Por: Rafael Francisco Hiller | 24 Agosto 2018
Ética social pode ser entendida enquanto um conjunto de regras, baseadas a partir de escolhas e valores éticos, aos quais os indivíduos aderem para garantir a manutenção da vida em sociedade. Muitas dessas normativas não são expressas explicitamente, mas são compartilhadas por todos os cidadãos da sociedade em questão, e devem ser seguidas. A ética social não deve ser entendida enquanto uma lista de normativas a serem cumpridas em toda e qualquer circunstância. Tais normativas devem servir de guia, isto é, devem estabelecer as normativas básicas daquilo que a sociedade julga como correto. O bem-estar da comunidade como um todo deve ser priorizado, ou seja, interesses individuais devem ser deixados de lado em prol do coletivo. De forma mais precisa, a ética social deve ser compreendida como certos princípios filosóficos e morais que são responsáveis pela representação da experiência coletiva dos indivíduos de determinada cultura. Esse tipo de ética atua, geralmente, como uma forma de “código de conduta” que direciona o que é e o que não é tolerável.
Já a ética social vista a partir de um viés cristão pode ser caracterizada como um conjunto de princípios cristãos que é responsável pela construção de uma economia ética e da promoção do relacionamento solidário entre os homens. É a igreja assumindo posições concretas e históricas diante dos dilemas históricos e sociais de cada época.
A história e as ações humanas podem ser vistas como um escrito, em que sua dimensão pragmática (como o intérprete é afetado pelo texto, a vivência) possui um valor semântico, ou seja, é detentor de um significado. “Tal consideração filosófica nos ajuda a compreender como o discernimento dos sinais de Deus na nossa história e ação pessoais, interceptadas como os Exercícios o fazem, à luz da Palavra de Deus, sobretudo, à luz dos mistérios da vida de Cristo, em especial do mistério pascal, pode ser transferida para a leitura dos sinais dos tempos no nível histórico-social”, como cita Scannone. “Pois os afetos da fé (amor, alegria, paz, harmonia...) e seus contrários (ódio, tristeza, frustração, discórdia...) são, de fato, vividos não só por cada um, mas também comunitária e coletivamente”. Nas dimensões sociais e individuais, encontra-se a mesma “lógica de caráter existencial”, ou seja, que as regras pertencentes ao discernimento de espírito e as meditações dos exercícios inacianos representam. No primeiro caso citado, deve-se tratar as escolhas de vida como o Pontífice nos instrui em Amoris Laetitia para situações contingentes. No que tange à outra dimensão vista acima, “trata-se das situações características de toda uma época ou de circunstâncias gerais de um determinado tempo e lugar, que será preciso ver (interpretar) e julgar (discernir) à luz do próprio Evangelho, para escolher e agir de acordo com os planos misericordiosos de Deus”.
Um sinal da ativa participação de Deus na história encontra-se na novidade da vida, “na autossuperação do factual como se, a partir disso, surgisse algo que o excede e que não encontra sua razão suficiente em seus antecedentes – em um ‘mais’ que está se dando como um dom, com uma superabundância inesperada que não é dedutível do anterior, nem sequer dialeticamente. O que o papa diz em AL 296 em relação às ‘duas lógicas [que] percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar’, referindo-se a situações irregulares individuais e familiares, pode ser transferido à atitude eclesial de grupos da igreja com relação a outros grupos eclesiais ou sociais, sendo, assim, que a lógica evangélica é a do amor compassivo de Deus que busca não separar, mas voltar a integrar”. É o comportamento repleto de misericórdia que o Pontífice revela em suas relações de cunho ecumênico, sem deixar de condenar veementemente os pecados contra os interesses comuns, mas não propriamente os pecadores. Daí que, de acordo com essa mesma lógica da misericórdia, ele desmascara como tentações “sob a espécie de bem” – tanto no nível individual quanto no da história global – o “mundanismo espiritual” (EG 93-97), “os eticismos sem bondade” (EG 231) e “os intelectualismos sem sabedoria”, pois, sob a aparência do cumprimento de normas abstratamente universais, deixam transparecer uma dureza de coração que pisoteia o evangelho da misericórdia. Pelo contrário, o espiritual não é mundano, a bondade avalia os condicionamentos que exculpam, e a sabedoria leva em conta as singularidades diferenciadoras.
Tudo isso de forma contundente, segundo Scannone, confirma que “o fio de ouro da misericórdia tece a ética social do Papa Francisco, em relação a colocar os pobres no centro do caminho tanto da Igreja quanto da humanidade global, e ao seu modo de proceder para discernir a ação salvadora de Cristo e do Espírito – as duas mãos do Pai – na história e na ação histórica”.
Juan Carlos Scannone S.I, nos Cadernos Teologia Pública número 135, analisa a ética social defendida pelo Papa Francisco, em “outra característica própria do Santo Padre: seu desejo de ‘uma Igreja pobre para os pobres’, com todas as consequências que isso implica, também em relação à nossa frágil ‘irmã mãe terra’. Porém, como se trata não só do conteúdo, mas também do método da sua ética e doutrina sociais, dediquei a última parte de tal volume ao discernimento, carisma inaciano outorgado a Francisco, mas que ele oferece à Igreja universal para o seu necessário ‘perscrutar os sinais dos tempos’”.
1- Introdução
2- O fio de ouro da misericórdia
3- Igreja pobre, dos pobres e para os pobres
4- Sinais dos tempos e discernimento inaciano
4.1- O discernimento em sua dimensão existencial
4.2- Translação do existencial ao social
Juan Carlos Scannone. Jesuíta, foi professor de diversas universidades latino-americanas e europeias, incluindo a Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. É ex-reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel, da Universidade del Salvador. Ingressou na Companhia de Jesus em 1948 e foi ordenado sacerdote em 1962. Obteve licenciatura em filosofia pela Faculdade de San Miguel (Argentina), e em teologia pela Universidade de Innsbruck (Áustria). Obteve doutorado em filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha). A partir de 1969 foi professor de filosofia e de teologia na Universidad del Salvador (em Buenos Aires). Foi diretor da revista Stromata. Entre 1988 e 1998 foi um dos vice-presidentes da União Mundial de Associações Católicas de Filosofia. Foi integrante da Academia Europeia “Scientiarum et Artium” e vice-presidente da Sociedade Argentina de Teologia.
Scannone esteve presente no XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, proferindo a conferência “A ética social do Papa Francisco: O Evangelho da misericórdia segundo o espírito de discernimento”. A íntegra da conferência pode ser assistida neste link.
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A ética social do Papa Francisco: o evangelho da misericórdia segundo o espírito de discernimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU