Pesquisador propõe, a partir de Bruno Latour, que uma ciência capaz de fugir das armadilhas do negacionismo precisa ampliar seus espaços de interlocução com os coletivos humanos e não humanos
Esta é a segunda parte da entrevista com Fernando Silva e Silva. Ela foi gravada em um café, no centro de Porto Alegre, numa tarde de verão com sensação térmica acima dos 40ºC. A sensação nas ruas era de abafamento e mal-estar, refletido em olhares cansados e roupas úmidas de suor. Todos esses efeitos sentidos na pele por milhões de pessoas durante as estações de calor poderiam ser indícios da onda de calor e colapso climático que testemunhamos. Contudo, de um certo ponto de vista científico, o aquecimento global não existe, porque o que é científico dependeria de um consenso no qual a perspectiva dos coletivos não especializados, os habitantes da terra, não importa.
“Na ideologia científica existe a ideia de que é absolutamente verdadeiro aquilo que é absolutamente consensual. Aquilo precisa ser válido sempre, em todos os tempos, em todos os lugares e por consenso”, explica Silva. “Portanto, há ali 1% que diz que o cigarro não causa câncer, 1% que diz que as mudanças climáticas não são antrópicas, quer dizer que isso ainda está em pesquisa, que ainda não temos certeza, que depois, nos próximos dados, tudo poderá ser revisto”, complementa.
Assim como na democracia, em que suas contradições não são resolvidas com menos democracia, mas como mais participação democrática, na ciência ocorre o mesmo. “A expectativa de Latour sobre o que seria uma ciência que aceita fazer parte da democracia é o fato de que, de saída, o irracional possa ganhar um lugar de contestação e de transformação da razão, possa ser um fator transformador das preocupações científicas e da tessitura coletivo”, descreve o entrevistado. A questão passa pela forma como aproximar e tensionar os saberes dos coletivos humanos e não-humanos da ciência.
Leia aqui a primeira parte desta entrevista.
Fernando Silva e Silva durante a conferência no IHU (Foto: Reprodução | YouTube)
Fernando Silva e Silva é professor e tradutor de alemão, francês e inglês. Pesquisa em diferentes campos, principalmente filosofia ambiental, história da ciência, conhecimento e estudos narrativos. Fundou e coordena na APPH o Grupo de Pesquisa em Ecologia das Práticas (GPEP) e coordena conjuntamente o projeto de pesquisa A Terra e Nós (CNPq). É doutor em Filosofia (PUCRS), mestre em Estudos da Linguagem (UFRGS) e licenciado em Francês (UFRGS).
IHU – Conforme propõe Latour, por que é mais interessante inverter os resultados da irracionalidade, investigar quem compõe o tribunal da irracionalidade e seus critérios de avaliação, do que saber se uma afirmação é verdadeira ou falsa?
Fernando Silva e Silva – Essa é uma questão interessante. De certa forma já é uma herança nietzschiana de todo esse design científico sobre o que significa e qual é o lugar do irracional nas nossas mediações intelectuais e na tessitura do social. Torna-se uma questão ainda mais importante para Latour e até para uma história da ciência bem anterior, como em Thomas Kuhn [1] e Karl Popper [2]. Estes autores colocam essa pergunta pensando sobre como é fácil contar uma história científica em que simplesmente eu digo: “os certos tinham razão e os errados eram irracionais”. O quão confortável é essa articulação e quão pouca explicativa será.
Popper e Kuhn irão dirigir um olhar mais cuidadoso a essas teorias que dão errado, porque eles dirão que aquilo tinha uma razão de ser naquele momento, que há uma construção racional que a sustenta, que coloca esses pensamentos ou essas propostas materiais em competição ou incerteza, em dúvida, ou uma questiona a outra porque a razão não estava dada. A razão foi produzida ao longo do processo.
Isso vai preocupar a Latour [3], ainda mais depois do Ciência em ação e ao longo da década de 1990 com a consolidação daquilo que chamamos de guerras entre as ciências. Essa acusação de irracional se torna muito trivial e fácil de articular, pois basta apontar para outro lado e dizer que é irracional. O problema central é que essa postura tira o outro lado de qualquer tipo de disputa, de participação, na construção do coletivo.
