08 Julho 2017
"Saber manejar essa dialética nos permitiria mobilizar a força da autocrítica para compreender melhor a ambiguidade do que nossos valores são capazes de produzir. Posição que não deixa de ter uma atualidade sadia entre nós, já que nos lembra que a autocrítica não é sinal de demissão e fraqueza, mas o único traço real de força do espírito", escreve Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 07-07-2017.
O pensamento sociológico brasileiro conheceu, nas últimas décadas, um esforço sistemático de redimensionamento da crítica social. Na esteira de uma relação profícua e constante com a filosofia, ele procurou, em alguns dos seus melhores momentos, mostrar como não há crítica social àquilo que aparece aos sujeitos como experiência de injustiça que não seja fundamentada, em seu sentido mais decisivo, em uma crítica da razão.
Isso significa dizer que as experiências sociais de injustiça não devem ser apenas compreendidas como vinculadas a problemas de redistribuição de bens e de riquezas, de dominação do império da força e da tradição.
Elas devem ser analisadas como expressão e resultado do que entendemos por "razão". A razão não é apenas aquilo que nos permite fundamentar a crítica à injustiça. Ela é também o que produz aquilo que nos faz sofrer.
Saber manejar essa dialética nos permitiria mobilizar a força da autocrítica para compreender melhor a ambiguidade do que nossos valores são capazes de produzir. Posição que não deixa de ter uma atualidade sadia entre nós, já que nos lembra que a autocrítica não é sinal de demissão e fraqueza, mas o único traço real de força do espírito.
É com esse horizonte em vista que podemos abordar o novo livro de um dos nossos mais destacados sociólogos, Gabriel Cohn. "Weber, Frankfurt: Teoria e Pensamento Social 1" (Azougue, R$ 42,90, 272 págs.) é uma compilação de textos escritos nos últimos 15 anos cujo eixo central é, como diz seu autor, "como enfrentar, nas condições impostas pela constituição das sociedades em cada momento, os dilemas que se desenham para a ação".
Nele, encontramos ensaios sobre a autocrítica da razão na "Dialética do Esclarecimento", sobre os processos de racionalização e modernização segundo Max Weber, a noção de tempo na dialética, os modos de funcionamento da indústria cultura e a estrutura da ideologia e da identidade, além das tensões inerentes ao processo civilizatório.
O que deriva desse conjunto é, inicialmente, a compreensão de que tais dilemas para a ação não podem ser pensados de forma estratégica.
Antes, eles exigem compreender tais dilemas como expressão de uma razão que não é apenas modo de orientação do pensamento que visa a identificação do melhor argumento. Razão é, na verdade, a forma de vida que constitui expectativas de validade e legalidade de instituições e agentes sociais. Ou seja, como leitor atento de Weber, Gabriel Cohn nos mostra como "razão" é uma questão de modos de racionalização de esferas sociais de valores.
No entanto, como um processo que se dá no interior do tempo, a razão e seus "produtos" obedece a movimentos próprios que têm sua essência no tempo socialmente organizado. Movimentos que não são "mero deslocamento linear de A para B, mas tensão interna ao objeto pronto a se metamorfosear" e, em muitos casos, a voltar-se contra si mesmo. Seguir tais metamorfoses é algo que Gabriel Cohn faz com o auxílio de seus estudos precisos a respeito da Escola de Frankfurt, em especial de Theodor Adorno.
Isso permite, por exemplo, que ele analise as estruturas do preconceito (em sua figura do antissemitismo) e encontre nelas o sintoma de uma razão fascinada pelo seu princípio de identidade e de dominação dos objetos.
Uma razão incapaz de compreender que "esclarecimento" não significa exatamente iluminar seus objetos, mas se conformar a eles. Ou seja, não exatamente lançar luz sobre aquilo que precisaria do nosso olhar para encontrar seu lugar, mas compreender que as coisas não são apenas projeções especulares de quem as conhece.
Assim, fenômenos particulares, como o antissemitismo, recebem uma leitura sintomática por meio da qual revelam as tensões internas aos processos globais e nos preparam para compreender a real extensão de seus riscos.
Nessa articulação bem-sucedida entre crítica social e crítica da razão, delineia-se um modelo capaz de aliar reflexão especulativa e análise das condições concretas de nossa existência no interior da sociedades do capitalismo avançado. Movimento que nos lembra como "especulação" nunca foi sinônimo de reflexão vazia, mas do esforço mais decisivo do pensamento que não quer se deixar fascinar pela pretensa concretude do dado.
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A razão e suas sombras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU