23 Abril 2024
"Perante tal pragmática certeza, a Europa deveria em vez disso, preparar-se para um novo acordo global sobre a segurança e a paz em todo o continente que leve em conta a Rússia real: aquela que existe e não aquela que gostaríamos. A transformação da Rússia depende dos russos. O máximo que o Ocidente pode fazer é não favorecer a narrativa chauvinista do regime atual. A menos que se pense que os russos são irremediáveis como povo. Basta lembrar o que os europeus pensavam dos alemães ao longo de toda a primeira metade do século XX", escreve Mario Giro, cientista político italiano, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 19-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há um equívoco quando falamos de paz e de paz justa: é difícil alcançá-la por meio da guerra.
A guerra enquadra-se numa lógica binária: bem/mal, preto/branco, vitória/derrota, verdadeiro/falso.
Aceitar tal critério oferece à solução militar um espaço exagerado e obriga as partes a deteriorar-se moral e humanamente. O verdadeiro quebra-cabeça deveria ser: existe outra maneira para resolver a disputa além de lutar até a morte, sem outras perspectivas além da destruição mútua?
A guerra é um mecanismo perverso que empurra até mesmo aqueles que estão certos para onde não gostariam de ir, isto é, usar os mesmos meios que aqueles que estão errados. A guerra arrasta aqueles que estão certos para o território de quem cometeu a injustiça: na luta os dois se tornam semelhantes. Cada guerra prepara outra, aquela da vingança. Há quem diga: já que a culpada é a Rússia, vamos vencê-la (ou vamos reduzir bastante seu poder) para cortar o mal pela raiz. Caso contrário, conclui-se, certamente começará de novo.
Parece racional, mas se trata de um raciocínio ideológico e não político, muito menos histórico.
Identificar o mal num país e na sua própria existência associa regime e povo. Nesse caso beneficia o regime russo, que pode afirmar estar travando uma batalha existencial, unindo o próprio destino ao do próprio país. Defender uma derrota da Rússia é jogar o jogo da sua atual liderança, fomentando o nacionalismo grande-russo.
Historicamente, haveria muito a discutir sobre a teoria que “a Rússia é sempre o agressor da Europa", mas aqui interessa-nos uma exposição mais pragmática e imediatamente política: como fazer para parar a guerra e evitar que ela se repita ou se reproduza noutro local? Os nacionalismos mais virulentos baseiam-se numa narrativa vitimista com a qual a liderança convence o seu povo. A única saída dessa armadilha é aquela política que oferece mais soluções. Enquanto o conflito é binário, a política e a diplomacia permitem muito mais possibilidades, são mais fluidas, diríamos hoje. Racionalmente, não se pode pensar em eliminar a Rússia para viver em paz na Europa: para o bem e para o mal, a Rússia existe e devemos levá-la em conta sem nos deixarmos levar por ilusões ingênuas. A ideia de vencê-la dividindo-a em várias partes representa um pesadelo geopolítico sem a certeza de que resultará um mundo mais seguro, muito pelo contrário.
A Rússia não se dissolverá no ar.
Perante tal pragmática certeza, a Europa deveria em vez disso, preparar-se para um novo acordo global sobre a segurança e a paz em todo o continente que leve em conta a Rússia real: aquela que existe e não aquela que gostaríamos. A transformação da Rússia depende dos russos. O máximo que o Ocidente pode fazer é não favorecer a narrativa chauvinista do regime atual. A menos que se pense que os russos são irremediáveis como povo. Basta lembrar o que os europeus pensavam dos alemães ao longo de toda a primeira metade do século XX.
Depois a história deu uma virada graças a líderes visionários: temos de acreditar que isso também será possível com a Rússia. Qualquer raciocínio “punitivo” não é digno de uma verdadeira política e leva a resultados negativos (do tipo “tratado de Versalhes”) que produzem rancor e desejo de revanche. Certamente agora Moscou está se comportando de acordo com a lógica do pior nacionalismo: um império que se define como “ferido” e confrontado, quando na realidade está gerindo uma guerra colonial.
Conhecemos bem esse mecanismo manipulador porque foi utilizado diversas vezes na história. Mas reagir com argumentos do mesmo tipo, opondo nacionalismos igualmente virulentos, não leva à solução. O choque entre nacionalismos só leva ao desastre. É impressionante o quanto entre os políticos europeus esteja difundida uma amnésia sobre essa simples realidade histórica. A geração que viveu a Segunda Guerra Mundial na esperança de que fosse a última grande guerra e que não fossem mais construídos na Europa “inimigos existenciais”.
Hoje, porém, essa ideia volta à moda, por meio de uma reconstrução instrumental da história. A cultura do inimigo reaparece, levando a considerar o adversário como um inimigo absoluto, mortal, existencial justamente. Tal raciocínio é extremista, irracional, ilógico, não construtivo e, em última análise, suicida. Aqueles que não o compartilham acreditam que é melhor tentar negociar seriamente.
A experiência das guerras europeias do passado mostra que opor nacionalismo (ou imperialismo) a nacionalismo tem pouca serventia.
Além disso, depende muito de qual ponto se olha a história. No “Labirinto dos desgarrados” Amine Maalouf relativiza as paixões explicando que tudo deriva da latitude em que você se encontra: os estadunidenses são odiados na América Latina, assim como os russos na Europa oriental e os japoneses na Ásia. É melhor não cair na armadilha do ódio de retribuição: ódio como resposta ao ódio; ódio justificado por mais ódio.
É um mecanismo infinito que – numa emaranhada teia de vitimismos contrapostos – acaba sempre por confundir agressor e agredido.
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A guerra binária precisa ser dissolvida com a diplomacia queer. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU