02 Agosto 2019
Lideranças viajaram até Brasília e levaram Plano de Gestão Territorial e Ambiental e Protocolo de Consulta em 13 órgãos do governo federal.
A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 31-07-2019.
Davi Kopenawa lê o PGTA Yanomami – Yek’wana. (Foto: Marcelo Coutinho – ISA)
Davi Kopenawa, principal porta voz do povo Yanomami, e outros sete diretores das principais associações da Terra Indígena Yanomami (RR e AM) percorreram 13 órgãos federais em Brasília e Manaus para dizer em cada gabinete que estão prontos para qualquer conversa que diga respeito à maior Terra Indígena do Brasil.
As lideranças Yanomami e Ye'kwana levaram, em mãos, o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), documento construído com a participação de pelo menos 100 indígenas e considerado por eles o acordo coletivo mais importante para o futuro das 26 mil pessoas que vivem na Terra Indígena. Veja aqui, aqui e aqui.
Junto ao PGTA, eles entregaram o Protocolo de Consulta Yanomami, que detalha a organização social e a representação política de cada povo e define a forma como os Yanomami e Ye’kwana devem ser consultados antes que seja tomada qualquer decisão que possa impactar seus direitos. Construção de obras, novas leis, formulação de políticas públicas, por exemplo, devem passar por um processo de consulta. Já existem 11 protocolos feitos por povos indígenas no Brasil.
Em Brasília, o PGTA e o protocolo de consulta foram entregues em mãos a deputados no Congresso Nacional, Ministério da Saúde, Ministério do Meio Ambiente, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Ministério da Educação, Ministério da Defesa, Funai, Ministério Público Federal, Secretaria de Governo e Embaixada da Noruega.
Em Manaus, as lideranças Yanomami entregaram os documentos ao Comando Militar da Amazônia, ao ICMBio regional e ao Ministério Público do Amazonas. Todos estes órgãos estão diretamente relacionados aos planos de vida que os Yanomami e Ye'kwana têm para a Terra Indígena e foram pautados de acordo com suas responsabilidades específicas.
Assista ao vídeo:
“Esse plano nós elaboramos para o branco ver. Branco gosta de ler no papel e está tudo escrito aqui. O povo da cidade não sabe falar a nossa língua yanomami, mas sabe falar, sabe destruir, sabe pilotar, sabe desmatar, sabe poluir rio, sabe estragar nossa terra mãe, mas proteger eles não sabem. Nós sabemos”, conta Davi Kopenawa, presidente da Hutukara Associação Yanomami.
Toda a peregrinação foi registrada na página do Facebook da associação do povo Yanomami por Dario Vitório Kopenawa Yanomami, filho de Davi e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami.
Associações como a Hutukara, criada em 2004 e presidida por Davi Kopenawa, são a representação jurídica de um povo, direito adquirido desde que os indígenas conquistaram um capítulo próprio na Constituição. É por meio das associações que eles demandam e dialogam com as políticas públicas. Junto com a Hutukara, outras seis associações fortalecem a luta pelo respeito aos direitos dos Yanomami e Ye’kwana. São elas: Ayrca, Kurikama, Kumirãyõma, Texoli, Hwenama e Wanasseduume.
No capítulo de abertura do PGTA, os Yanomami explicam que as tomadas de decisão que envolvem cada maloca são feitas de forma coletiva pelo conjunto dos homens mais velhos da comunidade em reuniões abertas a todos. Eles chamam este momento de Hereamu. Kopenawa, por exemplo, vive em uma maloca circular e compartilhada com 147 pessoas.
Para tomar decisões que envolvem toda a Terra Indígena, os Yanomami e Ye'kwana criaram um modelo de governança chamado Fórum de Lideranças. Os líderes se encontram uma vez ao ano ou em caso de emergência. Todos juntos discutem até chegar a decisões por consenso. As decisões são informadas à Hutukara, que faz a mediação com os não-indígenas em diferentes esferas políticas.
Presidentes de três associações yanomami apresentam o pgta em sessão especial no plenário Chico Mendes da Câmara dos Deputados. (Foto: Marcelo Coutinho – ISA)
Pouco mais de 25 anos da homologação da TI, o jeito Yanomami de cuidar da Terra garantiu a preservação das áreas mais importantes de floresta contínua no Brasil, com pouquíssimas áreas desmatadas ou degradadas. Ao mesmo tempo, eles enfrentam a maior invasão garimpeira em sua terra desde a homologação. O combate ao garimpo é a principal demanda das lideranças ao governo.
No documento, eles pedem a destruição da infraestrutura do garimpo na Terra Indígena, bases de proteção territorial em locais estratégicos, investigação e punição para quem financia o garimpo. Também não querem projetos de abertura de estradas sem que haja consenso no Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana.
Nos quatro anos em que estavam reunidos para escrever o plano, os indígenas calculam que ao menos 10 mil garimpeiros ilegais invadiram a terra Yanomami. Em maio, Davi Kopenawa e uma delegação de Yanomami e Ye’kwana protocolaram uma denúncia ao Ministério da Defesa, Ministério da Justiça, Ministério Público Federal, Ibama e Funai pedindo providências a autoridades do governo Bolsonaro.
Em 2014, as associações Hutukara e Wanasseduume, que representa comunidades Ye'kwana, fizeram uma pesquisa em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o ISA. O resultado revelou que 92% das pessoas examinadas em uma comunidade na beira do rio Uraricoera estão altamente contaminados pelo mercúrio do garimpo.
Doenças trazidas pelos garimpeiros foram responsáveis pela morte de 20% da população Yanomami na década de 1980. Em meados da década de 1990, as invasões diminuíram por causa da pressão internacional e de várias ações de fiscalização feitas pelos órgãos do governo e pelo Exército, acompanhadas pela Funai. Mas no final dos anos 2000, o preço do ouro aumentou, o investimento em fiscalização diminuiu muito e as Bases de Proteção da Funai na Terra Indígena Yanomami foram desativadas, o que trouxe o garimpo de volta.
Os povos Yanomami e Ye'kwana estão espalhados em 330 comunidades em oito municípios entre Roraima e Amazonas, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Em 164 páginas, eles descrevem linha a linha como tomam decisões no território. Para Davi Kopenawa, o PGTA é um documento de identidade da Terra-Floresta.
Há um capítulo inteiro sobre como lidar com o dinheiro e os planos de geração de renda para a Terra Indígena Yanomami. Nele estão descritos projetos de iniciativa das próprias comunidades, como a produção de cacau, também chamado de fruto do ouro, por ser visto como antídoto contra a invasão de garimpeiros ilegais.
Davi Kopenawa apresenta o PGTA em audiência para diferentes coordenadorias na Funai. (Foto: Marcelo Coutinho – ISA)
As mulheres têm produzido e comercializado redes e cestarias. Na região de Awaris, noroeste da Terra Indígena, a comercialização de cogumelos nativos bateu a marca de oito toneladas em três anos. O Cogumelo Yanomami faz parte da iniciativa Origens Brasil, que promove relações comerciais éticas e transparentes entre quem produz e quem compra, e conquistou chefs do Brasil e do exterior. É vendido em mercados e empórios espalhados pelo país, nos Estados Unidos e na França.
Na região de Maturacá (AM), os Yanomami estão promovendo o turismo ao Pico da Neblina como uma nova forma de gerar renda oferecer uma alternativa a participação dos jovens yanomami no garimpo ilegal. Eles chamam o projeto de Yaripo, que é como os Yanomami chamam o ponto mais alto do Brasil.
Em todos esses projetos, o dinheiro é gerido pelas associações e entregue diretamente aos produtores: são recursos que atingem muitas famílias e possibilitam que as comunidades acessem os bens que elas querem ou precisam.
“Escrevemos neste Plano de Gestão tudo o que é importante para nossas vidas. Fizemos este documento para orientar as novas gerações e mediar a nossa relação com os não indígenas. Queremos que os nossos jovens leiam essas palavras e continuem nossas lutas com determinação.
Em cada um destes temas há uma Planilha de Propostas que diz o que é de nossa responsabilidade e o que é dever do governo.
Além do PGTA, acompanha essa publicação o nosso Protocolo de Consulta que diz para o governo como queremos ser perguntados quando um projeto que pode afetar a nossa vida está sendo planejado. No Protocolo estão as regras para que o processo de consulta seja feito respeitando nossas formas de tomar decisões”.
As crianças ou jovens são 75% da população atual e apenas 3% tem mais de 50 anos. Este dado é colocado no PGTA como um grande desafio do povo na reprodução da cultura tradicional.
São esses velhos, 3% da população, os responsáveis por ensinar para os jovens sobre a cultura. É com as anciãs que as meninas aprendem sobre as plantas medicinais. E é com os homens que os meninos aprendem a caçar indo com seus pais para a floresta.
O número reduzidos de anciões despertou nos Yanomami a ânsia de registrar seus conhecimentos. Nos últimos sete anos os Yanomami publicaram 13 livros. O mais recente foi publicado pela Associação de Mulheres Yanomami Kumirãyõma.
A publicação Përɨsɨ – o fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria detalha o conhecimento das mulheres sobre o uso do përɨsɨ, uma espécie de fungo até então desconhecida pela ciência (Marasmius yanomami sp. nov.) e usada pelas Yanomami para decorar seus cestos trançados com cipó.
“A escola indígena não pode ser uma cópia da escola do não-indígena: nós, Yanomami e Ye’kwana, temos uma forma de ensinar diferente, nossos conhecimentos são diferentes e também os momentos em que ensinamos e aprendemos”, diz um trecho do PGTA.
Os Yanomami e Ye'kwana acordaram cinco prioridades para as políticas de saúde e educação. Em comum um desenho de soluções que permita que a nova geração não precise deixar a Terra Indígena para estudar e realizar tratamentos médicos. Os Yanomami descreveram, ponto a ponto, como querem que o Estado atue para prevenir doenças, fortalecendo postos de saúde na aldeias, além da incorporação do conhecimento tradicional, ervas e rituais no sistema de saúde presente da Terra Indígena.
“Cada posto de saúde tem que estar equipado, só isso fará com que as remoções sejam reduzidas”, diz Francisco Xavier Yanomami, presidente da Ayrca.
O mesmo recado está presente na educação com materiais didáticos próprios e nas diversas línguas, com a melhoria das estruturas das escolas e valorização do magistério que envolve as nove regiões da Terra Indígena. A formação de professores magistério foi concluída em 2017 após ficar anos paralisados por problemas com a secretaria de educação do Estado de Roraima.
O PGTA é resultado de um processo de construção coletiva de quatro anos em que participaram lideranças homens e mulheres Yanomami e Ye’kwana de diferentes regiões da Terra Indígena Yanomami e as sete associações que os representam: Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Yanonamɨ Do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação Kurikama Yanomami, Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), Associação das Mulheres Yanomami Kumirãyõma (AMYK), Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima (Taner) e Associação dos Povos Yanomami de Roraima (Hwenama). As publicações finais estão em três versões bilíngues, incluindo o português e uma das seis línguas indígenas faladas na TI Yanomami: yanomae-português, yanomamɨ-português e ye’kwana-português.
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Yanomami e Ye'kwana entregam ao governo plano de gestão para garantir seu bem-viver - Instituto Humanitas Unisinos - IHU