamos nada sobre como Ele é. Então, isso não fala nada acerca dele, mas podemos ter a experiência de ser filhos e viver a fé. A tradição judaica diz algo muito interessante: todo discurso sobre Deus deve ser introduzido pela palavra/expressão usada pelos antigos rabinos: “como se poderia dizer”. Ou seja, começar qualquer frase ou pensamento sobre Deus dizendo “se assim se poderia dizer”, pois a tradição judaica é ciente que não há uma linguagem sobre Deus, nem uma linguagem metafísica, nem a do totalmente outro que não seja uma linguagem mítica.
Agora, qual é a passagem seguinte? Se a reflexão pós-teísta não consegue e não quer mais denominar Deus com palavras, termos, definições, se a tradição muçulmana, islâmica nos ensina que Deus tem 99 nomes, mas aquele essencial está escondido, então, somos condenados ao silêncio? O cristianismo que quer se tornar maduro e quer crescer está condenado a ser mudo? Não. Eu acredito – e todos aqueles que tentam refletir sobre esse novo paradigma – que não se trata de sermos condenados ao silêncio, como Wittgenstein afirmava. Mas mudar as imagens, mudar a linguagem, mudar a perspectiva ou, em uma palavra, fazer uma conversão espiritual. Conversão, como o novo testamento nos diz, significa mudança de mentalidade. Então, vamos tentar pensar a divindade de outra forma e vamos tentar tomar emprestado da ciência o termo “energia” e tentar conceber a divindade como energia, pois assim fazendo, isso pode nos ajudar a nos curar do dano infringido no Ocidente pelo dualismo, uma doença mortal para a teologia.
Acredito que o pós-teísmo ajude a superar essa doença da dualidade pela qual sempre separamos e dividimos tudo em duas partes: céu e terra, natural e sobrenatural, alma e corpo, imanência e transcendência. A física está nos ajudando a conceber a ideia de que uma só realidade e tudo é uno. E se um Deus existe, só pode ser aquela energia, aquele uno. É incrível pensar que podemos encontrar essa verdade já em Tomás de Aquino, quando ele define Deus como o Ser dos seres. Ou como a teologia medieval sempre afirmou e definiu: a alma como domina mundi/anima mundi, a alma do mundo, a alma, a substância, o tecido a partir do qual o mundo está constituído. Pensar Deus enquanto alma do mundo, enquanto essência do mundo, onde não existe mais dualidade, é algo impregnado assim como a cor pode impregnar uma tela.
Quero citar um autor medieval, Guilherme de Conches, que escreveu um livro sobre o Timeu, de Platão. Ele escreve a propósito da alma do mundo como uma energia natural dos seres por meio da qual alguns somente têm a capacidade de se mover; outros, de crescer; outros, de perceber através dos sentidos; outros, de julgar. Nos perguntamos o que é essa energia, mas me parece que aquela energia natural é o Espírito Santo, ou seja, uma harmonia divina benigna a partir da qual todas as realidades encontram o seu ser, o seu movimento, o seu crescimento, a sua vida, o seu julgamento. Então, a reflexão nos leva à ideia de que não há um Deus nos céus. O céu se esvaziou de certo modo e não existe este e depois a criação, o espírito e a matéria, a alma e o corpo. Mas tudo é uno e tudo é manifestação desse uno. A física quântica hoje nos mostra isso com evidências cada vez mais significativas de que esse uno é um aglomerado de energia que se manifesta simplesmente como ser humano, como árvore, como pedra e assim por diante, como realidade. Então, tudo é uno. Tudo que é real e tudo aquilo que é coisa e é vivo e não é vivo, nada mais é do que manifestação desse uno. Tudo é epifania e epifenômeno desse uno.
Vou ler um trecho de uma conferência ministrada por Max Planck, pai da física quântica, em 1944. Ele disse: “Após as minhas pesquisas sobre o átomo, eu digo que a matéria em si não existe. A matéria, aquilo que pensamos ser sólido e chamamos de matéria, após os meus estudos, só posso dizer que ela não existe. Toda matéria surge e consiste apenas de uma força, uma força que faz vibrar as partículas atômicas e que as mantêm juntas como o mais pequeno sistema solar. Porém, como não existe no mundo físico nenhuma força inteligente e nenhuma força eterna, devemos assumir, por trás dessa força, um espírito consciente e inteligente e esse espírito é a base de todas as coisas materiais.” Isso foi dito por um cientista.
IHU – Que futuro vislumbra em relação à espiritualidade, seja sobre seu entendimento, seja sobre sua vivência?
