08 Abril 2018
Em seu novo livro, O grande medo dos católicos na França (Grasset), Henry Tincq inquire a nossa relação com as religiões.
“Eu não reconheço mais a minha Igreja”. É com essa frase que o nosso colaborador Henri Tincq, um dos maiores especialistas franceses em catolicismo, começa seu ensaio. A Igreja da França, que soube se adaptar tão bem na segunda metade do século XX, tornou-se bem diferente. Ela vive com medo, um medo reforçado por uma inquestionável agressividade antirreligiosa e um legítimo sentimento de angústia.
Os extratos do livro de Henri Tincq são publicados por Slate, 01-04-2018. A tradução é de André Langer.
Os católicos franceses se veem como herdeiros de uma história coletiva, complexa e controversa, onde a questão religiosa ressurge sempre como uma linha de fratura. Memória de uma Revolução amaldiçoada por um clero dividido entre seus padres “juramentados” e seus “refratários” perseguidos, presos, vítimas durante o Terror das execuções em massa. Memória do combate virulento da escola católica na época da maçonaria triunfante. Do caso Dreyfus que reativa os ódios antissemitas dentro da Igreja. Expulsão de congregações religiosas educadoras no início do século. Da lei de 1905 que separa Igrejas e Estado, que os católicos “intransigentes” interpretam como um ato de espoliação e opressão, contra Jaurès e Briand que queriam fazer uma lei de apaziguamento. Memória da “disputa de inventários” de bens eclesiásticos que deu origem a incríveis cenas de violência em presbitérios e igrejas. Memória mais recente da guerra, da ocupação, dos compromissos vergonhosos de um episcopado petainista e de um clero colaboracionista.
Depois das brigas sobre a escola privada sob contrato que pararam nas ruas em 1984, a lembrança das batalhas seculares refluiu um pouco. Em parte, por falta de combatentes. Vigilante contra as pressões da Igreja e os excessos do Islã, o campo ultra laico viu seus batalhões se desarticularem e diminuir sua mordida e influência. A Igreja, por sua vez, aproveitou as regras da separação do Estado, cujas vantagens poderia apreciar melhor com sua independência financeira e política. Ela não precisa mais responder às autoridades públicas. Sua hierarquia, sua imprensa, seus militantes se fazem ouvir e participam livremente dos debates sobre a educação, a família, a procriação, o fim da vida, a bioética médica, a defesa dos direitos dos imigrantes ou dos necessitados.
Mas com o terrorismo, com a exploração política do mal-estar e os medos relacionados ao Islã e à religião em geral, o debate sobre a laicidade está se radicalizando novamente na França. As pressões políticas estão aumentando para alargar o escopo, para ampliar ainda mais o seu perímetro legal. Vinte anos após a proibição de símbolos religiosos “ostensivos” nas escolas públicas, personalidades de direita e de esquerda pedem a proibição do véu islâmico na universidade ou contestam o direito de mães muçulmanas com véus de acompanharem as saídas escolares. Os menus de “substituição” (para a carne de porco) nas cantinas escolares são objeto de controvérsia regular, até mesmo em tribunais. Nas empresas, as demandas de natureza religiosa estão aumentando e são sujeitas a controles meticulosos, antes de serem provavelmente regidas por uma lei.
Da mesma forma, as associações laicas multiplicam os recursos para limitar a intrusão da religião, entrando com processos, por exemplo, contra a presença de presépios de Natal em prefeituras e outros equipamentos públicos. Em dezembro de 2016, Laurent Wauquiez, presidente de direita da região de Auvergne-Rhône-Alpes, pediu para montar um enorme presépio na entrada do palácio do governo regional em Lyon. Mas quase um ano depois, o Tribunal Administrativo, por solicitação da Liga de Defesa dos Direitos Humanos e do Pensamento Livre, irá condená-lo a retirar o presépio que “desconsidera o princípio da neutralidade na ausência de caráter cultural, artístico e festivo”. Por outro lado, um presépio de Natal que foi montado no salão do conselho departamental de Vendée, em La Roche-sur-Yon, foi declarado legal em outubro de 2017 pelo Tribunal Administrativo de Apelação de Nantes, para quem esta prática é um costume cultural local que pode, portanto, transgredir o princípio da neutralidade.
A França adoeceu de sua laicidade? Um clima de “revisionismo anticristão” está em vigor, acusa a imprensa de direita e extrema direita. Um dia é um socialista eleito que contesta a presença de um crucifixo no Conselho Geral do Alto Reno. Outro dia são obscuros funcionários da RATP [Régie Autonome des Transports Parisiens, empresa responsável pelos transportes públicos em Paris e nos seus arredores] que censuram a menção “em benefício dos cristãos do Oriente” em centenas de cartazes que convidam para um concerto do grupo musical Les Prêtres dirigido por um bispo, Jean-Michel di Falco. Censura em nome do princípio da separação entre religião e serviço público, como se a laicidade fosse a negação do fato religioso, como se a palavra “cristão” ainda queimasse os lábios, como se os cristãos do Oriente fossem os atores e responsáveis por conflitos dos quais são especialmente as vítimas!
Isso não é tudo. Petições estão circulando para remover a cruz na entrada dos cemitérios. Ou para tirar as placas de rua que indicam, em algumas cidades, a direção do “bispado”. Em 2017, a direção da Lidl, uma cadeia de lojas de alimentação, decidiu tirar a cruz das igrejas gregas que ilustram uma gama de produtos deste país. Carrefour e Nestlé fizeram o mesmo em pacotes de iogurtes fabricados na Grécia. Uma deputada de direita, Valérie Boyer, católica de choque, revela sua surpresa em uma carta ao CEO do Carrefour: ela observa que a lua crescente muçulmana continua estampada nos produtos halal oferecidos em suas lojas!
No dia 15 de outubro de 2017, é Jean-Luc Mélenchon quem pede a retirada da bandeira da União Europeia da Assembleia Nacional, sob o pretexto de que as doze estrelas douradas da bandeira em um fundo azul constituiriam um símbolo mariano inspirado na “medalha milagrosa” de Nossa Senhora, que Paris invocou durante a epidemia do cólera de 1832. “Nenhuma religião na política”, esbraveja o deputado do França Insubordinada. “Não é no momento em que estamos combatendo o islamismo político que temos que exibir uma bandeira que não gera consenso na Europa. As instituições devem ser estritamente laicas”.
Alguns dias depois, após os processos perpetrados por Pensamento Livre e pela Liga dos Direitos Humanos, é a vez do Conselho de Estado dar um prazo de seis meses à cidade de Ploërmel, com nove mil habitantes (Côtes d'Armor), para a retirada de uma cruz que estava colocada sobre uma estátua de João Paulo II: “Como a cruz é um sinal ou um emblema religioso, na acepção do artigo 28 da lei de 9 de dezembro de 1905, e que a sua instalação pelo município não se enquadra em nenhuma das exceções previstas neste artigo, sua presença em um local público é contrária a essa lei”, dizem os sábios do Conselho. A resposta é dada no campo, e cruzes inundam o Twitter. Sob a hashtag #MontreTaCroix, os internautas postam suas fotos favoritas de cruzes, crucifixos e até mesmo cruzes de Lorena! “Esta decisão iníqua contribui para a destruição da nossa civilização judaico-cristã”, ressalta Louis Alliot, vice-presidente da Frente Nacional, enquanto Valéry Boyer e Christine Boutin se mobilizam em petições para ajudar a cruz de Ploërmel.
Esse negócio de presépios e cruzes são para fazer rir ou chorar! Em nenhum outro país vizinho da França, torce-se o nariz à evocação de uma denominação religiosa. É, sem dúvida, a herança de uma laicidade ultrapassada e estreita de uma história atravessada por ódios recozidos pelas ondas de uma literatura de combate. Mas haveria uma outra razão cada vez mais presente: monitorar os emblemas cristãos, punir os ataques à laicidade, seria uma maneira de não desagradar os muçulmanos e não ofender o Islã. No Le Figaro, um intelectual franco-israelense, Gilles-William Goldnadel, insurge-se contra esse novo recuo diante do islamismo.
Ele defende a manutenção dos símbolos cristãos contra um novo ostracismo que quer que “a religião dos nativos não se beneficie das mesmas atenções que a dos recém-chegados, do véu ao burkini”. Acostumado a mais moderação, o filósofo católico Rémi Brague, um bom conhecedor das origens do islã, escreveu: “Alguns ‘laïcards’ [veementes defensores da laicidade] sonham em acabar com o cristianismo, dando-lhe o tão aguardado golpe de misericórdia desde o século XVIII. Eles exploram o medo que muitas pessoas têm do Islã para tentar expulsar do espaço público qualquer vestígio da religião cristã, que é justamente aquela contra a qual o Islã, desde o início, definiu seus dogmas”.
A questão de fundo é saber onde está a fronteira entre o espaço privado, obviamente aberto à expressão de convicções, e o espaço público, que exige essa famosa “neutralidade religiosa”, que se tornou a nova categoria intransponível. Neutralidade religiosa na escola e na empresa, neutralidade religiosa nas cantinas das escolas, neutralidade religiosa na universidade, portanto, aberta a milhares de estudantes estrangeiros, neutralidade religiosa nas piscinas ou nas praias que proíbem o uso do burkini. É preciso “neutralizar” o espaço público, todo o espaço público, de modo a preservá-lo contra o “islamo-esquerdismo”, defender os “valores da República”, para retomar a linguagem de Manuel Valls. Em um famoso debate ocorrido em 2016, Jean-Louis Bianco, presidente do Observatório da Laicidade, advertiu aquele que ainda era o primeiro-ministro contra os perigos de uma extensão indefinida da exigência laica: “As coisas vão bem nas escolas, nas universidades, nas empresas quando as regras da laicidade são conhecidas. Por que mudá-las?”
A França laica está distante dos países anglo-saxões, onde a afirmação da pertença religiosa faz parte das regras básicas de sociabilidade. Ao contrário de países que há muito vêm oferecendo um ensino substancial do “fato religioso”, a França aceitou os elementos da cultura religiosa nos currículos escolares apenas no início dos anos 2000, graças a figuras proeminentes como Régis Debray ou a Liga da Educação, preocupada com a impotência de professores de história, filosofia, literatura, artes plásticas de ensinar Bossuet, Pascal ou a Reforma a jovens que não têm nenhuma referência bíblica, que são “analfabetos religiosos”, para citar Jean-Pierre Chevènement, ex-ministro da Educação.
Sem dúvida, após os ataques de janeiro de 2015 contra o Charlie-Hebdo e o supermercado kosher na porta de Vincennes, após a manifestação de três milhões de pessoas em Paris no dia 11 desse mesmo mês, foi necessário um debate de alto nível sobre a adesão aos valores da República, sobre as raízes espirituais da França, sobre o lugar dado às religiões, sobre a ignorância em parte responsável pelo aumento da intolerância. E sobre o próprio futuro dessa “laicidade à francesa”: nascida na luta revolucionária contra a onipotência da Igreja Católica, herdeira de um pensamento positivista que prognosticava o desaparecimento da religião, ela está hoje muito mal equipada para resistir ao radicalismo muçulmano e deve ser ardentemente defendida.
Mas esse debate foi sacrificado no altar dos a priori ideológicos e das recuperações políticas. Uma Marine Le Pen está travando uma guerra impiedosa contra o extremismo muçulmano qualificado de “câncer”: “Se continuarmos com comportamentos arriscados, como o comunitarismo e o colapso da laicidade, corremos o risco de metástase”. Um François Fillon, durante a campanha presidencial, pediu aos católicos para que se curvem à exigência de uma laicidade mais radical para lutar contra os excessos islâmicos que foram ignorados pela lei de 1905, mas que devemos ter em conta hoje.
Da mesma forma, uma parte do mundo intelectual está dividida sobre uma questão de outros tempos: o direito à... blasfêmia! Contra as campanhas de intimidação antirracista, contra as acusações de islamofobia, os militantes laicos reivindicam o direito absoluto à blasfêmia e à crítica universal das religiões. Uma Caroline Fourest faz da blasfêmia “a vela que guia os espíritos livres ameaçados por fanáticos”, enquanto Emmanuel Todd denuncia o nome de “Charlie” que “agora associa a identidade nacional francesa ao direito de blasfemar contra Maomé”. Uma antropóloga como Jeanne Favret-Saada, especialista em liberdade de expressão, insurge-se em seu último livro contra as “coalizões devotas”, cristãs ou muçulmanas, que, na falta de legislação que pune a blasfêmia, lutam para impor a proibição de obras que prejudicam a sensibilidade dos crentes.
No auge da estigmatização do Islã, pudemos ouvir vozes de direita e de extrema direita que invocavam as “raízes judaico-cristãs” da França como pretexto para fazer frente a um Islã invasor, recordar que a França “não é muçulmana” e nunca se deixará impor a burca ou os minaretes. Mas esse debate sobre as raízes também é obscurecido por segundas intenções partidárias. Às vezes flertamos com as obsessões da Frente Nacional, às vezes nos colocamos na virtude de uma laicidade rigorosa. Em 2003, o presidente Jacques Chirac, o Primeiro-Ministro Lionel Jospin e Valéry Giscard d'Estaing, presidente da Convenção Europeia, invocaram a tradição francesa da separação entre Igreja e Estado para evitar a menção das “raízes cristãs” da Europa no preâmbulo do Tratado Constitucional. Da mesma forma, a indignação abalou todo o campo laico quando Nicolas Sarkozy, então presidente da República, em visita a São João de Latrão em Roma, em dezembro de 2007, ousou colocar no mesmo nível o papel do “sacerdote” e o do “professor” no despertar da consciência dos jovens franceses.
A laicidade é uma conquista irreversível. Mas não podemos confundi-la com a negação histérica das religiões que inspiram a nossa história, nossas referências culturais, nossos valores de civilização, que são reservatórios de experiências, patrimônios, raízes e tradições. Elas são instâncias de normas e sentidos e, como tais, legítimas para fazer propostas sobre a educação, bioética, família, fim da vida, solidariedade com os excluídos, os refugiados, os migrantes indocumentados e os prisioneiros.
Como ignorar, escreveu em 2015 o filósofo Paul Thibaud, ex-diretor da revista Esprit, que se “as religiões se entrincheiram atrás de suas certezas”, é justamente porque elas têm mais direito de cidadania? E como fechar os olhos – acrescentou com pesar a filósofa católica Chantal Delsol, em sua obra Les Pierres d'Angle – para as heranças do passado religioso da França que ainda hoje impressionam suas paisagens, seu patrimônio, sua arquitetura, suas obras de arte, o próprio nome de suas cidades, até as festas do calendário.
A ascensão do poder, na década de 2010, de um catolicismo de direita e extrema direita é certamente o fruto dessa história particular francesa, onde estão em jogo a identidade, as raízes e os valores cristãos. É também necessário assegurar que a luta contra a “catofobia” e uma laicidade demasiado restritiva não seja encampada pelas forças conservadoras e por um movimento fundamentalista que, por sua vez, não acabe acertando as contas também com a liberdade. Seus discursos e métodos fornecem argumentos providenciais aos porta-vozes do anticristianismo, àqueles que sentem prazer em despertar as fantasias do obscurantismo. As religiões poderão reapresentar seu papel somente quando evacuarem suas derivas e favorecerem todas as formas de diálogo com a sociedade laica.
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De presépios e cruzes, ou a França enferma de sua laicidade. Extratos do novo livro de Henri Tincq - Instituto Humanitas Unisinos - IHU