21 Junho 2024
O bebê Ôxe Yanomami – um nome fictício, a fim de proteger sua identidade – nasceu no primeiro trimestre de 2021 em uma aldeia na região do rio Parima, no coração da floresta amazônica da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Com apenas oito dias de vida, saiu dos braços da mãe e foi entregue a uma “dona de barraco de garimpeiro” que o teria transferido, por meio de um helicóptero contratado por R$ 13 mil por um grupo de garimpeiros, para uma família evangélica não indígena em uma cidade de Roraima.
A reportagem é de Rubens Valente, publicado por Agência Pública em 20-06-2024.
Lá, a criança teria sido entregue a uma trabalhadora da radiofonia do sistema do garimpo que opera ilegalmente dentro do território Yanomami. Seu companheiro foi identificado depois pela própria mulher como alguém que “trabalha com mineração [garimpo]”. Durante um ano e meio, a criança teria sido criada anonimamente na cidade, sem o conhecimento das autoridades.
Apenas em agosto de 2022 a mulher revelou, por meio de uma petição ajuizada pela Defensoria Pública do Estado, à Vara da Infância e Juventude de Boa Vista (RR), que criava a criança indígena. Solicitou ao Judiciário a guarda provisória de Ôxe.
O Judiciário entendeu que a ocultação do bebê das autoridades não deveria impedir a guarda da criança, que foi concedida primeiro de forma provisória e depois, definitiva, em dezembro de 2023. O Ministério Público Estadual de Roraima apoiou a decisão.
A história de Ôxe, que significa criança pequena na língua Yanomami, foi apurada pela Agência Pública junto a inúmeras fontes ao longo dos últimos meses. Ela traduz uma realidade que preocupa, cada vez mais, indígenas e indigenistas em Roraima: a adoção de crianças Yanomami autorizada pelo Judiciário para famílias não indígenas, inclusive, como no caso de Ôxe, a pessoas ligadas ao garimpo.
Segundo dados reunidos pela Vara de Infância e Juventude em um relatório produzido em março de 2023, 18 crianças indígenas haviam sido adotadas de janeiro de 2018 até aquela data em Roraima. Desse total, 15 eram Yanomami. Das 18 crianças adotadas, “apenas duas foram mantidas na própria comunidade – adotadas por indígenas –, sendo as demais adotadas por não-indígenas”.
Além desses casos, em março de 2023 havia outros cinco processos de adoção de indígenas em tramitação no Judiciário de Roraima, dos quais dois tratavam de crianças Yanomami.
Todos os processos tramitam sob segredo de justiça, o que dificulta uma análise jornalística sobre os detalhes de todas as adoções. Ao longo dos últimos meses, contudo, a Pública conseguiu reunir inúmeras informações sobre o caso de Ôxe.
O bebê Ôxe Yanomami – um nome fictício, a fim de proteger sua identidade – nasceu no primeiro trimestre de 2021 em uma aldeia na região do rio Parima, no coração da floresta amazônica da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Com apenas oito dias de vida, saiu dos braços da mãe e foi entregue a uma “dona de barraco de garimpeiro” que o teria transferido, por meio de um helicóptero contratado por R$ 13 mil por um grupo de garimpeiros, para uma família evangélica não indígena em uma cidade de Roraima.
Lá, a criança teria sido entregue a uma trabalhadora da radiofonia do sistema do garimpo que opera ilegalmente dentro do território Yanomami. Seu companheiro foi identificado depois pela própria mulher como alguém que “trabalha com mineração [garimpo]”. Durante um ano e meio, a criança teria sido criada anonimamente na cidade, sem o conhecimento das autoridades.
Apenas em agosto de 2022 a mulher revelou, por meio de uma petição ajuizada pela Defensoria Pública do Estado, à Vara da Infância e Juventude de Boa Vista (RR), que criava a criança indígena. Solicitou ao Judiciário a guarda provisória de Ôxe.
O Judiciário entendeu que a ocultação do bebê das autoridades não deveria impedir a guarda da criança, que foi concedida primeiro de forma provisória e depois, definitiva, em dezembro de 2023. O Ministério Público Estadual de Roraima apoiou a decisão.
Entidades alertam que a adoção de crianças indígenas autorizada pelo Judiciário para famílias não indígenas deve seguir o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, que estabelece que nesses casos é “obrigatório” que a nova “colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade junto a membros da mesma etnia”.
A história de Ôxe, que significa criança pequena na língua Yanomami, foi apurada pela Agência Pública junto a inúmeras fontes ao longo dos últimos meses. Ela traduz uma realidade que preocupa, cada vez mais, indígenas e indigenistas em Roraima: a adoção de crianças Yanomami autorizada pelo Judiciário para famílias não indígenas, inclusive, como no caso de Ôxe, a pessoas ligadas ao garimpo.
Segundo dados reunidos pela Vara de Infância e Juventude em um relatório produzido em março de 2023, 18 crianças indígenas haviam sido adotadas de janeiro de 2018 até aquela data em Roraima. Desse total, 15 eram Yanomami. Das 18 crianças adotadas, “apenas duas foram mantidas na própria comunidade – adotadas por indígenas –, sendo as demais adotadas por não-indígenas”.
Além desses casos, em março de 2023 havia outros cinco processos de adoção de indígenas em tramitação no Judiciário de Roraima, dos quais dois tratavam de crianças Yanomami.
Todos os processos tramitam sob segredo de justiça, o que dificulta uma análise jornalística sobre os detalhes de todas as adoções. Ao longo dos últimos meses, contudo, a Pública conseguiu reunir inúmeras informações sobre o caso de Ôxe.
A Pública apurou que a versão sobre as circunstâncias da saída da criança da aldeia e a subsequente entrega a uma família não indígena foi apresentada no processo judicial pela própria mulher que requisitou a guarda. A versão foi acolhida, ao final do processo, pelo Ministério Público e pelo Judiciário.
A princípio, a mulher não indígena foi representada, no processo, por um defensor público do estado de Roraima, Jaime Brasil Filho – depois, a família constituiu um advogado particular. A família argumentou que Ôxe nasceu “de uma relação entre indígenas de comunidades rivais” e que, por isso, estava sob ameaça de morte pelos indígenas.
Para amparar sua versão, a família anexou ao processo uma “declaração de doação voluntária” assinada não pela mãe biológica de Ôxe, mas por uma liderança da região do rio Parima identificado como “tuxaua” da comunidade. O indígena, que na declaração não menciona risco de morte do bebê, afirmou, laconicamente, que “a mãe informou que não ficaria com a criança, doando-o para a não indígena”.
Ainda que a versão da família não indígena seja verdadeira sobre o caso de Ôxe, o que tem sido alvo de questionamentos por organizações indígenas como a Hutukara Associação Yanomami - HAY e Conselho Indígena de Roraima - CIR é a necessidade de o sistema judicial cumprir à risca o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
Tornado lei federal em 1990 (nº 8.069), o ECA estabelece que, nos casos de adoção que tratam de criança ou adolescente indígena, torna-se “obrigatório” que a nova “colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade junto a membros da mesma etnia” (artigo 28).
A pedido da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Hutukara foi intimada pela Justiça a se manifestar sobre o caso de Ôxe. A organização fez uma defesa veemente da necessidade de o sistema judicial empreender esforços a fim de tentar localizar, de forma “prioritária”, uma outra família indígena disposta a adotar a criança antes de decidir a favor de uma família não indígena.
A entidade disse ainda que estava disposta a tentar localizar ou indicar famílias indígenas que poderiam acolher a criança na própria terra Yanomami, e não em instituições de Boa Vista. Falou da necessidade de “manter os vínculos da criança com seu povo” até que o processo fosse julgado.
O advogado indígena Ivo Macuxi, assessor jurídico do CIR, apontou, em entrevista à Pública, a necessidade de Ministério Público e Judiciário criarem um protocolo para que as organizações sejam ouvidas e acompanhem todos os casos de adoção de crianças indígenas. Ele disse que apenas recentemente isso tem sido adotado como prática pelo sistema judicial.
No caso de Ôxe, a Pública apurou que tanto a mãe biológica quanto a liderança indígena que teria repassado o bebê a uma garimpeira não foram localizadas nem ouvidas em depoimento pelo Judiciário ao longo do processo. Como o Judiciário não conseguiu localizar a mãe biológica, ela foi intimada por um edital. A Pública apurou que a mãe tem dificuldades para entender o português e vive numa aldeia isolada a muitas horas de voo de Boa Vista.
“Informamos que não foi possível atendimento com a genitora de [Ôxe], e será intimada por Edital”, informaram, em relatório à Justiça, os integrantes de uma equipe interprofissional do núcleo cível da Vara de Infância e Juventude. Assim, não há no processo de guarda a versão dos familiares de Ôxe sobre a suposta doação da criança aos garimpeiros.
A mulher que procurou o Judiciário para solicitar a guarda de Ôxe disse, em depoimento à Justiça, que ela e seu marido passaram um tempo divorciados mas reataram, somando agora 12 anos de união. Eles não têm filhos em comum, mas ela tem dois, de um relacionamento anterior.
Primeiro ela disse que “não trabalha formalmente, atua apenas nos serviços domésticos”. Logo em seguida, contudo, declarou que, em 2021, “trabalhava com rádio amador na região de garimpo”. Segundo ela, uma outra mulher que “era dona do ‘barraco de garimpeiro’ onde a irmã do tuxaua ficou escondida com o bebê”, em meio a supostas ameaças, procurou-a pelo telefone para indagar se ela poderia ficar com Ôxe.
A mulher informou à Justiça que ela e seu marido frequentam uma igreja neopentecostal fundada nos anos 1990 em Manaus (AM). Em sua página na internet, a igreja comemora a construção de um novo templo: “Nessas paredes, teto e chão estão a oferta do pobre e do rico, moedinhas e milhões, carros, casas, terrenos e joias que foram doados com a certeza de que o Senhor retribui multiplicadamente àquela que tem um coração voluntário”. A mulher declarou uma renda mensal de R$ 4 mil.
A mulher disse ao Judiciário que, como não teve filhos biológicos com seu companheiro, o aparecimento do Ôxe na sua vida foi “uma resposta de oração, pois não estava planejando adotar uma criança e ‘ele veio até nós’”. Disse que o menino “é tudo para eles” e que ele foi “bem recebido e aceito por todos de sua família”. Disse ainda que decidiu entrar com o processo de guarda da criança porque “todas as vezes que precisava resolver algo referente a [Ôxe], tinha que explicar que estava em processo ‘para ficar com ele’”.
A equipe da Vara de Infância e Juventude orientou a mulher “sobre os procedimentos para uma adoção legal, segura e para sempre, que é por meio de processo de Habilitação para Adoção e aguardo por filho junto ao Sistema Nacional de Adoção”. A mulher responde que “não planejou”.
Laudo antropológico apontou dúvidas sobre a guarda do bebê.
Em sua manifestação ao Judiciário, a Hutukara lembrou que, em 2021, quando Ôxe nasceu, a invasão garimpeira atingira níveis alarmantes em todo o território Yanomami. Não foi diferente na calha do rio Parima, região em que vivia a mãe biológica da criança.
Citando o relatório “Yanomami sob ataque”, redigido em 2022 pela entidade, a Hutukara mencionou as difíceis condições da população Yanomami sob invasão garimpeira, que levam famílias à vulnerabilidade, à desnutrição e uma rotina de violência. Garimpeiros chegaram a atacar aldeias a tiros.
O relatório assim descreveu a invasão na região do Parima, onde Ôxe nasceu: “De todas essas regiões, a situação do Arathau é a mais desalentadora. Ali operam diversos canteiros, quatro pistas de pouso clandestinas e uma dúzia de balsas, ao longo de todo o médio curso do rio Parima. Há também exploração em igarapés afluentes em ambas as margens. O boom do garimpo no Parima começou ainda em 2020, com a eclosão da epidemia de COVID-19, e, de lá pra cá, foi observado um incremento de mais de 100 hectares de destruição, além de uma coleção de episódios trágicos”.
A Hutukara também solicitou um laudo antropológico sobre o caso de Ôxe. Dias depois, o juiz da Vara da Infância e Juventude, Marcelo Lima de Oliveira, autorizou o estudo, a ser realizado por um servidor qualificado da própria vara, o antropólogo Marcos Antonio Barbosa de Almeida.
Em seu laudo, Almeida apontou uma “burla do Direito” promovida pela família não indígena que pleiteava a guarda da criança. Ele também colocou em dúvida a versão apresentada à Justiça.
“Não há, em toda a Ação em comento, constatação de veracidade dos fatos narrados pela requerente, além de precário documento disponibilizando a criança aos não indígenas, supostamente por um representante da comunidade. Por outro lado, ficou clara a intenção da requerente em manter uma criança da etnia Yanomami sob sua responsabilidade, sem comunicar às instituições de Estado e organizações de representação do grupo étnico. Tão claro ficou também o pano de fundo da ação arbitrária da senhora [não indígena]: o ‘estabelecimento de vínculo’ com a criança”, diz o laudo.
O antropólogo advertiu que, “em processos judiciais envolvendo crianças Yanomami, são imprescindíveis esclarecimentos acerca das concepções em torno do interdito da vida”.
“O fato está diretamente ligado a estas ações judiciais, considerando estarem presentes em discussões em audiências, sendo recorrentemente acionado para subsidiar ações de destituição familiar em desfavor de mães Yanomami. Além disso, elabora-se no senso comum não indígena designações pejorativas às práticas dessas populações. Este fato, indubitavelmente, se reflete no interior de instituições que, via de regra, deveriam priorizar pela compreensão e reconhecimento da diversidade de sistemas normativos entre os povos que habitam o extremo norte brasileiro.”
O antropólogo reconheceu que, “para a maioria das populações” que habitam a Terra Indígena Yanomami, “crianças fruto de relações extraconjugais podem vivenciar processos de rejeição”. Contudo, o “abandono parental” nem sempre se dá por “desafeto materno” e a criança “fruto desse tipo de relação possui todos os atributos para permanecer no interior de sua comunidade quando acolhido – a consenso do mesmo grupo – por família extensa ou, quando esse fato ocorre fora do território da etnia, ser disposto aos cuidados do Estado para efeitos do devido processo legal de adoção”.
O laudo antropológico e a posição da organização indígena não foram suficientes para reverter a primeira decisão de guarda provisória de Ôxe. O representante do Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR) que atuou no processo, Anedilson Moreira, escreveu que “a HAY não indica a família que receberia” o menino, “que acabaria sendo institucionalizado”, ou seja, colocado numa instituição pública para adoção. A HAY disse que em nenhum momento se recusou a indicar uma família indígena e que não foi obrigada judicialmente a fazê-lo.
A Hutukara apelou da decisão que deu a guarda definitiva à família não indígena. O MPRR defendeu a manutenção da decisão judicial. Em 13 de maio último, o procurador de Justiça da 3ª Procuradoria Cível do MPRR, Sales Eurico Melgarejo Freitas, disse que, “a despeito do Laudo [antropológico] apresentado”, o juiz Marcelo Lima de Oliveira “fundamenta a sentença em elementos fáticos constatados a partir do processo, como o fato de a criança encontrar-se sob os cuidados da parte apelada desde que tinha cinco dias de vida, exercendo todos os deveres maternos e os cuidados com a saúde e segurança da criança, […] necessitando de maiores cuidados em função da sua vulnerabilidade”.
“Parece-nos que a retirada da criança do convívio e cuidados da autora [não indígena] seria, em todos os cenários hipotéticos possíveis, traumático, circunstância essa que deve ser considerada com o devido peso hermenêutico”, escreveu o procurador.
O sertanista Sydney Possuelo, que no início dos anos 1990 assinou a demarcação da Terra Indígena Yanomami no cargo de presidente da Funai, disse que a prática de adoção de bebês Yanomami por não indígenas precisa ser investigada de forma independente por outros órgãos públicos e por pesquisadores, pois os processos “ficam no sigilo dentro do Judiciário”. Ele disse que supostas dificuldades encontradas pelo sistema judicial para localizar familiares de crianças e jovens indígenas não devem ser usadas como argumento para, em tese, o não cumprimento do ECA.
“A alegação deles em nenhum momento desvia ou serve de subterfúgio para fazerem o que fizeram. Órgão de justiça tem que se aprimorar em fazer cumprir a lei. O que é que os dispositivos falam? Mandaram consultar a família, prioritariamente, de outros indígenas? Ninguém foi ouvido nisso. Fez-se um papelzinho, um parágrafo, ‘declaro que a mãe quis doar a criança’, e só.”
Para Possuelo, os representantes da Funai que deixaram de assegurar os direitos indígenas durante esses processos de guarda e adoção deveriam ser investigados e, se necessário, punidos.
“Mas ainda causa mais espécie ver que, dentro de toda essa multidão de gente envolvida em todos esses processos, onde é que fica o órgão oficial que tem por dever defender os povos indígenas judicial e extrajudicialmente, como está na lei? Onde fica a Funai nisso? O que a Funai fez? Não é possível que os representantes locais da Funai não soubessem de tudo isso, é claro que sabiam de tudo isso. […] É uma indecência isso que fazem no Brasil com os povos indígenas.”
Em entrevista à Pública, o promotor de justiça Anedilson Moreira disse não se recordar de detalhes do caso de Ôxe, pois atua em muitos processos de adoção ao mesmo tempo. Afirmou, porém, que é “feito todo um estudo multidisciplinar” com uma equipe de profissionais e que, em todos os casos de adoção de crianças indígenas, “têm que se esgotar” as etapas até a adoção.
O promotor citou dificuldades logísticas na Terra Indígena Yanomami na hora de localizar testemunhas ou famílias que são partes em processos de guarda. “Eu particularmente conheço a comunidade Yanomami, conheço praticamente todas as comunidades indígenas aqui de Roraima, e é uma coisa muito complexa de se resolver. Você só tem acesso via aérea. Eu não sei te dizer quantos aviões seriam necessários para transportar só os Yanomami”, disse o promotor.
O defensor público Jaime Brasil Filho, que ajuizou o pedido de guarda de Ôxe em nome da família não indígena, também disse que não tinha condições de comentar detalhes do processo de guarda de Ôxe por não se recordar dos detalhes do caso. Ele disse que a Defensoria Pública do Estado “tem um papel quase que de remendar a ausência da atuação federal” nos processos de guarda e adoção de indígenas.
O defensor disse concordar com o artigo do ECA que fala que “colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade junto a membros da mesma etnia”. Afirmou que é necessário buscar o novo lar da criança primeiro junto à família da mãe biológica, depois “à família estendida”, depois “a comunidade”, depois “uma outra comunidade “próxima” e, por fim, em caso de recusa de todos esses lugares, “uma outra etnia indígena”.
O defensor afirmou que todo o processo precisa ser acompanhado por representante da Funai, “que deveria ingressar [no processo] como procurador para representar os interesses da criança”.
“O problema é que a Funai não aparece [nos processos]. Inclusive ontem [dia 22 de maio] nós tivemos uma reunião sobre esse assunto com a Funai aqui em Roraima, com o pessoal da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal etc. A Funai está prometendo que, de agora em diante, ela vai aparecer nesses processos”, disse Brasil Filho.
“Em resumo, a Defensoria Pública do Estado de Roraima é chamada pelo juiz para cobrir uma ausência, um buraco, porque a Funai é intimada e não comparece ao processo, e alguém tem que representar, digamos, os interesses da família ou da criança.”
O defensor disse que os casos mais comuns, dos 18 registrados de 2018 a março de 2023, foram não de famílias apresentando indígenas para adoção (como no caso de Ôxe), mas de indígenas abandonados em instituições públicas do estado e do município.
“Não sou eu, não, que coordena isso. É o juiz também. Isso aí é o seguinte. É um pouco intrincado, mas eu vou te explicar. Os abrigos, eles são administrados financeiramente e, obviamente, administrativamente, a parte da estrutura dos abrigos, pelo poder público Executivo, seja o município, seja o estado. Só que ele cumpre ordens do juiz também. Cada abrigo desses tem uma equipe técnica de psicólogos, de assistentes sociais, de psicopedagogos. É essa equipe que faz o acompanhamento das crianças que estão ali. É essa equipe que faz a aproximação da criança com os pretensos ou os pretendentes à adoção, os adotantes e os pretensos dos adotantes. O juiz faz o acompanhamento dessas equipes. Recebe relatórios, recebe informações, manda data de autorização para aproximação.”
Procurados pela Pública desde o dia 21 de maio passado, o Tribunal de Justiça de Roraima e a Vara de Infância e Juventude de Boa Vista não se manifestaram até o fechamento deste texto.
A sentença judicial que deu a guarda definitiva de Ôxe à família não indígena teve o respaldo também do MPRR.
Na sua sentença, o juiz Marcelo Oliveira escreveu: “Retirar a criança do convívio e dos cuidados da autora seria doloroso e geraria uma mudança brusca, principalmente seria arriscado, pelo fato de ter que se adaptar a um ambiente totalmente diferente, nova casa e família ou ainda ser institucionalizado.
Segundo a sentença do juiz, “o parâmetro para a definição de quem deve exercer a guarda de uma criança deve sempre ser o interesse deste, o qual, diga-se de passagem, deve prevalecer sobre qualquer outro. O que se visa é propiciar uma vida familiar estável com especial atenção à sua formação e integridade física e moral”.
No ano passado, após um texto divulgado no blog do jornalista Octavio Guedes no site G1, que repercutiu a denúncia feita pelo CIR, o Judiciário fez um levantamento sobre as adoções de indígenas.
O relatório, assinado pelo juiz Oliveira, negou quaisquer “irregularidades gerais nas adoções realizadas no Estado de Roraima” e concluiu, entre outros pontos, que “as adoções envolvendo indígenas, e mesmo os acolhimentos institucionais, estão dentro da média populacional e sem sobressaltos ao longo dos anos, mantendo-se a média ano a ano”.
O relatório afirma ainda “nunca ter havido uma única denúncia específica narrando situação de irregularidades na tramitação de processos de adoção que envolvam indígenas, nem por meios informais, nem por meios formais”.
“As crianças colocadas em acolhimento institucional ou mesmo em família substituta, são aquelas que foram ‘rejeitadas’ por sua comunidade, por aspectos culturais, notadamente por questões que envolvem graves problemas de saúde, como microcefalia, má-formação congênita, entre outros”, diz o relatório.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Judiciário dá guarda de bebê Yanomami a casal que trabalha com garimpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU