“Apropriar-se do discurso sustentável na Amazônia é uma estratégia das empresas e dos governos. Isso não gera o compromisso de deixar de usar combustíveis fósseis e avançar para energias renováveis, respeitando os direitos humanos dos povos indígenas e dos povos tradicionais da Amazônia”, adverte advogado indígena
Muitas são as dificuldades que as comunidades indígenas enfrentam no país, apesar da retomada do diálogo com o Estado brasileiro. Uma delas é a presença de organizações criminosas em terras indígenas, "que usam o garimpo para lavar dinheiro, para fortalecer suas atividades de venda de drogas e armamentos, e montam suas bases onde o Estado não está presente, como nas fronteiras das terras yanomami", relata Ivo Aureliano Makuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima – CIR.
Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele explica que a manutenção do garimpo em terras indígenas tem gerado uma série de problemas sociais e comunitários. "A consumo de bebidas alcoólicas e a disseminação de bebidas alcoólicas entre indígenas têm aumentado. Tem um aumento no uso de armamentos, a cooptação de indígenas com armas, o uso de drogas, a prostituição. Tudo isso gera a desestruturação das comunidades indígenas porque aumenta a violência entre os próprios indígenas devido ao consumo de álcool e ao acesso a armas", informa.
Ivo Aureliano Makuxi também avalia os primeiros meses do governo Lula, o PAC 3, e a Cúpula da Amazônia, que reuniu chefes de Estados dos países amazônicos para discutir o desenvolvimento sustentável na região entre 08 e 09-08-2023, em Belém. Sobre o resultado, é categórico: "É um espaço muito restrito a governos e não leva em consideração a participação dos povos indígenas. Não receberam nem o nosso cacique Raoni [Metuktire], o nosso governante indígena, nosso presidente – podemos dizer assim – da Amazônia e dos povos indígenas do Brasil, que deveria estar lá, dando o recado sobre o que nós pensamos da Amazônia, sobre como nós pensamos e qual é a nossa visão de futuro e de mundo a partir da Amazônia, visão que os governos precisam respeitar. Mas isso não foi levado em consideração e nós ficamos decepcionados com isso".
Sobre as lutas indígenas em curso no país, adverte: "Temos que ter o cuidado de separar o que é governo, o que é o Estado, e o que é o movimento indígena porque não podemos colocar na mão do Estado todas as possibilidades de tomar decisões. Precisamos continuar lutando para a efetivação dos nossos direitos".
Ivo Aureliano Makuxi (Foto: Arquivo pessoal)
Ivo Aureliano Makuxi é graduado em Direito e especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, formado pelo Instituto Verbo Jurídico.
IHU – Quais foram os três avanços do novo governo na pauta indígena e quais foram os três pontos em que não se avançou ainda?
Ivo Aureliano Makuxi – Ainda tem muita coisa a fazer, mas conseguimos avançar na retomada da demarcação das terras indígenas. Esse é um avanço muito importante. Além disso, vimos, pela primeira vez na história do país, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e também a retomada do diálogo, que ainda que precise avançar mais, mas há uma abertura de diálogo com os povos indígenas. Então destacaria estes três pontos: a retomada da demarcação das terras, a criação do Ministério e a retomada do diálogo do Estado brasileiro com os indígenas.
É preciso avançar mais na proteção das terras indígenas homologadas e demarcadas, o que ainda não aconteceu. Não existe nenhum plano do governo neste sentido. Talvez ainda não se tenha uma ideia do que fazer, mas o movimento indígena precisa incidir na proteção das terras. A saúde indígena e a educação são outros dois pontos que ainda estão bem precários. Precisamos fortalecê-los. Dentro do Ministério dos Povos Indígenas ainda não há uma estrutura adequada para acolher as demandas e implementar as políticas voltadas aos povos indígenas, principalmente na escola indígena.
IHU – Em relação à saúde, lembramos do recente caso dos yanomami. Para além daquele caso, o que mais envolve a questão da saúde?
Ivo Aureliano Makuxi – Nas terras indígenas yanomami, em Roraima, avançou-se em relação à retirada dos invasores, mas ainda há uma deficiência de garantir a proteção. Na verdade, isso tem a ver com a proteção das terras e o fortalecimento das equipes de saúde dentro do território. Precisamos reestruturar os polos-bases de saúde indígena dentro do território. Não só na terra indígena yanomami, mas em outras também. É preciso garantir recursos para que as equipes médicas cheguem nos locais para atender e acompanhar. Hoje, isso não acontece de forma efetiva. No caso específico da terra indígena yanomami, crianças continuam morrendo; diminuiu o número de casos, mas ainda não cessou o índice de mortalidade de crianças.
IHU – Não basta uma grande operação, que foi importante naquele momento, mas é preciso uma política de longo prazo, estrutural e de pessoal?
Ivo Aureliano Makuxi – Sim, é uma questão estrutural: garantir recursos e pessoal para atender e fortalecer a saúde indígena, principalmente, neste caso, a yanomami. É necessário capacitar equipes para trabalhar com povos indígenas. Não vemos isso. Tem poucos profissionais que, de fato, entendem a realidade, as questões culturais e sabem trabalhar com as comunidades indígenas, principalmente no contexto da terra indígena yanomami, que é uma situação difícil.
IHU – Um ponto que você mencionou é a questão da educação indígena. Qual é o quadro hoje em relação à educação e o que precisa ser feito?
Ivo Aureliano Makuxi – Falamos muito sobre as questões voltadas ao território e a educação fica em segundo plano. Mas é necessário garantir avanços na discussão sobre a implementação da escola indígena, uma educação diferenciada e construída junto com os povos indígenas, no meio de espaços de diálogo. Por exemplo, em nível nacional ainda não temos a implementação de uma política educacional indígena. Está tudo parado, sucateado e uma política não tem sido retomada com força dentro da própria estrutura do Ministério da Educação. É preciso reestruturar o Ministério, criando uma coordenação ou um departamento, com uma equipe própria que vai trabalhar o tema da educação escolar indígena. Não há um olhar e uma atenção do governo para isso dentro do próprio Ministério. É preciso garantir uma estrutura para entender as comunidades indígenas e garantir a implementação dos planos de educação que estão sendo elaborados pelos próprios indígenas, além de fazer as alterações necessárias dentro da legislação para poder fortalecer a educação escolar destes povos.
IHU – Como avalia a questão das cotas para indígenas nas universidades ou a propostas como a da criação de uma universidade indígena, para formar profissionais a trabalharem com seus povos?
Ivo Aureliano Makuxi – Tem se discutido muito as bolsas [de estudo] para a permanência de indígenas na escola e na universidade porque o índice de evasão entre alunos indígenas é grande. Eles não conseguem permanecer no ensino universitário por falta de apoio. Precisamos fortalecer as políticas públicas para atender a essa demanda específica e garantir a formação superior e fortalecer as cotas. Elas são importantes para garantir a inserção dos alunos indígenas nos espaços universitários. Investir na formação dos profissionais também é importante, garantindo a criação de profissionais indígenas para trabalharem com seus povos nas aldeias porque são eles que conhecem a realidade local e conseguem fazer o melhor atendimento dentro dos territórios indígenas.
IHU – Que análise faz da Cúpula da Amazônia, que ocorreu recentemente, e qual a importância dessa iniciativa para levantar uma discussão internacional, tendo como centro a Amazônia?
Ivo Aureliano Makuxi – Analisamos como positivo, pelo menos, a iniciativa do governo federal de trazer para o debate a questão da Amazônia e sua proteção. Mas ficamos decepcionados com os termos que foram empregados nos documentos, os quais deixaram, mais uma vez, de fora a contribuição dos povos indígenas para manter a floresta de pé. Não se falou muito da importância da demarcação das terras indígenas como escudos contra o aumento do desmatamento na região amazônica. Não se falou do trabalho de proteção que fazem os povos indígenas ao manterem a floresta de pé. Mas se olhou muito para a questão das empresas, dos bancos, dos governos, para atender ao mercado, esquecendo que há pessoas que lutam há muitos anos para garantir a floresta de pé e precisam participar ativamente das discussões sobre o rumo para a floresta amazônica. Os povos indígenas sempre foram deixados para trás, em segundo plano. Por isso, nós realizamos um evento que contou com a presença de mais de 600 lideranças indígenas em Belém. Eu participei e, após o evento, vi a repercussão.
[A Cúpula da Amazônia] é um espaço muito restrito a governos e não leva em consideração a participação dos povos indígenas. Não receberam nem o nosso cacique Raoni [Metuktire], o nosso governante indígena, nosso presidente – podemos dizer assim – da Amazônia e dos povos indígenas do Brasil, que deveria estar lá, dando o recado sobre o que nós pensamos da Amazônia, sobre como nós pensamos e qual é a nossa visão de futuro e de mundo a partir da Amazônia, visão que os governos precisam respeitar. Mas isso não foi levado em consideração e nós ficamos decepcionados com isso.
IHU – Ocorreram a cúpula e o evento indígena em paralelo, separando mundos, como vocês dizem.
Ivo Aureliano Makuxi – Exatamente. Nós gostaríamos de estar no espaço, ao menos ouvindo, acompanhando nossa liderança que foi fazer a leitura da carta entregue ao presidente Lula e aos governos, mas aquele era um espaço restrito. Vimos que era mais uma performance política do Estado brasileiro, enquanto nós fomos deixados de lado.
IHU – As empresas de energia não deixam de produzir combustíveis fósseis e passam a investir em energias renováveis. Como você analisa esse processo a partir da cosmovisão indígena? Como vê essa situação em que parece que os indígenas estão sendo ouvidos, mas, mais uma vez, não estão?
Ivo Aureliano Makuxi – Apropriar-se do discurso sustentável na Amazônia é uma estratégia das empresas e dos governos. Isso não gera o compromisso de deixar de usar combustíveis fósseis e avançar para energias renováveis, respeitando os direitos humanos dos povos indígenas e dos povos tradicionais da Amazônia. Não vimos nenhum compromisso assumido neste sentido. Muito pelo contrário. Acreditamos que as empresas estão mais interessadas em explorar os recursos naturais na Amazônia, inclusive o petróleo. Somente a Colômbia apresentou um compromisso, mas ninguém levou isso em consideração. Estamos preocupados com esse modelo de desenvolvimento econômico que se discute para a Amazônia e podemos até mesmo presenciar, mais uma vez, o aumento de conflitos e violação dos povos indígenas da Amazônia. Por isso, não assumiram nenhum compromisso de combater a exploração e o aumento de pesquisas de combustíveis fósseis na Amazônia. Isso não foi levado em consideração e não teve nenhum debate sobre a sua importância.
IHU – Na Cúpula da Amazônia, o presidente Lula, respondendo ao presidente da Colômbia, disse que não se deve pensar em “ou”, mas, em “e”. Ou seja, é possível pensar em desenvolvimento e em preservação. Ele disse isso depois de um contexto polêmico acerca da exploração de petróleo na Foz do Amazonas. O que esses discursos e a defesa da exploração na Foz do Amazonas sinalizam e o que você sente quando escuta isso?
Ivo Aureliano Makuxi – É muito bonito falar que a Amazônia é um lugar preservado, tem natureza, água, floresta, mas não se fala dos povos indígenas que protegem a floresta. Os políticos, a presidência, o atual governo, se apropriaram do discurso para barganhar recursos de países ricos e para implementar sua agenda, que não está de acordo com o que nós pensamos para a Amazônia. Isso nos preocupa muito. Ouvimos um discurso bonito, mas na prática é outra coisa. Inclusive, agora se discute a utilização do Fundo Amazônia para a infraestrutura da BR-319 na Amazônia. Isso pode alavancar a exploração e o processo de desmatamento na região. Estamos preocupados, e por isso queremos participar dos debates e levar a nossa opinião sobre essa questão. Vemos que não estamos sendo ouvidos, enquanto há uma agenda de pessoas e grupos econômicos que estão se apropriando do discurso da sustentabilidade para levar uma agenda de desenvolvimento para a Amazônia sem ouvir os que são da Amazônia de fato.
Recentemente, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas – ONU disse que o mundo está em ebulição. Mas nós falamos que o mundo está queimando; estamos destruindo o mundo. Na verdade, o mundo está aí há milhares de anos e nossa visão é que fazemos parte disso. Se destruirmos o nosso ambiente, a natureza vai se regenerar, mas nós, humanos, não temos essa capacidade. Falamos que a floresta está sendo devastada, mas ela voltará de alguma forma. Mas nós, povos indígenas, seres humanos, não vamos ter essa capacidade porque não somos sementes que vamos morrer e vamos renascer. Temos a cosmovisão de que todos nós estamos conectados com a natureza, fazemos parte da natureza e não precisamos destruí-la para sobreviver. Nós é que precisamos do ambiente para sobreviver. Nesse sentido, a sabedoria indígena precisa ser levada em consideração. Em nível global, isso já é reconhecido, mas, em nível local, internamente nos países, especialmente no Brasil, há uma dificuldade de reconhecer a contribuição dos povos indígenas e a cosmovisão de preservar, de viver em harmonia. Não temos tempo de criar agendas para 2030, 2040. Não; é para agora. O mundo está queimando. Não temos como fazer planos para uma década, 20 anos. Se não refletirmos sobre a preservação do planeta, veremos o processo se acelerando no ano que vem e no seguinte, e vamos todos sofrer as consequências, como já estamos sentindo.
IHU – O Brasil viveu uma trajetória de desenvolvimentismo no passado e hoje se fala em um novo desenvolvimentismo novamente, o qual inclui Belo Monte, a exploração na Foz do Amazonas, a construção de novas estradas. Para você, o que seria um modelo de desenvolvimento econômico e social para a Amazônia?
Ivo Aureliano Makuxi – É preciso discutir o desenvolvimento a partir das pessoas e não das corporações. Precisamos olhar e cuidar das pessoas. Estamos monitorando as políticas públicas e o PAC 3. Foi anunciado mais de um trilhão de reais. Quanto desse dinheiro vai ser usado, de fato, para garantir a proteção das florestas? Quais são os projetos para gerar energia renovável dentro dos territórios indígenas, os quais vão gerar ainda mais impactos? Vão criar uma hidrelétrica Belo Monte. Por exemplo, em Roraima, pretende-se construir uma grande hidrelétrica na Cachoeira do Bem-Querer [Rio Branco]. Esta construção pode impactar nove terras indígenas, segundo estudos preliminares mostram. Precisamos entender que não adianta ter uma agenda ambiental e, por outro lado, estar implementando projetos e planos que estão trazendo impactos graves ao meio ambiente, que podem aumentar o desmatamento, acelerar os conflitos com comunidades tradicionais e locais. É preciso olhar para as pessoas. Precisamos mitigar os impactos e maximizar os benefícios para as pessoas que vivem na Amazônia. Isso é importante levar em consideração.
IHU – Como avalia as propostas de crédito de carbono?
Ivo Aureliano Makuxi – Analisamos essa questão como uma estratégia do mercado que, como não consegue tratar as terras como commodities na Bolsa de Valores, de alguma forma pensa estratégias como o mercado de carbono. Ou seja, pensam-se a floresta e a Amazônia como um estoque de carbono, como um grande lugar onde se estoca carbono, mas não se fala do trabalho e das vidas que foram perdidas para manter isso tudo. Argumenta-se que se trata de uma iniciativa de carbono zero. É um argumento bonito, mas não se fala dos povos indígenas. É uma pequena parte [de pessoas] que pensa em usar recursos para restringir o usufruto do território indígena por indígenas. Há várias denúncias de assédios e contratos de carbono ilegal, que não têm regulamentação. As empresas estão correndo atrás dessa proposta, querendo fazer contrato com povos indígenas, mas isso pode acirrar mais ainda o conflito. Ainda não existe um entendimento de como isto poderia ser feito. O governo federal corre contra o tempo para tentar regulamentar o setor, sem a participação dos povos indígenas. Este é mais um tema que está posto e que pode impactar os povos indígenas.
IHU – A situação do garimpo nas terras yanomami ainda não foi resolvida. O garimpo continua sendo uma frente de ataque aos povos indígenas?
Ivo Aureliano Makuxi – O garimpo é um grande mal. O governo federal começou uma grande operação de extrusão dos garimpeiros das terras yanomami, mas, como falei, o governo federal ainda não apresentou um plano de proteção às terras indígenas. Não existe um plano de proteção nem recursos para isso. Vemos que é um jogo de gato e rato. A Polícia Federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA retiram o garimpeiro da terra e, na semana seguinte, ele está de volta. É um ciclo. Por isso estamos insistindo na importância de ouvir os povos indígenas que querem contribuir no combate a essa criminalidade. Essa operação não vai acabar com o garimpo. É preciso haver políticas públicas, planos de combate, mudar a legislação, aumentando penas para quem garimpa e invade terras indígenas.
Se o governo quiser combater o garimpo, mude a legislação e puna quem está invadindo as terras indígenas. Os rios das terras indígenas estão contaminados por mercúrio. Quem vai pagar por isso? Essa não é a primeira invasão que está acontecendo e se não tiver planos de combate, nos próximos anos, vamos ver o aumento dos garimpeiros de forma mais acentuada. Os garimpeiros que saem das terras yanomami estão migrando para outras terras indígenas, como em Raposa Serra do Sol, onde houve aumento de conflitos ou na terra indígena São Marcos.
Ou seja, existe o combate aos garimpeiros das terras indígenas, mas não existe um plano de proteção das terras indígenas e isso acaba fragilizando ainda mais a situação dos povos dentro dos territórios.
IHU – Como o garimpo tem favorecido a violência na região? Qual é a situação em relação à violência?
Ivo Aureliano Makuxi – O garimpo precisa se manter dentro da terra indígena. Para isso, é necessário ter mantimentos e toda uma infraestrutura. O consumo de bebidas alcoólicas e a disseminação de bebidas alcoólicas entre indígenas têm aumentado. Tem um aumento no uso de armamentos, a cooptação de indígenas com armas, o uso de drogas, a prostituição. Tudo isso gera a desestruturação das comunidades indígenas porque aumenta a violência entre os próprios indígenas devido ao consumo de álcool e ao acesso a armas. Vemos morte de mulheres, prostituição, estupro, assassinatos. Isso tudo foi e está sendo registrado na terra indígena yanomami.
Mais graves ainda são as organizações criminosas que usam o garimpo para lavar dinheiro, para fortalecer suas atividades de venda de drogas e armamentos, e montam suas bases onde o Estado não está presente, como nas fronteiras das terras yanomami. A presença das organizações criminosas nas terras indígenas é uma das maiores preocupações porque elas são transnacionais e o Estado não está preparado para isso. Os garimpeiros sabem disso. As organizações criminosas estão presentes no garimpo e estão cooptando indígenas para serem parte das facções criminosas que colocam em risco as comunidades que estão nos territórios. Se o Estado não protege as terras indígenas, as facções estão lá para controlarem o território como se fossem um órgão de segurança pública do Estado.
Observamos a diminuição de denúncias nas comunidades em que há forte presença de facções criminosas porque ninguém quer denunciar o garimpo onde tem facção criminosa, pois se as facções descobrem, no dia seguinte a pessoa morre. É uma situação gravíssima a que está acontecendo nas terras yanomami. As facções estão usando o garimpo para lavar dinheiro e para fortalecer suas estruturas, controlando parte das terras indígenas, devido à ausência e omissão do Estado brasileiro.
IHU – Quando começaram a perceber essa relação entre o narcotráfico e o garimpo?
Ivo Aureliano Makuxi – É difícil dizer, mas começamos a perceber essas estruturas a partir dos relatos dos indígenas, que comentavam sobre a presença de pessoas fortemente armadas dentro das terras yanomami, com megaestruturas, inclusive helicópteros e armamento pesado. Começamos a receber fotos dessas pessoas circulando dentro das terras indígenas, principalmente nas terras yanomami.
Também observamos o processo de cooptação de indígenas, com maior presença deles em Boa Vista, com comportamentos estranhos, com outras pessoas os acompanhando. Sabemos como é a realidade do povo yanomami. Nem todos falam português, mas há uma aproximação das facções com algumas pessoas. A facção garante uma estrutura de atendimento para essas pessoas, trazem-nas para Boa Vista, dão um veículo, levam para outros lugares. Começamos a ver também que alguns indígenas, principalmente jovens, começaram a vir com mais frequência para a cidade, tendo muito contato com algumas pessoas da cidade, além de recebermos relatos de indígenas dizendo que alguns estão trabalhando para o garimpo, fazem a vigia, usam armas e ficam de plantão. As organizações criminosas aprenderam a cooptar os indígenas não usando o modelo tradicional de batizar, de fazer cumprir uma missão, mas de forma sutil, dando armas e um trabalho para fortalecer a presença da facção dentro das terras indígenas. Muitos que foram cooptados trabalham, por exemplo, como barqueiro, vigia, informantes.
Pela ausência do Estado, o tráfico remove indígenas de helicópteros e os traz até Boa Vista. Por isso também o garimpo avançou muito, porque a única esperança que muitos indígenas têm é o garimpo e as organizações criminosas que dão algum suporte. Mas eles dão suporte porque o Estado está ausente e não está cumprindo seu papel. Isso deixou uma lacuna grande para o avanço do garimpo e das organizações criminosas dentro das terras indígenas e eles dominaram as comunidades. Muitas comunidades hoje não têm mais estrutura para ser comunidade por causa da morte de suas lideranças, que eram pessoas que tinham garantido a tradição de manter a comunidade no local, com suas práticas culturais. É preciso também repensar isso.
IHU – Você, como indígena, tem esperança? Como mantém esperança em relação à luta indígena?
Ivo Aureliano Makuxi – A luta dos povos indígenas, que não é de hoje, vai continuar. Temos que ter o cuidado de separar o que é governo (mesmo que tenhamos avançado na ocupação desses espaços estratégicos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI, na Secretaria de Saúde Indígena – SESAI, no Ministério), o que é o Estado, e o que é o movimento indígena porque não podemos colocar na mão do Estado todas as possibilidades de tomar decisões. Precisamos continuar lutando para a efetivação dos nossos direitos.
Sonhamos que o governo conclua a demarcação de todas as terras indígenas, que é primordial para avançar na conquista dos demais direitos, mas queremos participar do processo de diálogo de construção de políticas públicas voltadas para povos indígenas. Queremos que nossos direitos sejam respeitados. Queremos participar das consultas, das tomadas de decisões, mas a luta é constante e permanente. Vamos continuar vigilantes diante de qualquer ataque e tentativa de retroceder nossos direitos como a questão do Marco Temporal. O governo diz que é contra, mas, na prática, faz outras coisas. Vamos elaborar nossos planos de vida para cobrar, através de documentos formais, a atuação e políticas públicas do governo, garantindo recursos para a implementação desses projetos de vida que temos hoje nos territórios indígenas.
IHU – Como está a luta em relação ao Marco Temporal?
Ivo Aureliano Makuxi – O Marco Temporal está em discussão no Senado, inclusive vamos a Brasília para articular que o Supremo Tribunal Federal – STF paute o mais rápido possível o julgamento dessa questão, uma vez que o Senado já está discutindo a aprovação do PL 2903, que trata do Marco Temporal e outras coisas, dentro das comissões. Chamamos esse PL de pacote de maldades porque ele propõe também a relativização do usufruto exclusivo das terras indígenas, abre as terras indígenas para a possibilidade de fazer arrendamentos, para que terceiros possam fazer o que bem entenderem em terras indígenas. Esse PL também trata da não consulta aos povos indígenas diante de qualquer empreendimento que o governo acha que deve ser feito na terra indígena, inclusive plantio de transgênicos e uso de agrotóxicos, sem consultar os povos. Tudo isso está dentro desse projeto de lei e precisamos combatê-lo. Estamos preocupados, mas também temos esperança de que o STF, em setembro ou outubro, paute esse julgamento e enterre de vez a tese racista do Marco Temporal, que é mais uma ideia colonial de tentar nos exterminar dentro da lei. Acreditamos que o STF não aprovará o Marco Temporal. Essa é a nossa esperança. Mas também esperamos que o Supremo aplique o texto constitucional, aplique os artigos 231 e 232 na íntegra, conforme rege a nossa Carta Magna.