Uma nova série com Yanis Varoufakis explica como as elites usaram a crise financeira para aterrorizar as populações da Europa até a submissão. Nesta entrevista, ele conta à Jacobin porque o movimento antiausteridade falhou e por que o centro político está convergindo com a extrema-direita no ocidente
"A dívida é para o capitalismo o que o inferno é para o cristianismo: incômoda, mas essencial.” Em uma nova série de documentários, Yanis Varoufakis explica como as elites usaram as próprias condições estruturais do capitalismo para aterrorizar as populações até a submissão, promovendo assim sua contrarrevolução. Para o ex-ministro das Finanças grego, a austeridade não foi uma resposta necessária à crise, mas um instrumento de “guerra de classes” usado para reestruturar as economias da Europa e para além dela.
A série de Raoul Martinez, In the Eye Of The Storm: The Political Odyssey of Yanis Varoufakis [ainda sem título oficial no Brasil; em tradução livre, No olho do furacão: a odisseia política de Yanis Varoufakis] relata a resistência contra esse processo — e as maneiras pelas quais os dogmas das instituições europeias colocaram a UE em sua atual guinada à direita. Em uma entrevista para a nova edição impressa da Jacobin em língua alemã, David Broder conversou com Varoufakis sobre seu tempo como ministro das Finanças, os motivos pelos quais as crises recentes beneficiaram principalmente a extrema-direita e o declínio da hegemonia ocidental em nível global.
A entrevista é de David Broder, publicada por Jacobin Brasil, 11-04-2024. A tradução é de Gustavo de Almeida Nogueira.
Yanis Varoufakis. (Foto: Reprodução | TED Talks)
No final de 2023, a revista The Economist nomeou a Grécia como a “economia do ano”. Nas eleições de junho, a Nova Democracia conquistou a maioria, em um resultado amplamente atribuído a sinais de crescimento econômico. O principal partido de oposição, o Syriza, segue em declínio. As coisas estão indo bem na Grécia?
A Economist tem todos os motivos para comemorar um milagre econômico. Se você é um homem de dinheiro ou um fundo abutre que compra empréstimos em meio a dificuldades, a Grécia é um El Dorado.
Atualmente, há 1,2 milhão de casas sendo retomadas, em um país de dez milhões de habitantes. Digamos que uma casa tenha sido comprada por US$ 250.000 antes da crise. Agora ela vale € 200.000. Ela tinha um empréstimo de €150.000, dos quais €50.000 foram pagos. O credor hipotecário não pode pagar os outros €100.000 por causa da crise, da perda de renda etc. Sendo assim, um fundo abutre registrado em Delaware, com uma conta bancária nas Ilhas Cayman, compra o empréstimo por €5.000. Mesmo que o vendam por apenas 100.000 euros, eles ganharam 95.000 euros em cima de 5.000 euros. Duvido que haja algum lugar onde se possa obter taxas de retorno mais altas. Isso está acontecendo em escala industrial.
O Estado grego está mais falido agora do que em 2010, quando se tornou falido. Hoje, a dívida nacional está mais alta, enquanto a renda nacional está mais baixa. Mas agora que uma série de governos tem sido bons meninos e meninas para a troika, a comunidade de credores internacionais decidiu proclamar que a Grécia não é mais insolvente. Por quê? Todo mundo sabe que o Estado grego está falido. Mas há também o Banco Central Europeu (BCE) piscando para todos que compraram a dívida grega: não se preocupe, nós a apoiaremos. Então, por que comprar a dívida alemã quando você pode comprar a dívida grega, que oferece rendimentos mais altos?
Se você tem capital para usar a fim de extrair os recursos das pessoas, a Grécia é o lugar certo para ir. Mas se você é grego e não pertence à oligarquia, você está em sérios apuros. Há treze anos sua renda real vem caindo. A rede de segurança social foi desmantelada, assim como todos os acordos de negociação coletiva. Depois veio a crise do custo de vida, que atingiu a classe trabalhadora grega e os menos favorecidos com mais força do que em qualquer outro lugar da Europa. A inflação é uma questão de classe: se você tem uma renda mais baixa, sua taxa de inflação é muito mais alta. Junte tudo isso e você terá essa marcante bifurcação: Grécia, o melhor lugar do mundo para um fundo abutre, e o pior se você não o for.
Certo, mas mesmo uma década atrás você previu os prováveis efeitos da austeridade. E essa percepção, bem como suas consequências, não parecem ter tido um reflexo positivo no reavivamento do movimento antiausteridade ou na formação de forças à esquerda do Syriza. O MeRA25 (partido grego fundado por Varoufakis em 2018) esteve no parlamento por quatro anos, mas não foi reeleito nas eleições do ano passado. Isso se deve apenas à desmoralização duradoura após a derrota em 2015? Ou há algo que vocês não estão conseguindo fazer para mobilizar apoio?
Com toda a franqueza: nós estivemos entre os grandes perdedores das eleições do ano passado. Por que isso aconteceu? Por que todos nós perdemos, tanto os que estavam no então governo do Syriza, que não se renderam à troika, quanto os que se renderam?
A melhor explicação me foi dada por um taxista. Levando-me do aeroporto para casa, ele me disse: “Sabe de uma coisa? Concordo com tudo o que você está dizendo. E gosto de você; mas não votei nem em você, nem no Syriza. Não te perdoarei por ter me dado esperança. Eu não costumava votar. Só fui às seções eleitorais duas vezes. Uma vez em janeiro de 2015 para votar em você. E depois novamente em julho de 2015, no referendo para dizer “não” aos credores. E o que aconteceu? Todos vocês desistiram, e voltamos ao mesmo atoleiro de antes. Não me importa se você era um dos mocinhos. Na eleição do ano passado, vocês vieram até mim com um programa completo que nunca poderão implementar porque estão lutando com 5%. Portanto, não vou votar novamente”.
Na esquerda, se tivermos sorte, podemos obter o apoio da maioria uma vez a cada cinquenta anos, durante a fase aguda de uma crise capitalista. Se desperdiçarmos a oportunidade, teremos de esperar mais outros cinquenta anos. Isso não significa que vamos parar de lutar. O MeRA25 continua fazendo tudo o que achamos que precisa ser feito porque, no final das contas, somos um pouco como surfistas: você não pode controlar quando a onda vem, mas é melhor estar pronto para pegá-la quando ela vier.
Mas será que o taxista estava certo ao pensar que a esperança inicial havia sido perdida? Sua série nos conta que o “não” de um pequeno país inspirou muitas pessoas internacionalmente. Mas a troika também queria demonstrar que você não poderia dizer “não” e tratou de esmagá-lo para não restar dúvidas. Se isso poderia ter sido uma história de “Davi e Golias”, qual foi a “catapulta” que você teve?
Nós sabíamos que eles tentariam nos esmagar. Em abril de 2013, quando morava no Texas, avisei os líderes do Syriza que o governo cipriota e o BCE eram um ensaio geral do que fariam com um futuro governo do Syriza ou do Podemos. Eles estavam flexionando seus músculos com o pequeno Chipre para ensaiar o fechamento dos bancos e forçar uma capitulação. Alexis Tsipras entendeu o que estava acontecendo e me perguntou: “OK, então o que faremos?”
Trabalhei por seis meses na elaboração de um plano de ação. Apresentei-o à equipe e eles o aprovaram. Pouco antes da eleição de janeiro de 2015, Tsipras me ofereceu o Ministério das Finanças para implementá-lo. Infelizmente, esse plano de ação não pode ser julgado, porque eles não me deixaram implementá-lo. Estou convencido de que, se o tivéssemos seguido, a troika não teria sido capaz de nos esmagar.
No ministério que herdei, eu tinha títulos no valor de 50 bilhões de euros na legislação grega, os quais eu poderia reestruturar com apenas uma assinatura. Não precisei nem passar pelo Parlamento. E estava na lei grega. Eles não podiam me levar para Nova York como costumavam levar a Argentina e assim por diante. Essa era a nossa arma nuclear — porque se eu tivesse cortado esses títulos, o BCE não teria permissão (pelo tribunal constitucional da Alemanha) para salvar o Estado italiano comprando seus títulos. Mario Draghi estava muito preocupado com essa nossa arma, como ele me disse em nossa primeira reunião. Mas logo depois disso, meu próprio governo sinalizou para ele pelas minhas costas: “Não se preocupe. Não deixaremos Varoufakis fazer isso”. Foi como enviar Davi contra Golias sem a catapulta.
Mas por que Tsipras se recusou a permitir que você o usasse?
É evidente que ele já havia chegado a um acordo com Angela Merkel para assinar o memorando de rendição. O que não está claro é quando ele decidiu se render: antes de sermos eleitos ou depois? Acho que nunca saberei.
O que eu sei é que aqueles que após o incidente afirmaram que sempre seríamos derrotados estão profundamente errados. Não estou dizendo que teríamos vencido com absoluta certeza. Mas tínhamos uma boa chance — supondo que tivéssemos usado nossas armas. Na minha opinião, se eles tivessem nos esmagado, teria custado mais de 1 trilhão de euros. Isso é muito dinheiro para uma união monetária que não tem uma união fiscal para sustentar seus gastos. Não acho que Merkel teria se atrevido. Acho que teríamos tido uma chance, e então o Podemos teria tido uma chance, e então nossos camaradas italianos teriam tido uma chance e assim por diante…Portanto, a Grécia era a peça fundamental, e quando Tsipras nos vendeu, ele também estava vendendo toda a esquerda europeia.
No passado, você já expôs uma argumentação inteligente sobre porque o Grexit não era apenas desnecessário, mas também uma má ideia. Você disse que acabaria com uma economia autárquica e que — ao contrário, por exemplo, da Argentina, que desvinculou o peso do dólar — levaria meses para preparar o retorno ao dracma, indicando efetivamente um aviso prévio de uma enorme desvalorização. Antes das eleições do ano passado, você propôs um sistema de pagamentos eletrônicos apoiado pelo Estado. Mas os credores também não teriam garantido o fracasso do Grexit?
Hipóteses e cenários alternativos são sempre difíceis de se explorar. Meu argumento era simples: capitular tornaria a Grécia inviável — como ela está agora. Lutar contra isso nos deu uma chance de sair de um ciclo de condenação. O sistema de pagamentos digitais seria de ajuda em qualquer um dos cenários. O quanto exatamente ele ajudaria, ninguém saberia prever. Mas ajudaria, quer estejamos na zona do euro ou depois de voltarmos ao dracma. Mesmo que houvesse uma possibilidade de 5% de que pudéssemos evitar a austeridade e a privatização adicionais dentro do euro, por que não tentar? Ainda estou convencido de que poderíamos ter feito isso — e que, portanto, a resistência era a estratégia ideal.
Hoje temos menos opções. Um dos motivos são os empréstimos inadimplentes (NPLs), hipotecas, reintegrações de posse, etc., conforme mencionei anteriormente. Em 2015, tínhamos empréstimos inadimplentes, mas desde então, com o governo do Syriza criando a base para isso, eles desenvolveram um mercado secundário para NPLs. Essa é uma fonte gigantesca de renda para os fundos abutres. A reestruturação dos bancos gregos baseia-se em novos derivativos que contêm esses NPLs como uma forma de capital.
Portanto, agora não temos a opção nuclear que tínhamos em 2015, e a troika tem um incentivo maior para não permitir que paremos com as reintegrações de posse de casas. Se chegássemos perto do governo novamente, não tenho dúvidas de que eles tentariam nos esmagar com o dobro da energia de 2015. Precisaríamos de uma nova opção nuclear: uma alternativa ao euro. O mecanismo de pagamento eletrônico que você mencionou tem um uso duplo: ajudar a criar liquidez dentro do euro e dar o primeiro passo — se necessário — em direção ao dracma.
Esse é, obviamente, um dos principais motivos para propô-lo — se nossos bancos forem fechados, os pagamentos poderão ser transferidos para esse sistema — que pode, com bastante facilidade, evoluir para a nova moeda nacional. Em 2019 e depois em 2023, o MeRA25 comunicou esse plano A, B e C ao público de forma transparente, para que eles soubessem no que estavam votando. Infelizmente, ao contrário de 2019, quando os eleitores nos deram nove cadeiras, em 2023, eles nos mantiveram fora do Parlamento e votaram em novos partidos fascistas.
De olho nas eleições da UE, parece que os partidos de extrema-direita estão mobilizando as pessoas contra o establishment, mas também, e cada vez mais, se unindo a ele. No filme, você diz que os liberais precisam desses bichos-papões da extrema-direita apenas para conseguir mobilizar as pessoas contra alguma coisa. Mas se a oposição deles é tão farsesca, então como explicar tanto sucesso?
Tudo o que precisamos fazer é olhar para as décadas de 1920 e 1930. Depois de seu 2008, que obviamente ocorreu em 1929, os fascistas e os nazistas conseguiram aproveitar o descontentamento — até mesmo pegando emprestado ou roubando as críticas da esquerda aos banqueiros e assim por diante, enquanto direcionavam a raiva do povo para o “outro”, para o judeu. E quando chegaram ao poder, os fascistas se tornaram os agentes do poder industrial e financeiro, do capital.
