A oração mais pura

Foto: Arny Amber | Pixabay

22 Mai 2024

Yechiel-Nachman orava a seu Deus há vinte anos. Vinte longos anos durante os quais não passou dia sem que orasse por uma esposa, um trabalho digno, saúde e paz em Israel, mas nada acontecia. Yechiel-Nachman continuava um solteiro asmático e pobre, e nenhuma paz se perfilava no horizonte. Isso não o impedia de continuar a se dirigir a Deus todos os dias, sem nunca pular uma das três orações programadas para a manhã, tarde e noite.

O artigo é de Etgar Keret publicado por la Lettura em de 19-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini a partir da versão hebraica de Raffaella Scardi.

No fundo do seu coração, Yechiel-Nachman havia se resignado à ideia de que as suas orações não teriam sido atendidas. Afinal, a oração é um puro desejo por compaixão e justiça, enquanto a vida é vida: cruel, desesperadora e ofensiva; era natural que dois mundos tão diferentes nunca se encontrassem. Mas, na manhã do dia 22 do mês de Tishrei do ano 5724, festa de Simchat Torá, 07-10-2023, algo se quebrou em Yechiel-Nachman. Naquele dia de festa, de madrugada muitos de seu povo foram massacrados, enquanto outros foram arrancados de suas casas e levados para a cidade do inimigo.

Mesmo antes de processar a terrível notícia, Yechiel-Nachman se retirou, envolto em seu xale de oração, na sacada de seu minúsculo apartamento em Beit Shemesh, por horas e horas, sem beber ou comer, a implorar e rezar ao Criador do mundo: o que você pegou, você já o pegou, mas lhe suplico, tenha piedade dos inocentes arrancados de suas camas aos primeiros raios do amanhecer, traga-os para casa.

Na manhã seguinte, após vinte horas de oração ininterrupta, Yechiel-Nachman abriu o site de notícias e descobriu que os reféns ainda eram prisioneiros e nada havia mudado. Ele vestiu o casaco e se dirigiu rapidamente até a casa de seu rabino, Rabi Nechemia Mittelman. “Sr. Rabino”, disse a Mittelman: “Parei de crer. Antes de tirar o kipá e cortar os peiot, vim me despedir". O rabino olhou para ele com um olhar penetrante e perguntou em tom pacato por que havia perdido a fé. Yechiel-Nachman, agitado, respondeu: “Rezei a noite toda ao Senhor Abençoado pelas almas dos reféns, orei para que cuidasse deles, para que os libertasse. Não rezei como sempre, com fervor parcial, mas com verdadeira intenção, completa. No entanto, nada aconteceu. Desculpe, senhor rabino, mas não creio mais. Eu não creio na existência de um Deus cujo coração fica impassível diante de uma oração tão pura quanto a minha".

“Com intenção completa” – perguntou o rabino, coçando a barba. “Posso perguntar quanto a sua intenção era completa?

“Quanto completa?” Yechiel-Nachman perguntou ofendido. "Absolutamente completa".

“Não podia ser absolutamente completa”, continuou o rabino, balançando a cabeça tristemente, “se tivesse sido, teria surtido efeito. Ao que parece a sua oração era quase completa. Mais completa do que o normal, mas ainda não o suficiente". O rabino ficou em silêncio por um momento, pousou uma mão paternal no ombro de Yechiel-Nachman e acrescentou: "Sugiro que você, Hilik, se empenhe um pouco mais na oração, em vez de cortar barbas e peiot. A julgar pelo tremor na sua voz sinto que você está bem perto".

Yechiel-Nachman voltou para sua casinha, vestiu novamente o xale de oração e rezou. Enquanto rezava, procurava rachaduras na sua fé e na sua intenção e descobriu que, embora rezasse na maioria das vezes de todo o coração, às vezes o coração se dividia, e enquanto a boca sussurrava ‘Eles retornarão do país inimigo’, o coração voltava ao longo pescoço de cisne da caixa sempre sorridente do mercado Felicidade eterna, à intransigência do seu senhorio e às receitas de remédios que já deveria ter solicitado ao médico de família há tempo. Uma vez consciente dos pensamentos egoístas que o distraíam de suas orações, ele se concentrou e lentamente os tirou da cabeça.

Como alguém que se esforça para empurrar um piano pesado encosta acima, Yechiel-Nachman suou e ofegou durante a oração, suou e ofegou, suou e ofegou até erradicar todo pensamento profano do coração e dar lugar a ainda mais intenção e ainda mais fé, que inundaram o seu ser. Sua oração de repente tornou-se outra coisa, não mais uma ladainha de frases do livro das orações, mas uma súplica real, dolorosa, e essa súplica, como toda súplica realmente pura, não conhecia limites, não estava mais confinada ao bem-estar de seus irmãos cativos e do seu povo, mas pedia o bem para todos, até para os inimigos. Yechiel-Nachman, como um cavaleiro que perdeu o controle de seu cavalo, continuou a orar e ouvir curioso e maravilhado as suas súplicas como se fossem proferidas por outra pessoa, e no fim de uma oração que durou cerca de trinta horas abriu o site de notícias e descobriu que dois dos reféns haviam sido libertados e que estavam em curso negociações com o inimigo para um cessar-fogo.

Naquela noite, chegando à sinagoga, notou que o rabino Mittelman o observava com olhos gentis. Quando seus olhos se encontraram, o rabino sorriu e assentiu, e durante todo o caminho para casa, Yechiel-Nachman sentiu que não estava mais caminhando numa suja calçada de concreto, mas nas nuvens do céu. Agora que os grandes problemas estavam começando a ser resolvidos, pensou, poderei dedicar a próxima oração a mim mesmo.

À noite, embora exausto, em vez de dormir, Yechiel-Nachman orou fervorosamente para encontrar esposa e ter filhos. No início pretendia pedir ao Criador que o unisse em casamento com a caixa do Felicidade eterna, mas sua oração, como toda oração verdadeira, encontrou palavras e intenções mais dignas daquelas que Yechiel-Nachman teria podido encontrar sozinho, e insistiu para não escolher uma esposa, mas deixar que o Criador o fizesse por ele.

Enquanto orava, Yechiel-Nachman sentiu uma sensação de elevação, como se tivesse conseguido, pela primeira vez na sua vida, imaginar não os detalhes, mas o espírito da vida que ele esperava. Não rezou por uma mulher, mas pelo casamento, não pelos filhos, mas pela possibilidade de ser um pai sábio e amoroso. Orou e orou sem parar até se encontrar deitado no chão com a cabeça ferida. A vizinha do andar de cima disse-lhe, enquanto lhe enfaixava a testa, que parecia uma contusão séria e precisava consultar um médico imediatamente, mas Yechiel-Nachman a agradeceu e explicou que estava cansado e provavelmente desidratado, bastava beber, comer e descansar um pouco e tudo estaria resolvido.

Da casa da vizinha seguiu para o mercado Felicidade eterna, onde comprou algumas bandejas de costeletas congeladas e seis garrafas de água mineral e, quando pagou, a caixa de pescoço comprido abriu seu sorriso deslumbrante e comentou que ele devia gostar muito de costeletas. Yechiel-Nachman sorriu de volta e respondeu que gostava de costeletas, e não apenas delas. Não havia outros clientes no mercado e eles começaram a conversar sobre comida – de sushi kosher, para ser mais preciso – e Yechiel-Nachman prometeu à caixa de pescoço comprido que da próxima vez que passasse na loja lhe traria um vinagre de arroz especial que só vendiam em Jerusalém e grudava os grãos de arroz entre si como ímãs presas na porta da geladeira.

À noite, deitado na cama com os olhos abertos, Yechiel-Nachman pensou como era maravilhoso e simples este mundo, e quanto sofrimento e dificuldades tinha tido que suportar até então por não saber como e o que pedir. Foi seu último pensamento antes de fechar os olhos para sempre.

A médica explicou aos pais enlutados que Yehiel-Nachman, ao cair e machucar a cabeça, provavelmente sofrera um dano cerebral, e se em vez de dormir tivesse ouvido a vizinha e tivesse ido ao pronto-socorro, ainda estaria vivo. Assim que ela terminou de falar, a médica franziu o rosto de tristeza.

A alma de Yehiel-Nachman, porém, não estava absolutamente triste. Estava agora num mundo que é apenas bem – não 99% bem, mas bem perfeito, completo – e naquele mundo passava horas e horas conversando com o Criador, apresentando a ele todas as queixas e aflições dos seres humanos. Deus escutava com infinita paciência e acenava com a cabeça compassivamente. Sempre, mesmo quando não tinha a mais pálida ideia do que Yechiel-Nachman estava falando.

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