Paolo Scquizzato – Acredito, como alguém afirmou, que o futuro da espiritualidade cabe aos cientistas, pois eles cada vez mais estão se aproximando do mistério. É paradoxal. Chegamos ao paradoxo. O mistério agora é uma prerrogativa dos cientistas, porque eles estão nas cosmologias, na neurociência, na física quântica; eles estão se aproximando do mistério, algo que nós, religiosos e estudiosos das religiões, perdemos há séculos. Pensando ter tudo definido, eliminamos o mistério.
Então, tudo é energia, tudo é impregnado e encharcado por esse espírito, por essa vida. O que será a espiritualidade? Ela se tornou cada vez mais sermos conscientes – essa é a importância da consciência – daquilo que nos impregna – e estamos encharcados do que é o divino, a divindade, a energia, o Ser dos seres. A espiritualidade é fazer a experiência desse princípio que não está nos seus, mas impregna todos e tudo, e que na Idade Média é chamado de Espírito Santo, como Guilherme de Conches afirmou. Acredito que, se entrarmos nessa perspectiva, tudo muda.
Quero citar o teólogo italiano Carlo Molari, que morreu aos 93 anos, poucos meses atrás [19-02-2022], o maior teólogo vivo que tínhamos na Itália, e que foi pouco escutado porque intimidava muito. Ele dizia que no cosmos e na história Deus não faz nada mais do que as criaturas fazem. Essa é uma frase maravilhosa. A força criadora, essa energia, não age ao lado ou no lugar das coisas e das pessoas, mas as alimenta de forma que elas sejam e possam operar. Creio que se trata de uma afirmação maravilhosa. Ele as alimenta para que elas possam operar conforme as suas leis, conforme as nossas leis, as leis da natureza. Talvez possa parecer estranha essa afirmação de Carlo Molari, mas o Papa Francisco também concorda; é só ler o que ele escreve no número 80 da Laudato si’. Ele diz: “Deus está presente no mais íntimo de cada coisa.” É incrível que um papa tenha chegado a dizer isso. Então, Deus age sem condicionar a autonomia da sua criatura. Cada um age conforme as suas leis e a sua consciência. Essa presença divina, o papa continua, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, é a continuação da ação criadora. Incrível. Essa presença no interior de tudo é a continuação da ação criadora. É como dizer que existe a ação criadora, existe esse uno que se manifesta nas criaturas, na natureza.
Se lermos o quarto evangelho [Evangelho segundo João], todas as coisas que falei, quando se fala de logos – e isso é incrível –, já foram ditas. Tudo foi dito e nem teria a necessidade de acrescentar algo. O logos, essa força que junta e une tudo, que consegue juntar, reunir, poderíamos chamá-lo de amor. Deus é vida, Deus é amor. O teólogo Vito Mancuso, um dos maiores teólogos e filósofos que felizmente temos hoje na Itália, em relação a esse logos, por meio do qual tudo foi feito, afirma: “Falando Deus, denominamos a fonte e o porto do ser energia, bem como a fonte da informação que permite a energia se estruturar em matéria organizada para se tornar, assim, vida, vida inteligente, vida enquanto espírito criativo e autoconsciência.”
Alguns poderiam ficar preocupados quando falei dessas coisas. Talvez alguém possa ter medo de que estejamos falando de panteísmo com a declaração de Molari, ou com essa citação do Papa Francisco. Não, não estamos falando de panteísmo, onde tudo é Deus. Não. Não estamos dizendo que tudo é Deus, mas que Deus está em tudo. Essa é a grande diferença e é por isso que queremos começar a utilizar a palavra panenteísmo.