É sempre a mesma história. Pense em (Donald) Trump: ele disse aos trabalhadores de colarinho azul do Meio-Oeste que iria se livrar do Goldman Sachs e de Wall Street em Washington. E qual foi a primeira coisa que ele fez? Pegou o CEO do Goldman Sachs e o nomeou chefe do Tesouro dos EUA.
É um erro pensar que a internacional nacionalista ou fascista está entrando em conflito com um centro radical. Devemos pensar neles como lados diferentes da mesma moeda. Eles são simbióticos. (Emmanuel) Macron nunca teria se tornado presidente se (Marine) Le Pen não ameaçasse o sistema. E Le Pen nunca teria chances para a presidência se não houvesse pessoas como Macron introduzindo a austeridade que causa o descontentamento e que por sua vez alimenta sua ascensão.
O 0,1% do topo, os escalões superiores da classe dominante, exigem que os governos aprovem reduções de impostos para eles e lhes transfiram enormes quantidades de renda. Mas eles sabem que essa legislação é extremamente impopular. Portanto, os populistas de direita da UE incitam o ódio contra “o sistema”, o judeu, o muçulmano, o outro, o estrangeiro, o migrante, o refugiado — para ganhar poder. Uma vez no poder, eles promulgam essa legislação em nome do 0,1% do topo.
Bernie Sanders costuma dizer que o governo Biden precisa fazer mais pelos Estados Unidos da classe trabalhadora para responder ao desespero do qual Trump se alimenta. O que você acha que ele pode fazer para impedir a vitória de Trump?
Não há nada que o governo Biden possa fazer. Em primeiro lugar, ele não tem os números. Em segundo lugar, não tem tempo antes da próxima eleição, já em novembro. Em terceiro lugar, ele não tem essa pretensão. O governo Biden foi vendido para Wall Street, para as grandes empresas de tecnologia e para os poderosos antes mesmo de ser formado.
Bernie Sanders e eu fundamos a Internacional Progressista (Progressive International) juntos em Vermont. No entanto, estou em desacordo com ele — enquanto um camarada e um amigo — desde 2016. Depois das primárias, quando a indicação foi roubada dele e entregue a Hillary Clinton, Bernie tinha novecentos mil voluntários maravilhosos em todo o país, prontos para se tornar a terceira força na política dos EUA. Achei que ele deveria ter fundado um novo partido. Em vez disso, ele deixou que esses jovens ativistas evanescessem — e depois os decepcionou completamente, quatro anos depois, quando ficou do lado de (Joe) Biden.
Não sou uma pessoa que se volta contra os companheiros. Podemos ter discordâncias legítimas. Entendo que, especialmente devido à sua idade, Bernie queria fazer a diferença. Não apenas se manifestando nas ruas, mas também dentro dos corredores do poder. Ele teve um impacto positivo em algumas das políticas iniciais do governo Biden durante a pandemia. Algumas pessoas puderam comer porque Bernie Sanders lutou por elas no governo Biden. Mas isso não durou muito.
Agora, todo o movimento progressista e o DSA (Democratic Socialists of America) foram deixados de lado, especialmente com o que está acontecendo em Israel/Palestina e na Ucrânia. O dinamismo da revolução política que Bernie iniciou em 2016 se dissipou. Temo que a nova onda que Bernie energizou não sobreviverá em um Partido Democrata que, como o Labour na Grã-Bretanha, é extremamente eficiente em destruir toda a energia progressista dentro de si.
No âmbito internacional: o caso da África do Sul na Corte Internacional de Justiça ofereceu uma acusação contundente das ações de Israel, mas pode acabar expondo o vazio da lei internacional. Gostaria de saber sua opinião sobre como os países europeus reagiram à guerra e que efeito isso tem sobre como as pessoas de fora da Europa veem a UE e a “comunidade internacional”.
Eles reagiram de forma vergonhosa. A UE e quase todos os governos entrarão para a história como cúmplices do genocídio dos palestinos. Não se trata apenas de cumplicidade, mas de um modo de comportamento que está transformando nossos primeiros-ministros e presidentes em possíveis réus no Tribunal Penal Internacional (TPI). Quando Ursula von der Leyen — sem autoridade alguma — foi a Israel para aplaudir as IDF (Forças de Defesa de Israel), ela passou a merecer não apenas a condenação por futuros historiadores, mas também ser processada pelo ICC.
Nas últimas duas décadas, em vez de se tornar menos reacionária, a Europa se tornou criminosa. Certa vez, o presidente francês Jacques Chirac, durante uma visita ao território palestino ocupado, confrontou os gendarmes israelenses e a IDF. Não consigo imaginar Macron fazendo isso. Willy Brandt falou com entusiasmo sobre o direito dos palestinos ao seu próprio Estado. Hoje, Olaf Scholz preside um regime que está prendendo nossos companheiros judeus em Berlim pelo crime de carregar um cartaz dizendo “Como israelense e judeu, digo: pare o genocídio em Gaza”. É inconcebível!
As guerras atuais e a expansão dos BRICS parecem apontar para um colapso da ordem liderada pelo Ocidente. Você acha que isso é uma mudança no equilíbrio de poder em uma ordem internacional reformulada ou algo mais parecido com um endurecimento dos blocos comerciais regionais?
Nunca tivemos uma “ordem internacional” e nunca houve um “estado de direito internacional”. Por onde começamos? Iraque, Afeganistão, Vietnã…antes mesmo?
Minha preocupação é que estamos dando muita — mas também pouca — ênfase aos BRICS. Seria um grande erro para os progressistas fazer o que costumavam fazer com a URSS, ou seja, imaginar que, independentemente de seus aspectos autoritários, ao menos constitui-se como o contrapeso dos Estados Unidos. Que não pensemos nos BRICS dessa forma.
Narendra Modi, da Índia, é um fascista. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que estão se aproximando dos BRICS, têm uma moeda atrelada ao dólar americano. Com os BRICS, eles estão criando um plano B para si mesmos, não para os despossuídos do mundo. A parte mais interessante dos BRICS é a China. Ela contém as forças mais progressistas e as mais autoritárias do planeta. Uma enorme luta de classes está ocorrendo nesse momento.
Em meu recente livro, intitulado Technofeudalism (lançado em 2023, ainda sem tradução para o português), apresento uma análise da nova Guerra Fria entre os EUA e a China. A essência dos novos desenvolvimentos está no que chamo de “capital em nuvem”. Esse é um tipo de capital que é algorítmico, baseado na Internet, na Big Tech. Não é como um robô que fabrica carros ou um motor a vapor: o capital que vive em seu laptop ou celular é um meio produzido de modificação comportamental, que concede a seus proprietários um enorme poder de extrair rendas de trabalhadores, capitalistas e usuários.
Esse mesmo capital em nuvem é a base para um novo tipo de sistema de pagamento. E há apenas dois conjuntos de capital em nuvem. Um pode ser encontrado nos EUA e o outro na China. Ninguém mais tem capital em nuvem sobre o qual valha a pena falar. Se minha hipótese se confirmar, estamos vendo uma enorme rivalidade entre esses dois mega feudos de nuvem. E o que realmente preocupa os Estados Unidos é o seguinte: a única razão pela qual os Estados Unidos têm sido hegemônicos desde o final dos anos 60 e início dos anos 70, depois que perderam seu superávit comercial com o resto do mundo, é o privilégio exorbitante do dólar. O sistema de pagamento é em dólares, o que significa que os EUA não enfrentam nenhuma restrição comercial ou orçamentária. Embora tenham um enorme déficit em conta corrente, eles continuam a comprar coisas do resto do mundo porque pagam em dólares que imprimem — dólares que são reciclados de volta para Wall Street e para a dívida do governo americano, uma vez que os capitalistas de todo o mundo enviam seus dólares de volta aos EUA para comprar dívidas, ações e propriedades do governo americano.
O sistema de pagamento em dólar não foi desafiado até o momento. Mas a combinação do capital em nuvem chinês e das finanças chinesas, que são separadas das finanças dos EUA, pode se tornar um sistema de pagamento digital internacional, alternativo ao dólar. É por isso que a Arábia Saudita está interessada na China e nos BRICS: eles querem ter acesso a esse sistema de pagamento alternativo, porque já viram o que acontece quando se entra em conflito com Washington. Você pode ter US$ 300 bilhões confiscados, que foi o que aconteceu com a Rússia depois que invadiu a Ucrânia. Essa é a razão pela qual temos uma nova Guerra Fria: porque eles estão tentando anular a capacidade do capital em nuvem chinês de antagonizar o sistema de pagamento em dólar.