O irracional é o fundamentalmente inútil, sem função, sem lugar, sem circulação, e, sobretudo, é algo que não deveria existir. Óbvio que ao longo do colonialismo o irracional é sempre o não branco, sempre a mulher; essas figuras deslocadas serão sempre aquelas que não têm como ocupar o espaço da razão.
Para o Latour, isso vai interessar porque, quando fazemos essa rearticulação dizendo que a razão não é dada por si só ou ela não ingressa transcendentalmente na nossa coletividade, mas é cuidadosamente produzida, isso altera também o estatuto da irracionalidade.
Porque a irracionalidade diz respeito a duas coisas: ou a um problema de construção coletiva a ser respondido com construção coletiva ou ao fato de que aquela outra construção não corresponde a essa construção social de razão que já está articulada. A fronteira entre racional e irracional está sempre sendo jogada na medida em que o culto social é tecido a partir desses fazeres que produzem razão e verdade. O que transforma completamente o papel do irracional, e também o que Latour chama depois de “Parlamento das Coisas” a partir do [livro] Jamais Fomos Modernos, é a possibilidade de que a construção do racional esteja aberta à aproximação do irracional, do que ela julga, de saída, irracional, mas que pode vir a ter um lugar. Esse papel do irracional ganha espaço a partir desse trabalho latouriano de jogar um olhar às controvérsias.
Diante, por exemplo, da instituição da biotecnologia global que produz soja transgênica, a recusa de um pequeno agricultor de usar a soja transgênica é uma irracionalidade, é um erro de cálculo, é um desentendimento da verdade que aquela ciência e aquela tecnologia carregam.
A expectativa de Latour, como ele fala em 1999, no Políticas da natureza (Unesp, 2019), sobre o que seria uma ciência que aceita fazer parte da democracia, é o fato de que, de saída, o irracional possa ganhar um lugar de contestação e de transformação da razão, possa ser um fator transformador das preocupações científicas e da tessitura coletivo. De certa forma, ele faz com que aquilo que é irracional seja entendido de fato não como algo que é ontologicamente diferente do racional, mas aquilo com o qual é necessário produzir uma mediação.
Dei esse exemplo dos transgênicos que tanto o Latour quanto a Stengers [4] usam muito, porque – pensando no caso francófono, França, Bélgica, e em toda a Europa Ocidental – haverá uma resistência enorme aos transgênicos. Na época, foi pensado como uma grande racionalidade, como algo que aproxima os contestadores a bichos irracionais, como se estivessem fazendo uma contestação completamente sem sentido de uma tecnologia que veio para “salvar” o mundo da fome. Esta contestação, ao longo das décadas, será absorvida na Europa como algo de fato necessário, culminando na proibição do cultivo dos transgênicos.
Claro, teremos muitas outras mediações. Por outro lado, há uma série de exemplos de contestações que envolvem não um questionamento a dada postulação, mas um negacionismo que empobrece o debate. É o caso, principalmente nos anos 1980, do criacionismo ou ao longo da pandemia o desinteresse e a descrença do uso das vacinas, coisas que persistem até agora. Ao que esses autores todos chamam muito a atenção e ao que Latour sublinhou também, é que, por não termos bem desenvolvidas as tecnologias metodológicas e sociais de mediação entre o que está dentro e o que está fora do espaço da razão, tudo aquilo que é contestatório vira mera irracionalidade indiferenciada. Portanto, não conseguimos diferenciar o que é uma contestação pertinente de uma contestação impertinente.
Justamente essa pergunta sobre o que é pertinente, o que vem ao caso, o que faz parte desse conceito que Latour chamará de questões de interesse, as matters of facting [questões de fato]. Se não temos um olhar que é capaz de ultrapassar as questões de fato e olhar para os outsourcings [problemas correlatos], não conseguimos distinguir entre o que, para além desse núcleo de verdade científica que queremos proteger, é ou não pertinente. E, nesse sentido, tornamo-nos incapazes de diferenciar entre os irracionalismos.
Então, ocorre a disseminação dessa categoria de pseudociência, de não científica, de crendice ou de mito. São palavras que articulam vários outros preconceitos e retomam várias figuras da colonialidade, justamente porque as estruturas de diplomacia científica não estão bem articuladas.
IHU – Essa questão dos transgênicos lembrou o caso do Rio Grande do Sul, durante o governo de Olívio Dutra, que criou, no fim da década de 1990, uma campanha que visava tornar o RS um território livre de transgênicos...
Fernando Silva e Silva – Tem totalmente a ver com aquele momento, com o Fórum Social Mundial, com as lutas altermundialistas, que estavam de olho em outros problemas. Isso é algo sempre debatido e é uma arma que a Ciência, com C maiúsculo, tem, que é dizer: “mas em nossos testes laboratoriais está tudo bem”. Ora, é como se a contestação aos transgênicos se preocupasse, única e exclusivamente, com o resultado ou não dos testes laboratoriais e as consequências que houve em humanos e animais em nível imediato e não do ponto de vista biológico.
Qual é o resultado da produção de transgênicos ao longo de distâncias enormes, muito tempo, do ponto de vista biogeoquímico? O que os transgênicos fazem com a tecnologia social, com a ideia da semente proprietária, com o efeito que ela terá na circulação de alimentos e mercadorias?
O truque da irracionalidade é transformar todas essas contestações válidas em uma contestação reduzível ao escopo que o próprio estudo se dá. Por exemplo: teve efeito imediato sobre o corpo humano? Notou-se incidência de câncer? Nesse estudo que foi feito, não. Ah, então, seria irracional não implantar porque a entrega de alimentos é maior. O truque da Ciência, com C maiúsculo, é modalizar completamente a questão criando o espaço do racional e, de certa forma, o que a Stengers e [Philippe] Pignarre [5] chamam de “alternativas infernais”, no livro A feitiçaria capitalista (La sorcellerie capitaliste: pratiques de désenvoûtement. Paris: La Découverte, 2005).
Essa ideia, de que a pergunta que os transgênicos colocam é pura e simplesmente: “você quer que as pessoas no mundo tenham mais comida ou não?”, como se fosse essa a pergunta, como se ela pudesse ser redutível ao fato de estar fazendo uma escolha de acesso à comida, é falsa. “Mas você quer justiça no campo e reforma agrária ou que as pessoas comam?” É a mesma ideia, totalmente falsa porém articulada a partir dessas restrições do possível que essa não diplomacia da Ciência, com C maiúsculo, acaba produzindo.
IHU – O que significa pensar em assimetria na Ciência e como isso é importante para compreendermos dois aspectos fundamentais: o que é a verdade e o que é ciência?
Fernando Silva e Silva – Essa é uma questão há décadas essencial e versa sobre como as ciências são engajadas, inclusive em mais de um sentido, para pensarmos essas assimetrias.
Um desses sentidos diz respeito às maneiras como se circulam diferentes as práticas de produção do conhecimento, onde se entenderia que somente as ciências produzem “conhecimento válido”. Há um detalhe: somente as ciências produzidas em um certo recorte geográfico, que é uma outra questão ainda.
Podemos usar como exemplo o Rio Grande do Sul: a ciência produzida com os fósseis encontrados aqui é menos válida, então precisamos que laboratórios da Alemanha e dos Estados Unidos levem os fósseis embora porque só eles podem datar e determinar a que espécie pertenceriam. Isso acontece porque, independentemente de ter ou não o mesmo aparato tecnológico, não estaríamos na posição capaz de anunciar uma verdade sobre essa história geológica da Terra.
Tem esse aspecto que diz respeito a essa assimetria entre diferentes formas de produção de conhecimento, a essa tentativa de afirmar sobretudo a ciência. Frequentemente isto tem um efeito deletério sobre as próprias ciências, porque existe uma ideia de verdade científica que pauta essa forma de produção de conhecimento que, muitas vezes, invalida as próprias ciências, que são consideradas menos verdadeiras.
Desde o início da Modernidade, em especial desde o século XVII, estabelece-se a física como modelo de verdade, uma física matematizada. Outras ciências, como a química e a biologia, frequentemente não conseguem produzir o mesmo tipo de verdade, uma verdade que pode ser reduzida a uma proporção matemática, a uma equação. Nesse sentido, elas estão sempre em falta em relação a essa ciência que seria anterior e fundamental.
A questão sobre essas assimetrias é muito pautada também sobre quem tem direito de entrar na ciência, quem consegue participar do fazer científico, no sentido de quais gêneros, raças e classes vão ocupar esse lugar. Isso foi teorizado principalmente pelos estudos feministas da ciência a partir dos anos 1970, na figura, por exemplo, de Sandra Harding [6]. Segundo a autora, há a ideia de que o envolvimento dessas outras pessoas e histórias na produção científica produz uma objetividade melhor e uma ciência mais qualificada. O que ela chama de objetividade forte.
Ela sugere que a inserção dessas outras posicionalidades na produção científica torna esse saber ainda mais objetivo, porque ele é mais testado e se entrelaça com mais coisas do que quando é resguardado por uma instituição hétero, branca e patriarcal que policia constantemente os limites do racional e irracional.
A entrada desses personagens que foram historicamente relegados ao irracional na produção científica produzirá o envolvimento da ciência com outras figuras, com o propósito de que é possível atingir uma verdade ainda mais completa e uma objetividade ainda mais forte se essa articulação for feita. Existe um efeito muito negativo sobre as ciências quando as assimetrias histórico-sociais tornam a objetividade científica mais fraca, menos testada, menos entrelaçada, mais frágil e incapaz de negociar os seus limites, o que seria aquilo que a tornaria mais potente e circulável.
Ao mesmo tempo, é preciso ter em vista que as assimetrias não são resolvidas com boa vontade na inclusão. Caso se proceda desta forma e se mantenha fundamentalmente a assimetria entre o científico e não científico, entre o racional e o irracional, o efeito é falso. Pois se produz uma inclusão tutelada, é incluído aquilo que corresponde mais ou menos ao científico, ou o que, diante da instituição científica é irrelevante, não faz “mal” a ninguém. Contudo, se for uma inclusão que cause o risco de mudar a maneira como a ciência é feita, ou os resultados, uma forma de pensar, ou uma tecnologia, aquilo vira algo a ser rejeitado. Ir além do “bom-vontadismo” na rearticulação do que são essas assimetrias é uma tarefa essencial hoje.
No exemplo que usamos antes, como é a articulação contra os transgênicos, tanto aqui quanto na Europa, levaram-se em conta, por exemplo, os saberes tradicionais dos pequenos agricultores. Então tomar isso a sério, não no sentido de uma boa vontade – “ah, fomos lá ouvir eles” –, é, de fato, algo capaz de transformar as práticas de produção agrícola.
Na Europa, isso teve um efeito relativo para segurar a onda da disseminação da monocultura intensiva, por exemplo. Aqui é muito mais difícil, acaba ganhando outras formas na resistência contra a reforma agrária etc. Essas são as simetrias que não são resolvidas simplesmente no espaço do debate racional, mas precisam ser resolvidas com luta e transformação. Se as coisas ficam iguais depois que a inclusão foi feita, é porque as assimetrias provavelmente persistem.
IHU – A que você atribui haver, hoje, um debate público em torno de áreas que são consideradas “pseudociência”, mas há tão pouco debate sobre “pseudotecnologia”?
Fernando Silva e Silva – É uma questão interessante por vários motivos.
A própria ideia da pseudociência ou do “pseudoalgo” tem a ver com o que Didier Debaise [7] e Isabelle Stengers dizem de uma maneira interessante, retomando William James [8], que é o quanto a Modernidade é marcada por esse medo de ser feito de trouxa [risos].
É esse desespero em relação à possibilidade que tem tenhamos feito algo por causa de uma pseudociência, mesmo que aquele algo funcione, mas era mentira. É guardar esse sentimento de horror ou de ter sido enganado, que é algo fundamental nessas políticas da Ciência, com C maiúsculo, nessa produção de fronteiras entre o verdadeiro e o pseudo.
Essa discussão sobre as pseudotecnologias é muito pertinente hoje porque, se olharmos historicamente, as pseudotecnologias estão sempre em volta, gravitando a articulação das sociedades modernas e mobilizando fortunas.
Hoje, talvez, seja o momento em que as pseudotecnologias estão mais em primeiro plano. Há projetos de colonização de Marte, por exemplo, e a ideia de que as mudanças climáticas podem ser adiadas ou impedidas e que só precisamos achar a tecnologia certa, tem toda uma fila de startups oferecendo a captura de carbono, a tela que vai bloquear o sol etc. Todas essas propostas gravitam na construção do social, mobilizam fortunas para suas imaginações. Basta ver, agora, essa última criação da Neuralink [9], de Elon Musk [10].
As pseudotecnologias circulam e afetam a imaginação coletiva. Mas, nas nossas construções sociais, são vistas como uma possível inovação, um projeto de futuro, como alguém que é imaginativo e não visto como pseudocientista, esse “perverso” que está corroendo os pilares da construção social.
No livro Médecins et sorciers [Médicos e feiticeiros] (Paris: La Découverte: 2012), que Isabelle Stengers escreve com Tobie Nathan [11], ela fala como na medicina o papel do charlatão é fundamental para a própria articulação da validade do médico. A medicina, o tempo todo, é marcada por esse fantasma, o risco do charlatão que está trazendo a cura não provada, a cura falsa, a cura que recorre a princípios não científicos. E é, muitas vezes, a partir desse charlatão que ela extrai a sua própria cientificidade, com aquela presença constante da figura que estaria trazendo a enganação. É aqui onde a medicina se coloca como verdadeira, bem-informada, completa.
Outras pseudociências, por exemplo, como a geografia ou a geologia que sustentam o negacionismo climático ou teorias alternativas da evolução, do criacionismo, por algum motivo não parecem tão interessantes quanto a psicanálise, a acupuntura, seja lá o que forem essas outras práticas de produção do saber em saúde. Até porque essas outras ciências não são assombradas da mesma maneira pela figura do charlatão. A geologia não extrai sua verdade científica de um geólogo charlatão, nem a física e nem a química. O que é diferente de um psicólogo, que muito bem pode construir a validade das suas terapias em relação às terapias charlatãs. É realmente um jogo interessante o tipo de atenção que é conferida a essas coisas: enquanto as pseudotecnologias queimam bilhões de dólares nos seus projetos bizarros, a pseudociência e os ditos praticantes da pseudociência ocupam esse lugar de vilões do social.
De novo, o que falei sobre o irracional: essa acusação genérica de pseudociência tem o perigo de não direcionar um olhar cuidadoso ao que o chamado “pseudocientista” está sugerindo, de modo que não se consiga distinguir entre o que é uma prática não científica e a proposta de outra forma de produção de conhecimento, de produção de verdade.
O uso genérico dessa categoria perde o cuidado de entender que o uso de cloroquina para o tratamento de Covid-19 não é uma pseudociência, é uma mentira. E que é muito diferente de uma forma de produção de conhecimento, por exemplo, Tucano ou Guarani, que não é uma pseudociência, mas uma outra forma de produção de conhecimento. A estruturação de coisas, que originalmente se usam da pseudociência como forma de produção de conhecimento, que emulam o método de científico, como ufologia e criptozoologia, em inglês chamadas science fringe [ciências marginais], são formas de produção de conhecimento preocupadas em emular o método científico.
IHU – O terraplanismo...
Fernando Silva e Silva – Sim. Boa parte dos terraplanistas tenta recriar todo o método científico para encontrar ali sua validade. É nesses casos que faz mais sentido o uso do termo pseudociência, porque justamente são coisas que estão tentando reproduzir a própria forma de produção de Ciência, com C maiúsculo.
Nesse caso, podemos colocar a provocação de Vinciane Despret [12]: o quanto a psicologia behaviorista, aplicada ao estudo dos animais, não é uma pseudociência? Porque faz perguntas e articulações conceituais que não se aplicam, não dizem respeito à maneira como os animais vivem, agem, pensam, significam. Diz respeito, porém, ao entendimento humano de racionalidade. Ela emula o que seria uma pesquisa científica, produz grupos de pesquisa, controle, emula uma pergunta científica que não se aplica de forma alguma ao objeto em consideração. Mas é algo perfeitamente absorvido e validado dentro de todo o século XX até hoje, como algo válido, a pesquisa behaviorista sobre os animais.
A categoria de pseudociência acaba sendo, então, muito frágil por essa ambiguidade com a qual é aplicada. Provavelmente muito mais interessante seria pensar sobre a especificidade das práticas: O que isso busca? Como está tentando fazer? Como está construindo?, e com isso compreender o seu papel na construção coletiva e na produção de verdades ou na produção de conhecimento. Apenas nesse sentido que poderíamos dizer: “Ah, isso aqui tá tentando substituir a ciência ou está corroendo a ciência”.
Em lugar do desdém automático, que é o que a ideia de pseudociência ou de irracional vai produzir, é necessário um estudo muito cuidadoso dessas redes de produção de pseudociência. Porque aí vamos encontrar a maneira como (e com que propósito) as redes estão sendo articuladas.
IHU – Em que sentido a ciência é, paradoxalmente, sua maior inimiga?
Fernando Silva e Silva – Essa é uma questão superpresente em Latour, ainda que coloquemos aqui todos os asteriscos – a falta de financiamento social é um inimigo da ciência, a maneira como a indústria e as formas privadas de pesquisas se relacionam com a ciência –, tudo isso precisa ser dito.
Existe uma maneira como Latour articulou o modo como a Ciência, com C maiúsculo, é uma inimiga das práticas científicas, das ciências no plural. Isso na perspectiva que impõe critérios de validade para a própria produção de conhecimento, que tornam mais frágeis todas as ciências à medida que elas não correspondam socialmente a esses critérios.
O que isso quer dizer? Temos vários exemplos muito práticos. Um deles é o exemplo que o próprio Latour dá, que é, quando acontece a Conferência das Partes sobre o Clima – COP em Copenhague, há alguns anos, tem um vazamento de e-mails de pesquisadores em que há a denúncia que cientistas estariam pedindo dinheiro para fazer seus estudos. Aparece uma série de pedidos de bolsa, de financiamento de projetos, fomentos estatais e privados sendo feitas para produzir ciência climática. O fato é visto como uma denúncia da impureza da produção da ciência climática, porque ela não seria ciência, produção de conhecimento, mas um truque de enriquecimento ilícito dos cientistas que estavam pedindo dinheiro ali para fazer ciência sobre o clima.
Quem produz ciência sabe que são necessários trabalhadores, material, tecnologia, fundamentais para fazer pesquisa. Ou seja, é preciso financiamento. A própria ideologia científica, de que a produção de conhecimento científico é um esforço desinteressado de uma mente individual que está buscando a verdade como o seu próprio fim e não para propósito nenhum, nunca poderia ter um propósito social, político e pessoal que estivesse “infectando” essa mera produção científica como um fim em si. Essa ideologia científica fere, naquele momento, a própria pesquisa das ciências climáticas. É algo que vai conspurcar. Será uma vergonha para os pesquisadores o fato de que eles estavam requisitando financiamento para suas pesquisas, porque, na ideologia científica, não pode haver esse interesse, engajamento, preocupação.
Outro exemplo das ciências climáticas muito recorrente é a ideia de consenso: na ideologia científica, existe a ideia de que é absolutamente verdadeiro aquilo que é absolutamente consensual. Aquilo precisa ser válido sempre, em todos os tempos, em todos os lugares e por consenso.
A forma de construção de dissenso, como Naomi Oreskes [13] e Erik Conway [14] falam em Merchants of Doubt (Mercadores da dúvida), é uma técnica diretamente aplicada pela indústria do tabaco para criar essa incerteza da correlação do cigarro com o câncer de pulmão e que vai ser aplicada para uma série de coisas: na indústria dos transgênicos e das mudanças climáticas, por exemplo, para produzir uma certa quantidade de consenso apenas o suficiente para fragilizar uma determinada produção científica diante de um público que espera, das ciências, um consenso absoluto. Portanto, há ali 1% que diz que o cigarro não causa câncer, 1% que diz que as mudanças climáticas não são antrópicas, quer dizer que isso ainda está em pesquisa, que ainda não temos certeza, que depois, nos próximos dados, tudo poderá ser revisto.
Especialmente com as ciências climáticas, isso faz parte da própria história da ciência das mudanças climáticas, desde a segunda metade do século XX. Quando se consolida a pesquisa sobre o tema, consolida-se também a produção de incertezas. É quase que simultânea a produção de ciência por parte das grandes petrolíferas, de uma ciência que diz que talvez o aquecimento global não seja antrópico, com um financiamento grande desse tipo de pesquisa, buscando alternativas ao que estaria causando o aquecimento global ou a dizer que não existe aquecimento global nenhum.
A ideologia científica, a Ciência, com C maiúsculo, diz que a ciência é aquilo sobre a qual há consenso absoluto e, com isso, fragiliza todas as ciências porque elas não são construídas a partir deste consenso unívoco. As coisas que se tornam invisíveis e incontornáveis, que estávamos falando antes, não são validadas por terem consenso absoluto, são validadas por se tornarem invisíveis, ainda que a ciência em torno delas não tenha consenso absoluto. Enfim, ao longo do século XX, muitas vezes isso vai acontecer: algo que se torna uma parte comum da vida das pessoas depois é reanalisado como algo sobre o qual não havia consenso, mas que por mil motivos científicos, industriais e econômicos toma esse lugar.
Um exemplo clássico é a disseminação, nos Estados Unidos, do asbesto [amianto] para fazer o isolamento da temperatura. Entende-se num certo momento, mas de uma maneira muito frágil, que o asbesto não seria perigoso. Como era um material muito barato e havia muita sobra naquele momento, em vista do pós-guerra, a indústria queria uma vazão e ele se torna um isolante térmico muito usado em todas as casas americanas e canadenses. Depois, entende-se que era altamente cancerígeno. Hoje, quando se reforma uma casa antiga é necessário chamar uma equipe da prefeitura que vai ao local com profissionais para tirar este material de uma maneira não perigosa, porque o asbesto é um perigo químico, uma arma bioquímica que está na casa, mas que era totalmente validado pela indústria.
A própria ideia de que a ciência e a produção tecnológica funcionariam por consensos absolutos é totalmente falsa diante da prática científica. No caso das mudanças climáticas, havia essa interrupção na produção de uma ação consistente em nível global de todas as nações em relação às mudanças climáticas, porque se produzia a recorrência argumentativa desse 1% de incerteza. Agora, finalmente, nos últimos 10 anos, podemos dizer que houve essa virada, da gestão global em relação a isso. Contudo, até muito recentemente, desde os anos 1970, esse 1% fez o trabalho de impedir a circulação social do consenso científico sobre as mudanças climáticas.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Fernando Silva e Silva – Quero agradecer o convite e dizer o quanto esses limites entre ciência e pseudociência merecem a nossa consideração cuidadosa. Assim, principalmente ao longo da pandemia tomamos essa posição política de rechaçar, de sair de qualquer coisa que pudesse ter a cara de pseudociência, como se isto fosse reforçar a construção da nossa sociedade, como se fosse nos fortalecer contra as incertezas das pseudociências. Mas são atitudes que foram fragilizadoras da produção científica. Muito antes disso, esses limites entre a ciência e a pseudociência precisam de financiamento de pesquisa para que pesquisadores, seja das ditas ciências naturais, ciências duras, seja das ciências sociais e humanas, possam considerar e estudar cuidadosamente essas fronteiras entre ciência e pseudociência.
[1] Thomas Samuel Kuhn (1922-1996): físico, historiador e filósofo da ciência estadunidense. Seu trabalho incidiu sobre história da ciência e filosofia da ciência, tornando-se um marco no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Em 1962, com a publicação de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn se tornou conhecido não mais como físico, mas como intelectual voltado para a história e a filosofia da ciência. A polêmica sobre sua obra gira em torno da noção de paradigma científico e da incomensurabilidade entre os paradigmas. (Nota do IHU)
[2] Karl Raimund Popper (1902-1994): filósofo e professor austro-britânico. Amplamente considerado um dos maiores filósofos da ciência do século XX, Popper é conhecido por sua rejeição das visões indutivistas clássicas sobre o método científico em favor da falseabilidade, tendo cunhado a expressão “racionalismo crítico” para descrever a sua filosofia. Esta designação é significante e é um indício da sua rejeição do empirismo clássico e do observacionismo-indutivista da ciência que disso resulta. Um de seus livros mais conhecidos é A lógica da pesquisa científica. (Nota do IHU)
[3] Bruno Latour (1947-2022): antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês. Um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT), sua principal contribuição teórica – ao lado de outros autores como Michel Callon – foi o desenvolvimento da teoria ator-rede que, ao analisar a atividade científica, considera tanto os atores humanos como os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao princípio de simetria generalizada. Latour foi doutor em filosofia e professor do Institut d’Etudes Politiques de Paris (Sciences Po), professor da École Nationale Supérieure des Mines de Paris (Mines ParisTech) e da Universidade da Califórnia em San Diego. Em setembro de 2007, Bruno Latour tornou-se diretor científico e vice-diretor da Sciences Po. Atuou também como professor visitante da London School of Economics e da Universidade Harvard.
[4] Isabelle Stengers (1949): filósofa e historiadora belga, notável por sua contribuição à filosofia da ciência. Formada em química na Universidade Livre de Bruxelas, é autora de livros sobre teoria do caos, em parceria com o químico russo Ilya Prigogine. Seus mais recentes trabalhos referem-se à sua proposta de Cosmopolítica, um aspecto-chave ao qual Bruno Latour se refere como “composição progressiva de um mundo comum”, em que o não humano e o humano estão intimamente ligados. Stengers também tem se dedicado à revisitação e modulação pragmática da filosofia especulativa de Alfred North Whitehead. Seu livro Cosmopolitics ganhou o Prêmio Ludwik Fleck de 2013. (Nota do IHU)
[5] Philippe Pignarre (nascido em 1952): ensaísta, tradutor e editor francês. É formando em História. Está à frente da edição de uma série de ensaios em ciências humanas, psiquiatria e epistemologia. (Nota do IHU)
[6] Sandra G. Harding (1935): filósofa, professora e renomada pesquisadora estadunidense. Atua como professora emérita na Escola de Graduação em Educação e Estudos da Informação da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Os temas principais de suas pesquisas são: teoria feminista, pós-colonialidade, epistemologia, metodologia de pesquisa e filosofia e história da ciência. Doutorou-se pela Universidade de Nova York em 1973. (Nota do IHU)
[7] Didier Debaise: pesquisador permanente do Fonds National de la Recherche Scientifique (FNRS) e diretor do Centro de Filosofia da Universidade Livre de Bruxelas, onde leciona Filosofia Contemporânea. É um dos cofundadores, com Isabelle Stengers, do Groupe d’études Construtivistes (GECO). Suas principais áreas de pesquisa são formas contemporâneas de filosofia especulativa, teorias de eventos e ligações entre o pragmatismo americano e a filosofia contemporânea francesa. (Nota do IHU)
[8] William James (1842-1910): filósofo e psicólogo americano e o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nos Estados Unidos. James foi um dos principais pensadores do final do século XIX e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos enquanto outros o rotularam de “pai da psicologia americana”. Juntamente com Charles Sanders Peirce e John Dewey, James é considerado uma das principais figuras associadas à escola filosófica conhecida como pragmatismo. (Nota do IHU)
[9] Neuralink: sociedade comercial neurotecnológica americana estabelecida por Elon Musk e outros oito investidores, que estão desenvolvendo interfaces cérebro/computador implantáveis. (Nota do IHU)
[10] Elon Reeve Musk: empreendedor e empresário sul-africano-canadense, naturalizado americano. Fundador, diretor executivo e diretor técnico da SpaceX; CEO da Tesla, Inc.; vice-presidente da OpenAI, fundador e CEO da Neuralink; cofundador, presidente da SolarCity e proprietário do X. (Nota do IHU)
[11] Tobie Nathan: psicólogo, professor emérito de psicologia na Universidade de Paris-VIII e escritor francês. Representante da Etnopsiquiatria na França, Tobie Nathan publicou vários livros, entre eles L’influencie qui guérit, Psychanalyse paienne e Psychotérapies. (Nota do IHU)
[12] Vinciane Despret (1959): filósofa da ciência e psicóloga belga, professora associada da Universidade de Liège. Seus trabalhos são referência sobre relações multiespécies. Eles se realizam na interface entre as áreas da psicologia, etologia e filosofia da ciência, numa perspectiva que a leva a interessar-se pelas consequências políticas das nossas escolhas teóricas. No cerne de seu trabalho está a questão da relação entre observadores e observados durante a condução da pesquisa científica. (Nota do IHU)
[13] Naomi Oreskes: historiadora da ciência. Ela é professora de história da ciência na Universidade Harvard desde 2013. Desenvolve pesquisas em geofísica e questões ambientais, tais como o aquecimento global e a história da ciência. (Nota do IHU)
[14] Erik M. Conway: historiador do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA no Instituto de Tecnologia da Califórnia em Pasadena. É autor de vários livros. Fez doutorado pela Universidade de Minnesota em 1998, com uma dissertação sobre o desenvolvimento de auxílios para pouso de aeronaves. (Nota do IHU)