02 Julho 2024
"O alvo [da perseguição judicial contra Assange] foi a profissão jornalística como um todo, muito além do caso específico", escreve Vladimiro Zagrebelsky, magistrado italiano e juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de 2001 a 2010, em artigo publicado por La Stampa, 26-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Julian Assange, fundador do WikiLeaks, a partir de 2010 vazou na web centenas de milhares de documentos e vídeos, que relatam episódios da guerra travada pelas tropas estadunidenses no Iraque, relatórios de ações militares, comunicações de várias embaixadas dos EUA ao seu governo. Dizem respeito às atividades dos diplomatas nos vários países e os juízos que eles faziam dos governos e das figuras políticas. Nenhum dos documentos, publicados e em parte divulgados por uma rede de jornais ocidentais, foi desmascarado como não autêntico. Cada um deles, e especialmente o seu conjunto, são de manifesto interesse público, apesar do tempo decorrido entre os fatos representados e a informação ao público.
Uma característica essencial desse caso é a demonstração de que podem ser superadas as barreiras que os governos colocam para a proteção dos seus segredos. Na atividade hacker de longa data, Assange seguiu o critério de não danificar os sites que invadia, mas de publicar tudo o que fosse de interesse ali descoberto. Ele provou que a proteção de segredos não pode ser absoluta. O risco de vazamentos (os leaks) é real. Em outras palavras: ninguém pode descartar que, mais cedo ou mais tarde, a opinião pública tome conhecimento do que os governos (democráticos ou não) querem manter no escuro. A opinião pública, cuja informação correta é a base de todos os regimes democráticos, sempre ganhará um maior conhecimento sobre o que os governos realmente fizeram e quiseram esconder.
A coleta e publicação dos documentos do WikiLeaks, além do interesse por isso ou por aquilo, teve o enorme efeito de tornar evidente que não é possível proteger para sempre os segredos (aqui o militar ou diplomático estadunidense). A mera existência do risco de violação dos segredos tem um efeito de advertência e de prudência para quem, agindo, sabe que, talvez não imediatamente, a notícia pode tornar-se pública: algumas coisas só podem ser feitas quando se tem certeza de que nunca serão conhecidas. A própria possibilidade de vazamento de informações sobre o que se gostaria de manter segredo pode colocar um freio nas ações inescrupulosas dos governos (mas também de empresas privadas, bancos, etc.). A verdade é beneficiada, a falsificação é combatida e enfraquecida a propaganda. Um exemplo: a descoberta de que eram falsas as provas sobre a posse de armas de destruição em massa, usadas pelos governos estadunidense e britânico para justificar a guerra contra o Iraque de Saddam Hussein.
Assange, sem juízo sobre o fundamento das acusações, passou 5 anos preso na Inglaterra, durante os recursos judiciais contra a sua extradição às autoridades estadunidenses. A história que ele viveu e sofreu, em seu excesso repressivo, pode ser compreendida pelo valor exemplar que se quis lhe conferir. Como aviso a todos aqueles que pensassem em seguir o seu exemplo. O efeito é grave para um dos pilares da democracia: a liberdade de informar e ser informados sobre os fatos de interesse público. É de grande importância para todos e cada um de nós, em qualquer sociedade que pretenda ser democrática. É afirmada na Europa desde a Declaração dos Direitos do homem e do cidadão de 1789 e depois por todas as Constituições e pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos. E da mesma forma pela Constituição dos Estados Unidos. Não faz muito sentido prosseguir com a eleição de parlamentos e governos, se os eleitores desinformados não conhecerem os fatos relevantes.
Não pode ser negada a necessidade de sigilo imposta a determinados eventos, pelo tempo necessário. Mas o sigilo dos documentos, no momento da publicação por Assange, havia, de qualquer forma, esgotado qualquer potencial justificação, exceto do sigilo pelo sigilo. Assim, a perseguição de Assange quis atingir um para assustar cem; para que o que ele fez não aconteça mais. O alvo foi a profissão jornalística como um todo, muito além do caso específico. É verdade que o jornalista tem deveres e responsabilidades (por isso deveria ser verificado se é verdade que existem documentos que representaram perigo para a vida de alguém). Mas os vários governos estadunidenses e britânicos que se sucederam no tempo quiseram enviar um aviso aos jornalistas investigativos que trabalham forçando os segredos, para ficar longe daqueles escaldantes: a narrativa oficial e a propaganda não devem ser desmentidas. Mas, no interesse da democracia, são precisamente essas que devem ser postas à prova da verdade.
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Um processo que silenciou o jornalismo investigativo. Artigo de Vladimiro Zagrebelsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU