24 Janeiro 2023
Lideranças contaram história da demarcação da Terra Indígena para os mais jovens, refletiram sobre os retrocessos no governo Bolsonaro e apontaram caminhos para o futuro.
A reportagem é de Fabrício Araújo, publicada por Instituto Socioambiental (ISA), 23-01-2023.
À beira do Lago Caracaranã, localizado no município de Normandia, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cerca de dois mil indígenas de 11 regiões de Roraima se reuniram para celebrar os 50 anos de “união, luta, resistência e conquistas” do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Com duração de quatro dias, de 16 a 19 de janeiro, a festa contou com a presença de importantes lideranças, conhecedoras da história dos 50 anos de atuação do CIR – uma “biblioteca viva”.
Líderes indígenas das 11 coordenações que já passaram pelo CIR relembraram a intensa disputa com fazendeiros invasores, casos de violência e a luta pela retomada da terra. Finalmente, exaltaram a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, demarcada em 1998 e homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 15 de abril de 2005, durante seu primeiro mandato.
Passarela com bandeira do CIR e nomes das 11 regiões presentes na comemoração dos 50 anos do Conselho, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. (Foto: Fabrício Araújo)
Os indígenas de Roraima também refletiram sobre os desafios vividos nos últimos quatro anos com o governo de Jair Bolsonaro (PL) e se propuseram a traçar novas metas com a chegada do terceiro governo Lula.
Edinho Batista, atual coordenador geral do CIR, afirmou que, entre as prioridades, estão a discussão da proteção dos territórios, a produção sustentável em comunidades indígenas e o fortalecimento do uso de energias renováveis – em contraposição ao impacto negativo de grandes hidrelétricas.
“Temos propostas para enfrentar a mudança climática, pois é uma questão que prejudica o mundo inteiro. Temos a esperança de salvar o planeta através das demarcações de Terras Indígenas e proteção das florestas e para isso, claro, é preciso revogar todas as portarias e decretos de Bolsonaro que facilitam as invasões”, explicou.
Edinho Batista, atual coordenador do Conselho Indígena de Roraima: "temos a esperança de salvar o planeta através das demarcações de Terras Indígenas". (Foto: Fabrício Araújo)
No primeiro dia de seu terceiro mandato, Lula assinou uma série de decretos e medidas que retomam políticas públicas socioambientais.
Com 42 anos, Edinho é mais jovem que a própria organização e afirma ser filho das políticas feitas pelo CIR, como o “Vai ou racha” e “Uma vaca para o índio”. (entenda estas políticas abaixo)
“Eu não tenho a idade da organização, mas sinto que há uma raiz profunda que ninguém nunca pode arrancar. Sinto que é uma árvore que cresce para dar sombra para outras populações e gerações que temos pela frente”, descreveu.
Segundo ele, há outros “campos de batalha” onde o movimento indígena de Roraima pode aportar. “Os povos indígenas têm uma contribuição histórica, que pode ser usada para ajudar a reconstruir o país após esses quatro anos no escuro com políticas que tentavam exterminar a nós, os indígenas”, declarou.
Edinho classificou como “desafio” viver sob as políticas do governo Bolsonaro e afirmou que as ameaças serviram como “uma injeção, um impulso para combater a política genocida”.
O período de 2019 a 2022 também preocupou Jacir de Souza, tuxaua macuxi que coordenou o CIR entre 2001 e 2005. Durante seu mandato, ele chegou a percorrer outros países expondo a crise na Raposa Serra do Sol e explicando a diversas autoridades a necessidade de demarcação. Nos últimos quatro anos, ele temeu pelos povos de outras terras.
“Antes mesmo do Bolsonaro entrar em campanha, ele já dizia que se ganhasse não demarcaria nenhuma Terra Indígena. E, com ele, as pessoas se sentiram liberadas para garimpar ilegalmente. Esses quatro anos não teve nada de bom para os povos indígenas, só invasões, como aconteceu com a Terra Yanomami com mais de 30 mil garimpeiros. Aqui, na Raposa Serra do Sol, como já fazíamos o trabalho de impedir a entrada, conseguimos evitar as invasões”, explicou.
Com o fim do governo Bolsonaro, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e nomeação de Joenia Wapichana como presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Jacir espera que outras terras sejam demarcadas e percebe que tem “indígenas trabalhando para indígenas dentro do governo”.
A insegurança de viver em uma terra sem demarcação também foi lembrada por Desmano de Souza, líder macuxi que foi vice-coordenador do CIR de 1997 a 2000. Filho de indígenas brasileiros, ele nasceu na Guiana Inglesa (hoje Guiana). Mas, aos 14 anos, seu pai retornou a Roraima após sofrer perseguição política no país vizinho. Ele descreve que fugiu de uma guerra e, ao chegar na Raposa Serra do Sol, em 1969, se deparou com um novo cenário de guerra dos fazendeiros contra os seus parentes indígenas.
“Em 1969 ainda não estava tão agressiva a situação como se tornou a partir de 1987. Eu lembro que quando cheguei, os fazendeiros já não nos deixavam mais fazer nossos retiros e nem ser vizinhos deles. Quando esquentou a luta dos fazendeiros contra o meu povo, eu já era adulto e participei mesmo com alguns dos meus irmãos me dizendo para não me envolver”, relembrou.
Durante os intervalos nas falas de lideranças do CIR, era possível visitar tendas com artesanatos à venda, comprar comida produzida pelos indígenas e se refrescar no Lago Caracaranã. No entanto, as apresentações de canções autorais de forró dominavam as atenções dos presentes na festa. Os indígenas dançavam e cantavam sobre orgulho da própria cultura, paz e com mensagens de militância indígena.
“Eu vi os jovens dançando e fiquei pensando: ‘o que seria aqui, no Lago Caracaranã, se não tivesse sido feita a demarcação?’. Como nós ganhamos, aproveitem, jovens, dancem e brinquem”, disse Desmano durante seu discurso.
“A portaria já foi assinada / Renan Calheiros é quem assinou / É a vitória do povo indígena (…)/ Vem, liderança, vem festejar”, cantavam os indígenas um trecho de uma das canções, que fala da demarcação da Raposa Serra do Sol em 1998.
À época, Renan Calheiros era ministro da Justiça e assinou o documento declarando a terra como posse permanente dos povos indígenas. A medida se tornou uma longa batalha judicial com o governo de Roraima e o Supremo Tribunal Federal (STF), que só chegou a uma decisão em 2009, cinco anos após Lula assinar a homologação.
Lideranças de comunidades indígenas em torno do CIR começaram a realizar grandes encontros anuais para tomadas de decisões a partir de 1971, ano da primeira Assembleia dos Tuxauas, que ocorreu na comunidade do Barro, na região do Surumú. Seis anos depois, em 1977, acontece a histórica assembleia do “Vai ou Racha”.
Nela, as lideranças decidiram abolir bebidas alcoólicas das comunidades e fortalecer a defesa de suas terras. A decisão ocorreu após anos de conflitos pelo território da Raposa Serra do Sol, que a cada dia se tornavam mais violentos e sangrentos.
Muitos indígenas foram expulsos de suas próprias casas ou foram assassinados tentando defender o direito de permanecer na terra. Abolir o álcool era crucial para manter os indígenas sóbrios e evitar que invasores os manipulassem.
Já em 1980, o projeto “Uma vaca para o índio” chega às comunidades para incentivar a criação comunitária de gados. O modelo, que propõe uma rotatividade de animais nas comunidades, funcionou tão bem que segue em marcha até os dias de hoje.
De acordo com a secretária-geral do movimento de mulheres do CIR, Maria Betania Mota de Jesus, a criação comunitária de gado é o principal projeto na linha de sustentabilidade, sendo, inclusive, replicado por povos indígenas de outros estados.
“As pessoas dizem que ‘tem muita terra para pouco índio', mas não tem, a verdade é que há muitos indígenas para pouca terra. Nós vamos, cada vez mais, falar sobre como os povos indígenas precisam ser ouvidos”, falou.
“Este ano de 2023 já chega com muitas mudanças. As nossas lideranças são estratégicas e por isso há muitas organizações de outros estados que têm o CIR como referência”, disse, fazendo referência à troca de governo e à atuação do CIR.
Uma das lideranças de mulheres do povo Macuxi, Maria Betania afirmou que os últimos quatro anos foram um desafio, mas pontuou que o mandato de Joenia Wapichana (Rede) como deputada federal foi essencial e estratégico para proteger homens e mulheres indígenas.
“Graças a Deus, havia uma mulher indígena para nos representar nesses quatro anos de governo Bolsonaro. Com muita força e capacidade, ela soube criar estratégias e trazer pessoas para o nosso lado. Não foi fácil para o Bolsonaro, porque ela fez a diferença lá e foi uma referência para todas as mulheres do Brasil. Joenia Wapichana mostrou como o povo indígena é unido”, exaltou Maria Betania.
Com Lula como presidente do Brasil, ela afirma que não é “hora de os indígenas cruzarem os braços”, mas sim de poder participar e acompanhar de perto as tomadas de decisões que os envolvem nos próximos anos.
O aniversário do CIR contou com os povos da Raposa, Surumú, Baixo Cotingo, das Serras, Amajari, Murupú, Tabaio, Wai Wai, Alto Cauamé, Serra da Lua e Yanomami. Além disso, parceiros do Conselho estiveram presentes durante a celebração.
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Conselho Indígena de Roraima celebra 50 anos exaltando resistência coletiva e Raposa Serra do Sol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU