04 Mai 2024
“Este ensaio é o resultado de uma intensa pesquisa documental sobre algumas etapas da história recente do homem, durante as quais a ciência deixou de ser uma ferramenta para o desenvolvimento do ser humano para se transformar grotescamente em instrumento aplicado ao lucro e interesse exclusivo de alguns”, escreve David González Jara, doutor e licenciado em Bioquímica pela Universidade Rey Juan Carlos I, de Madri, e pela Universidade de Salamanca, na introdução de seu livro recente-publicado Tratado de ciencia canalla (Fondo de Cultura Económica). Também é autor de Bacterias, bichos y otros amigos e El reino ignorado.
Aqui, este cientista multidisciplinar, professor e divulgador examina diversos acontecimentos científicos de diferentes épocas em que houve certos desvios dentro do que se considera moralmente aceitável e os interroga para tentar fazer com que haja menos erros no futuro.
Da Espanha, em uma conversa por e-mail com a revista Ñ, Jara lança a sua visão sobre estas histórias e se abre a novas questões que giram em torno do que a covid nos deixou como ensinamento, o papel dos Estados quanto ao desenvolvimento científico e os totalitarismos, em tempos em que as extremas-direitas florescem em nível mundial.
A entrevista é de Pablo Díaz Marenghi, publicada por Clarín-Revista Ñ, 26-04-2024. A tradução é do Cepat.
No início do livro, o senhor aborda o célebre caso de Alexis St. Martin (um homem com um buraco no estômago, em que se pesquisou sobre a digestão). O que isso nos diz sobre os limites éticos e morais da ciência?
Manifesta alguns dos principais aspectos que caracterizam as pesquisas infames que têm sido realizadas utilizando seres humanos. Talvez o mais relevante seja que os sujeitos da experimentação estejam situados em uma escala inferior à ocupada pelo indivíduo “normal”. No caso de St. Martin, o médico que fez um experimento com ele se sentia legitimado por ter salvado sua vida, após o tiro que o jovem levou no peito.
Outro aspecto que se busca destacar com a história de Alexis St. Martin é que a grande maioria dos resultados (muitos deles completamente inúteis) alcançados, por meio dos experimentos com seres humanos, poderia ter sido obtido da mesma forma, sem a necessidade de utilizar qualquer pessoa como sujeito de experimentação.
Como a experimentação científica com seres humanos foi sendo modificada?
O Código de Nuremberg, que surgiu como resposta aos crimes perpetrados pelos cientistas nazistas, foi um passo decisivo em seu controle. Em 1945, The American Medical Association havia publicado as primeiras normas éticas que regulamentavam a experimentação com seres humanos nos Estados Unidos e em 1966, por meio da Declaração de Helsinki, foram aprovados, em nível mundial, os princípios éticos que regem tais formas de pesquisas médicas.
Igualmente, embora seja verdade que atualmente haja um controle exaustivo do ponto de vista ético, não devemos esquecer que na Alemanha nazista vigorava uma legislação muito restritiva em matéria de experimentação com seres humanos que não impediu os testes iníquos realizados pelos nazistas com as populações judia, cigana e eslava durante a Segunda Guerra Mundial.
O senhor também faz uma análise do impacto que as ideias eugênicas tiveram na ciência, sobretudo na Espanha franquista. Atualmente, observa resquícios a esse respeito?
Proponho mostrar como é simples distorcer as descobertas científicas, especialmente quando se acomodam artificiosamente de forma interessada a contextos que pouco ou nada têm a ver com o seu verdadeiro campo de aplicação. Podemos ter uma ideia da singularidade das abordagens eugênicas na Espanha, quando tomamos conhecimento de que foram abraçadas ao mesmo tempo por fascistas, socialistas, comunistas e até anarquistas. Isto sim, cada um segundo os seus interesses.
Hoje, estão sendo estudadas técnicas, como a terapia genética em células germinativas, nas quais podemos interpretar certa ação eugênica, ainda que muito diferente. Não possuem o objetivo de evitar a suposta degeneração da raça, mas, ao contrário, melhorar a qualidade de vida do indivíduo e mitigar o seu sofrimento.
Há uma parte do seu livro que é dedicada ao nazismo. Fala sobre o irracionalmente racional e alerta que isto pode voltar a acontecer. Isto está relacionado ao crescimento das extremas-direitas em todo o mundo?
Costuma-se relacionar as experiências execráveis feitas pelas nazistas com a brutalidade e loucura, o que é um erro. Sabiam perfeitamente o que faziam e o porquê. Associar o nazismo à loucura pode nos levar à banalização daquele terrível Holocausto e, inclusive, repeti-lo.
Em parte, a ascensão da extrema-direita, tanto na Argentina quanto em meu país, é consequência de uma perda de memória que no transcurso de muito poucas gerações nos fez subestimar o dano que os extremismos políticos (e acrescento os extremistas de esquerda) causam às sociedades humanas. Como diria Primo Levi, “conhecer é necessário, porque o ocorrido pode voltar a ocorrer, as consciências podem ser seduzidas e obnubiladas; as nossas também”.
