23 Fevereiro 2024
O ex-procurador: “Revelou torturas e sequestros perpetrados pelos EUA durante a luta contra o terrorismo. E as decisões do TEDH protegem o direito à informação, mesmo em casos de segredo”.
“As implicações do caso Assange são consideráveis e não podem ser ignoradas. Estão no jogo direitos fundamentais, a começar pelo direito/dever à informação...". Nascido em 1948, aposentado há cinco anos depois de uma carreira na linha da frente (foi procurador-chefe em Turim e adjunto em Milão, envolvido em investigações sobre máfias e terrorismo), juntamente com muitos outros juristas Armando Spataro há anos denuncia as incongruências do longo processo judicial contra o jornalista australiano. Aderiu às campanhas para pedir a sua libertação e agora espera, junto com a opinião público internacional, para conhecer o veredicto do Supremo Tribunal de Londres sobre a possível extradição do cofundador do Wikileaks para os Estados Unidos, onde corre o risco de 175 anos de prisão.
A entrevista é de Vincenzo R. Spagnolo, publicado por Avvenire, 22-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que acha das violações da Lei de Espionagem (que nos EUA protege segredos ligados à segurança nacional) imputadas a Assange?
Se e quando houver um julgamento nos EUA, o tribunal competente decidirá se aqueles fatos constituem um crime segundo as leis dos EUA. Contudo, não se pode negar que Assange revelou à opinião pública internacional crimes contra a humanidade cometidos pelo governo dos EUA ou por contratados em áreas como o Afeganistão ou o Iraque. Lembro-me que, em várias decisões, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos afirmou que - apesar dos deveres profissionais dos jornalistas - as notícias de interesse público podem muito bem ser publicadas, mesmo quando violam segredos. Além disso, constatou-se que nenhum dos nomes divulgados por Assange fosse até àquele momento desconhecido e que ninguém correu riscos após a publicação.
O senhor se deparou com certos segredos quando investigou, por exemplo, a “rendição” de Abu Omar em Milão.
Sim, mas essa não é a única razão pela qual penso assim. O fato é que, no país da investigação sobre o Watergate e dos jornalistas “cães de guarda” dos desvios do poder, o atentado de 11 de setembro de 2001 mudou muitas coisas: desde aquele dia, os EUA conduziram uma guerra contra o terrorismo sem regras, por vezes atropelando os direitos fundamentais e o direito bélico. Mas sequestrar e torturar suspeitos, que em quase todos os casos mais tarde se revelaram inocentes ou vítimas de erros de pessoa, trancá-los durante anos em “prisões” como Guantánamo, atirar em civis indefesos, incluindo crianças, são fatos que numa democracia não podem permanecer escondidos. Se um jornalista entra em posse de notícias semelhantes (ainda por cima de uma fonte militar, Chelsea Manning, processada e depois perdoada), antes as verifica e depois tem o direito/dever de publicá-las.
Além do destino de Assange, essa é a principal questão em jogo?
Isso mesmo. A liberdade de imprensa, o direito/dever de informação que nas democracias – como nos lembra Vladimiro Zagrebelsky, ex-juiz do TEDH – certamente não é um direito “menor”, a ponto de ser mencionado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e protegido pelas constituições de muitos países, incluindo os EUA com a Primeira Emenda. Mas às vezes, mesmo em nações evoluídas, o poder político acredita que pode reserva-se o direito de agir livremente para atender os seus próprios objetivos. Numa democracia isso não é possível. E quem revela certos abusos, com as provas nas mãos, não deveria ser perseguido, ainda por cima com acusações - por exemplo, para Assange, a de pró-putinismo - que me parecem inaceitáveis.
Com relação aos procedimentos utilizados, num recurso, o senhor e outros juristas denunciaram as irregularidades de diferentes estados. Quais?
Durante os últimos anos - para citar o suíço Nils Melzer, ex relator especial da ONU sobre a tortura – Assange foi submetido a intimidações psicológicas desgastantes. Existem pelo menos três estados, além de EUA, que tiveram um papel nisso. Estou me referindo ao Equador, que concedeu asilo pela primeira vez em 2012 e cidadania a Assange, hospedando-o na sua embaixada em Londres. E depois, em 2019, o revogou, permitindo que a polícia inglesa invadisse e o prendesse. Ou à Suécia, que acionou o mecanismo que levou à prisão com um pedido de extradição por supostas violências sexuais, uma acusação tão inconsistente que mais tarde foi arquivada por falta de provas.
E a Grã-Bretanha, agora chamada a decidir sobre a extradição?
Incluímo-la entre os berços dos direitos dos cidadãos. Mas nessa história vimos outra coisa: a polícia britânica primeiro “sitiou” a embaixada equatoriana e depois a autoridade judicial, há 5 anos, trancou Assange na prisão de segurança máxima de Belmarsh, em condições de isolamento reservadas a terroristas ou criminosos perigosos. Quanto à extradição, gostaria de salientar que Londres não a concedeu ao ex ditador chileno Pinochet, preso a pedido da Espanha, que pedia para processá-lo por crimes contra a humanidade. Seria estranho se a concedesse a Assange, que, ao contrário, revelou crimes muito graves.
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“Assange revelou crimes graves sem pôr ninguém em perigo”. Entrevista com Armando Spataro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU