As línguas Yanomami em presente distópico

Em Yanomami, a palavra para "helicóptero" é "tixo", que significa "beija-flor". | Ilustração: Mavi Morais/ISA

06 Agosto 2020

Fruto de pesquisa protagonizada por pesquisadores indígenas, o livro “Línguas Yanomami no Brasil: diversidade e vitalidade” aponta caminhos para a preservação da riqueza linguística e cultural desse povo, ameaçado pela epidemia de Covid-19.

 

A reportagem é de Marina Terra, publicada no Medium do Instituto Socioambiental – ISA, 06-08-2020.

 

“Acada língua que se vai, a humanidade perde uma maneira de perceber o mundo e um modo de falar sobre ele. A extinção de uma língua é também a extinção de toda uma gama de conhecimentos culturais, ecológicos, artísticos e históricos, muitas vezes codificados unicamente por aquela linguagem. Quando morre uma língua, morre também uma maneira de ser humano”. O livro "Línguas Yanomami no Brasil: diversidade e vitalidade", publicação nascida do projeto “Diversidade linguística Yanomami: uma perspectiva intercultural” e com lançamento virtual nesta quinta-feira 9 de agosto, traz a potência e a riqueza da diversidade linguística desse povo e, neste momento da história, contribui para reforçar a importância de sua proteção.

 

Baixe aqui o PDF da publicação.

 

Assediados pelo garimpo, pelo desmatamento e agora pela Covid-19, os Yanomami dão o nome de xawara às epidemias. As doenças, na visão dos indígenas, escapam do fundo da terra pelos homens brancos que destroem a floresta para extrair minérios. Em junho, o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana lançou a campanha “Fora Garimpo, Fora Covid”, que pede a desintrusão da Terra Indígena Yanomami e que já recebeu mais de 350 mil assinaturas em todo o mundo.

 

Clique e escute Otimisoma Sanöma, da aldeia Kolulu, falando uma das línguas Yanomami, o Sanöma.

 

(Ilustração: Mavi Morais/ISA)

 

Organizada pelos pesquisadores Helder Perri, Ana Maria Machado e Estevão Benfica Senra e publicada pelo Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a obra de 216 páginas e composta por mapas, fotos e textos, traça um perfil de cada língua da família Yanomami, trazendo um panorama histórico e sociolinguístico dos grupos populacionais que as falam e apontando as semelhanças e diferenças gramaticais que as caracterizam. A análise ainda avaliou a "saúde" das línguas Yanomami, identificando suas principais ameaças e fortalezas. O esforço rendeu também a identificação de uma sexta língua da família Yanomami, o Yãnoma (leia mais abaixo).

 

“Piloto de avião” é traduzido pelos Yanomami como "apiama xẽe e" ou, literalmente, “sogro do avião”. (Ilustração: Mavi Morais/ISA)

 

Pesquisadores indígenas

 

Conforme explica o linguista Helder Perri, foi fundamental para a elaboração desse amplo diagnóstico a parceria com as cinco associações Yanomami — Hutukara, AYRCA, Kurikama, Texoli e Hwenama — , que indicaram pesquisadores indígenas, todos professores ou ex-professores de suas comunidades, letrados em suas línguas maternas, para formar a equipe do projeto. “Identificamos 16 grandes falares Yanomami no território brasileiro. Procuramos manter a inteligibilidade mútua como elemento central e definidor das fronteiras linguísticas da família. [Quando] se entendem, é a mesma língua; se não se entendem, são línguas diferentes. Seguindo o critério do entendimento mútuo, esses 16 dialetos foram agrupados em seis línguas”, detalha Perri.

 

No entanto, toda essa variedade corre risco, alerta o pesquisador. Levando em conta as mais de sete mil línguas catalogadas hoje no mundo, há desde estudiosos que predizem que 50% delas serão substituídas por línguas dominantes em 100 anos, até os mais catastróficos, que elevam esse número para 90% de mortalidade linguística até o final do século XXI. Nenhum dos dois cenários pode ser descrito como “otimista”, pontua Perri.

 

É com esta perspectiva um tanto distópica, porém realista, sobre o futuro das línguas no mundo que o grupo se dedicou ao estudo: um testemunho do vigor e da complexidade linguística Yanomami em tempos de extrema ameaça à sobrevivência das comunidades indígenas e seus modos de vida. E, conforme o contato com a sociedade nacional cresce, aumenta também a preocupação com a preservação. “O crescente contato dos Yanomami com a língua portuguesa e a intensificação de suas relações com os napëpë, os “brancos”, nos permitem fazer a pergunta: Será que as línguas Yanomami sobreviverão com plena força por mais 50 ou 100 anos? É com a língua, afinal, que codificamos nossos pensamentos, construímos nossa identidade e desfrutamos da vida em sociedade, nos mais variados níveis”, escrevem os autores.

 

Apesar de as seis línguas Yanomami serem faladas no Brasil por praticamente todos os 25.800 Yanomami e existir uma transmissão intergeracional relativamente satisfatória em algumas delas, a avaliação é a de que as novas gerações não estão “totalmente preparadas para lidar com os vetores de pressão que se apresentam para as próximas décadas”. O primeiro deles, que atinge diretamente a diversidade, é a demografia: somente 180 pessoas falam a vertente Yãnoma e 400, a Ỹaroamë. Em comparação, o Yanomam é a língua mais popular, com 11.900 falantes.

 

Em Ỹaroamë, avião vira “apião”. Escute essas e outras palavras.

 

Para a palavra "hospital", os Yanomami usam "hanɨpratima yano", que significa "casa onde (as pessoas) são cortadas".
(Ilustração: Mavi Morais/ISA)

 

Outro desafio decorre das pressões pelo contato com a sociedade envolvente, mais próxima das aldeias e pouco ou nada abertas ao bilinguismo. Nas instituições públicas existentes na Terra Indígena Yanomami, como postos de saúde, sublinha a publicação, “quase não existe incentivo formal ou informal à comunicação nas línguas Yanomami”. Outro elemento prejudicial às línguas é a perda gradual de formas de expressão artísticas e mais complexas da língua, incluindo a narração de mitos e os chamados "diálogos cerimoniais". “Nas aldeias, atualmente, estas formas de expressão da língua disputam espaço com vídeos e músicas estrangeiras, sobretudo durante à noite, período no qual os mais velhos costumam contar histórias e discursar na casa coletiva”, relata o livro.

 

O contato entre a língua dos napëpë e as dos Yanomami inevitavelmente se reflete na fala dos indígenas, com o uso de neologismos ou a “yanomização” das palavras. Essa criatividade, também expressada por meio de metáforas — estilo linguístico muito familiar aos Yanomami — surge com a chegada de novos elementos que passam a fazer parte da vida das comunidades. Em Yanomama, televisão é utupë taamotima thë (mostrador de imagens), garfo, pore nahasi (unha de fantasma) e hospital, hanɨpratima yano (casa onde [as pessoas] são cortadas). Para “piloto de avião”: apiama xẽe e, ou literalmente “sogro do avião”. No caso, o avião estaria trabalhando a serviço de quem o pilota. Na cultura Yanomami, os genros devem trabalhar para seus sogros.

 

A “yanomização” de palavras em português foi o ponto de partida para o convite do ISA à artista visual Mavi Morais produzir as imagens que ilustram este artigo.

 

Em Yanomama, "televisão" é "utupë taamotima thë", ou "mostrador de imagens". (Ilustração: Mavi Morais/ISA)

 

Mulheres Yanomami à frente

 

Para frear os retrocessos, o livro aponta um caminho de construção de estratégias de valorização da riqueza linguística em união com os Yanomami, fomentando a discussão dos elementos e condições que permitam que as línguas sejam preservadas. Esse conjunto de fatores tem como destaque a importância das mulheres nessa empreitada.

 

“Elas, como mães e principais responsáveis pela socialização das crianças, têm papel fundamental na transmissão das línguas indígenas. Além disso, na maioria das regiões da Terra Indígena Yanomami, são elas as que têm menor acesso aos contextos de difusão do português, já que frequentam menos as cidades e têm menor acesso a mídias digitais”, contam os pesquisadores. “Deve assim ser estratégica a inclusão das mulheres nas discussões de elaboração de qualquer plano de proteção e fortalecimento das línguas Yanomami, bem como a inclusão de ações voltadas para elas”.

 

É responsabilidade do Estado brasileiro proteger a Terra Yanomami de invasões, que aumentam a vulnerabilidade das comunidades e, consequentemente, das línguas Yanomami. Atualmente, mais de 20 mil garimpeiros operam ilegalmente na TIY, levando a Covid-19 e outras doenças, ameaçando as comunidades e contaminando os rios e os peixes com mercúrio. “Mais uma vez, caberá aos Yanomami manter em movimento a força, a riqueza e a criatividade de suas línguas e continuar lutando por seus direitos nesse cenário que parece cada vez mais indiferente e resistente à diversidade”, concluem os autores.

 

Yãnoma, nova língua identificada

 

Atualmente não há nenhuma informação detalhada sobre a língua Yãnoma, cuja identificação foi uma conquista da pesquisa consolidada no livro. Segundo Helder Perri, esse “status de língua” é baseado apenas em relatos de inteligibilidade mútua de falantes de Yãnoma, Ỹaroamë e Yanomae, corroborados pela história oral que identifica os grupos falantes dessas línguas como historicamente não relacionados.

 

“Não descobrimos falantes novos. O que aconteceu foi que atualizamos o conhecimento científico com base no saber e na experiência dos próprios falantes Yanomami”, relata o linguista. Segundo ele, o Yãnoma era antes considerado como um dialeto do Ỹaroamë, porém, após as equipes visitarem uma região em que se fala Ỹaroamë e Yãnoma, houve relatos de indígenas que se casaram com quem falava a outra língua e tiveram dificuldades nos primeiros anos para entender tudo o que diziam. Outro elemento que sustenta o Yãnoma ser considerado uma língua são os relatos desse grupo e dos Ỹaromë sobre percursos migratórios diferentes entre ancestrais, indicando que vieram de rotas distintas.

 

Apesar das comprovações até o momento, o Yãnoma não está ainda cadastrado nos principais catálogos internacionais das línguas do mundo: Glottolog e Ehnologue. Ainda faltam estudos específicos para efetivamente catalogar o Yãnoma e, assim, gerar consenso entre a comunidade científica.

 

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