O que poderia acontecer em relação à ciência?
Durante os primeiros anos da ditadura franquista na Espanha, professores e educadores foram varridos, docentes foram expulsos da universidade e muitos dos melhores cientistas tiveram de se exilar em outros países. Tudo isto com o objetivo de submeter a ciência ao controle político.
No livro, é abordado o papel dos Estados em relação às descobertas científicas. Como analisa o vínculo entre ciência e Estado? Observe que na Argentina o governo começou a implementar cortes na área da ciência.
Estamos em sociedades modernas que são dependentes tanto da ciência quanto da tecnologia que surge da sua aplicação: a medicina, a educação, as telecomunicações e até o lazer estão subordinados ao desenvolvimento científico. Neste aspecto, os Estados podem optar por duas alternativas radicalmente opostas: apostar no desenvolvimento científico e tecnológico dentro de suas fronteiras ou se tornar dependentes de outros países.
Em relação à primeira alternativa, fica evidente que a ciência não é barata, deve-se investir na formação de pesquisadores, na construção e manutenção de laboratórios e institutos de pesquisa, dotar periodicamente rubricas orçamentárias destinadas a projetos e ciência aplicada etc. Tudo isto supõe um investimento econômico significativo, que não costuma dar frutos a curto prazo.
Contudo, é exatamente disso que se trata. Um investimento no futuro do país que aposta em ter uma estrutura científica consolidada, madura e eficaz. Algo que vimos, inclusive, na resolução da pandemia. Uma nação poderosa deve ter um sistema de pesquisa e desenvolvimento de alto nível, e isso de modo algum se alcança limitando os recursos que o próprio Estado pode, e deve, destinar para melhorar a sua estrutura científica e tecnológica.
Isso está vinculado ao aspecto geopolítico da ciência que é abordado em seu livro. Analisa os avanços científicos em tempos de pós-guerra, o papel que os Estados Unidos tiveram ao lado das grandes potências e como isto impactou na desigualdade social. O que o senhor poderia comentar sobre isso?
Há tempo que a classe política sabe que o desenvolvimento científico e tecnológico que um país apresenta pode fazer a diferença entre ganhar e perder uma guerra ou entre fazer parte da elite mundial ou estar dependente da tecnologia de outros. As grandes potências mundiais investem em ciência e tecnologia como estratégia para manter seu status e, inclusive, ser mais poderosas. Não nos enganemos: a ciência não é apenas uma ferramenta para o conhecimento, é também uma ferramenta para o crescimento econômico e o poder de um Estado.
Neste ponto, seu livro também traz uma reflexão sobre o poder do discurso científico/cientificista. Concorda?
Sem dúvida, um de meus objetivos é promover a reflexão sobre o papel que a ciência desempenha na sociedade atual, analisando tanto o seu campo de ação como todas as limitações que apresenta quando quer ser artificial e interessadamente aplicada a outras áreas do conhecimento ou a âmbitos da realidade onde pouco ou nada tem a contribuir.
A ciência, como ferramenta de conhecimento, ganhou uma legitimidade extraordinária, de tal forma que uma imensa maioria da sociedade está disposta a aceitar como verdadeiro e irrefutável tudo o que se chega a afirmar em seu nome. Estamos em um contexto extraordinariamente cientificista no qual perdemos a noção de quais são o objetivo real e a utilidade do conhecimento científico.
Em relação ao poder, o senhor reflete acerca daqueles que foram oprimidos por ele em nome da ciência. Afrodescendentes e populações originárias que foram utilizados para experimentos científicos. Qual é a sua análise?
Na maioria das passagens mais sombrias da ciência, quando os seres humanos foram utilizados como sujeitos de experimentação, foram posicionados em uma categoria inferior àquela que os cientistas consideravam que era ocupada pelo indivíduo “normal”. Para alguns maus cientistas, o simples fato de que um indivíduo estivesse preso ou apresentasse uma deficiência legitimava a sua participação em pesquisas que poderiam servir, ainda que raramente tenha sido assim, para o bem da maioria. Historicamente, o fator determinante para fazer parte do grupo dos “mártires da ciência” tem sido pertencer a uma etnia minoritária.
Por último, quais são os principais desafios da ciência hoje?
Um dos desafios mais importantes é o de diminuir a distância que existe entre a ciência feita pelo cientista e a percepção que o indivíduo médio tem dela. Essa distância, que às vezes separa um e outro, faz com que o indivíduo considere a ciência algo complexo que está fora de seu alcance e, dessa forma, restrinja-se a acreditar irreflexivamente em tudo o que é declarado em nome da ciência, esteja certo ou não. Provavelmente, o cientificismo que permeia todos os estratos da sociedade tem a sua origem nesta falta de comunicação entre o cientista e a sociedade.
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“Perdemos a noção de quais são o objetivo real e a utilidade do conhecimento científico”. Entrevista com David González Jara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU