04 Junho 2024
Um enviado do presidente do Brasil chega esta terça-feira a Roma onde conversará com Francisco sobre diversas iniciativas contrárias ao capitalismo desenfreado, como a cobrança de um imposto sobre os milionários globais.
A reportagem é de Darío Pignotti, publicada por Página|12, 04-06-2024.
Diplomaticamente opostos: o governo do Brasil manifestou, através de medidas e gestos, suas diferenças irreconciliáveis em relação às posições defendidas no exterior pelo presidente Javier Milei. Ao mesmo tempo, o Brasil aprofunda seu entendimento com outro argentino, o Papa Jorge Mario Bergoglio.
Nesta terça-feira, um enviado de Luiz Inácio Lula da Silva chega a Roma onde conversará com Francisco sobre várias iniciativas contrárias ao capitalismo desenfreado, como a cobrança de um imposto sobre os milionários globais que será destinado a financiar programas contra a fome.
Em Brasília, Lula anunciou que seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, explicará a Francisco como implementar esse imposto que cobraria “dois por cento das 3 mil maiores fortunas” do planeta, gerando recursos para alimentar 340 milhões de cidadãos que sofrem de fome.
A confirmação da audiência em que Haddad será recebido pelo chefe de Estado vaticano foi comunicada na quarta-feira passada em Brasília, poucas horas antes de Javier Milei falar a favor do capitalismo livre de toda regulamentação na Universidade de Stanford, Califórnia.
Lá, com pose de acadêmico, apesar de não ter nenhuma pós-graduação, o mandatário recomendou deixar indefesos, entregues à própria sorte, os argentinos assediados pela fome.
À conferência de Stanford assistiram empresários e estudantes possivelmente curiosos em conhecer de primeira mão o pensamento do chefe de Estado sul-americano que mais espaço teve na imprensa norte-americana nos últimos dias, incluindo nessa medição o artigo publicado na capa da revista Time.
A proposta mileísta sobre o flagelo da fome e sua sugestão de aceitá-lo como um dado da realidade é refutada integralmente por Lula.
“Devemos criar consciência de que a fome é algo inaceitável”, afirmou o outrora dirigente metalúrgico em uma recente reunião com o secretário de Estado vaticano, Pietro Parolin, em seu escritório no terceiro andar do Palácio do Planalto. "Estou disposto a realizar uma campanha mundial contra a fome e a desigualdade", porque é necessário criar consciência sobre esses problemas, tem dito repetidamente o mandatário.
Durante sua viagem ao Brasil, o cardeal Parolin analisou com membros do governo do Partido dos Trabalhadores algumas iniciativas conjuntas para enfrentar a fome e outros temas.
Desde o início do terceiro governo lulista, em janeiro de 2023, Brasília e Roma também têm tido posições semelhantes sobre a preservação da Amazônia - devastada durante o governo de Jair Bolsonaro - e a busca de uma solução para a guerra na Ucrânia. Lula e Francisco concordam sobre a necessidade de que os governos de Kiev e Moscou se sentem para negociar contando com a mediação de atores de peso.
Essa fórmula para acabar com o conflito é rejeitada por Volodymyr Zelensky, o chefe de estado ucraniano que na semana passada soltou duras críticas contra o brasileiro (ele o chamou de aliado do Kremlin), algo que contrasta com a boa relação que mantém com Milei.
Em um gesto mais que amistoso, Zelensky visitou no dia 10 de dezembro, em Buenos Aires, o argentino, que em vez de discutir fórmulas para pôr fim à guerra como fazem Roma e Brasília, adere sem objeções ao belicismo proposto pelos Estados Unidos e pela OTAN.
Vários dos assuntos internacionais mencionados nesta nota já foram abordados duas vezes por Lula e Francisco na Santa Sé. A primeira reunião ocorreu em fevereiro de 2020, quando o brasileiro nem sequer havia lançado sua candidatura para enfrentar o então mandatário Bolsonaro, que por sua vez mantinha relações distantes com o Vaticano. O segundo encontro aconteceu em junho do ano passado. Quando o petista, além de visitar o Vaticano, manteve conversas com a primeira-ministra italiana, a direitista Giorgia Meloni, o presidente centrista Sergio Mattarella e o prefeito romano, Roberto Gualtieri, de esquerda.
É possível que Bergoglio volte a se encontrar com Lula este mês na Itália, no âmbito da conferência do G7, enquanto Lula nunca se reuniu com Milei - de quem recebeu uma chuva de insultos no ano passado. Agravos pelos quais Lula exigiu desculpas, as quais ainda não foram apresentadas pelo seu colega argentino.
Graduado e doutor pela Universidade de São Paulo, o ministro da Fazenda Fernando Haddad demonstrou que o dinheiro necessário para mitigar a fome da população mais pobre pode ser arrecadado se houver um consenso entre os principais governos do mundo. E que uma centena de “super-ricos” vive, e possivelmente evade impostos, na América Latina.
Outras das propostas de Haddad consistem, precisamente, em impedir os mecanismos de que se valem os milionários para eludir o fisco. Além de custear a luta contra a fome, uma parte dos recursos do imposto seria destinada a financiar programas de enfrentamento do câmbio climático nos países em desenvolvimento, sustenta Haddad. Assim ele propôs em diversos fóruns, como a reunião de ministros de Economia e presidentes dos Bancos Centrais do G20 realizada em fevereiro no Rio de Janeiro.
Segundo o ministro, se o imposto fosse aplicado no Brasil, permitiria arrecadar cerca de 8 bilhões de dólares anuais, montante equivalente a dez vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente. Certamente a proposta não é uma criação completamente brasileira, já que tem entre seus mentores o professor francês Gabriel Zucman, discípulo de Thomas Piketty, famoso por suas teses sobre o capitalismo e a desigualdade.
Os governos da Alemanha e da França, membros do G20, receberam de bom grado a proposta que será apresentada por Lula, em sua condição de presidente temporário do organismo, durante a cúpula de mandatários que ocorrerá nos dias 18 e 19 de novembro no Rio. Evento ao qual poderia comparecer Milei, já que a Argentina faz parte do grupo.
Por enquanto, não está confirmada a presença do argentino no Rio e, muito menos, que apoie uma tributação cobrada aos mais ricos entre os ricos, beneficiados por um livre mercado no qual ele só vê virtudes.