Vamos tentar dar uma definição de panenteísmo como Deus em tudo, uma compreensão do mundo e do universo enquanto corpo divino, sempre em desenvolvimento no ato de criar, de forma que nada seja separado dessa misteriosa criatividade. Acredito que hoje, dentro do discurso de pós-teísmo, não chegamos ao ateísmo, mas a essa visão panenteísta, de certa forma. Repito a definição: compreensão do mundo, do universo, enquanto corpo divino sempre em desenvolvimento no ato de criar, de modo que nada esteja separado dessa misteriosa criatividade. É uma definição belíssima: Deus se manifesta no cosmos, Deus se manifesta na criação. Se quisermos, a manifestação é a manifestação do divino. É um sacramento do divino. Então, podemos dizer que o cosmos criado seria a manifestação da divindade, como a matéria seria a manifestação da energia. E é incrível como os nossos místicos do passado chegaram às mesmas conclusões. A mística e grande parte da teologia medieval já tinham intuído tudo. Nós estamos só repetindo, na verdade, apoiados pelas grandes descobertas científicas. Por exemplo, Anselmo de Aosta, na sua obra prima Proslógio, afirma que Deus não está em um lugar ou em um tempo; Ele não está ligado a um lugar ou a um tempo, mas todas as coisas estão nele e Ele está em todas as coisas. Isso já foi dito por um teólogo medieval. Mas também outro místico, São Paulo, quando nos Atos dos Apóstolos fala que nele, na divindade, nós vivemos, nos movemos e existimos. O salmo 138 também fala disso quando diz: na frente você me cerca, se eu subir ao céu, aí você está, se eu descer ao inferno, aí você está. Então, esta é a verdade: estamos imersos, somos a expressão, somos manifestação, nele vivemos, nos movemos e existimos. E por isso é importante superar o dualismo e a dualidade.
O incrível é que todas essas coisas já foram expressas em todas as tradições não cristãs. Se pensarmos no auge do islã, na tradição sufi, na era medieval, um grande místico fala: “Eu sou Alá”, “eu sou a manifestação de Alá”. Mas também no Upanishad o pai fala para o seu filho que a natureza tenta chegar até a essência, na coisa menor, e vai descobrir que tudo é Deus, tudo é divino e, ao final, afirma que é isso que você é; você é divino, você é manifestação do divino. Assim também quando Jesus diz: “Eu e o Pai somos uma coisa só”; e assim por diante. Todas as tradições chegaram às mesmas conclusões.
Para concluir, eu realmente acredito que a reflexão pós-teísta nos leva e nos conduz necessariamente até a mística. Acredito firmemente que o cristianismo precisa realizar essa tomada de consciência de ser um no uno: ou se faz uma experiência mística, ou nunca se terá razão de existência. Karl Rahner já tinha intuído isso, falando que ou o século XXI será místico, ou o cristianismo não existirá. Então, ou o cristianismo será místico e chegará a fazer essa experiência do tudo, de ser como uma onda no oceano, ou, do contrário, a religião não vai se sustentar, porque as pessoas estão se afastando e as igrejas estão vazias.
As pessoas precisam voltar a uma espiritualidade e ela será mística, ou seja, fará a experiência do divino do qual somos manifestação. Outro místico contemporâneo afirma de forma maravilhosa que precisamos entrar nessa perspectiva de nós seres humanos e tudo aquilo que existe sermos a onda do oceano. É uma imagem muito bonita porque a onda é uma manifestação do oceano, mesmo sendo outro em relação ao oceano, pois é uma onda; do contrário, seria o oceano. Mas o que essa imagem quer dizer? Que a onda é feita pela mesma substância do oceano; não é outro, ou seja, é outro, mas não é outro. E quando a onda deixar de existir, quando tiver sumido, o que ficará é o oceano, a água, e isso quer dizer que nunca nascemos e nunca vamos morrer. Essa é a visão mística. Ela nos diz que somos seres eternos, que estamos nos manifestando de forma temporária no espaço e no tempo, assim como a onda se manifesta no espaço e no tempo determinado. Mas somos desde sempre uma manifestação, uma epifania de Deus. Isso é claro há milênios no Oriente. Mas se nós, no Ocidente, adotássemos essa perspectiva de que nunca nascemos e de que nunca vamos morrer e de que aquilo que estamos vivenciando é apenas algo temporário, uma pura aparência, por assim dizer, tudo é vaidade, tudo é vapor, somos apenas uma manifestação temporária, então, assim poderíamos nos reconciliar com a morte, com a doença, com os nossos medos, pois os medos nascem do fato de nos sentirmos afastados e separados da divindade.
Mais religião há e mais medo há no mundo. Mais dualismo há, mais medo existe. Então, precisamos superar tudo isso. E também ter essa reconciliação, nos reconciliarmos. Quero concluir com um convite: não a cultivar o pós-teísmo, mas cultivar a mística, a resgatar os grandes místicos, Mestre Eckhart, as grandes mulheres místicas, mas também os contemporâneos. Eles nos dizem que não precisamos nos contentar com a palavra Deus, com a imagem de Deus, de uma relação feita de mediações, mas que a única coisa que conta é fazer a experiência consciente de sermos um no uno, tudo no todo, para termos a experiência salvífica que São Paulo falou: Nele vivemos, nos movemos e existimos.