A tormenta que ameaça a Europa pós-Merkel

Foto: European People's Party | Flickr CC

17 Setembro 2021

 

"Esgarçado por desigualdade, cortes sociais, financeirização e xenofobia, continente viu seu elã desfazer-se. Habilidade camaleônica da chanceler alemã mascarou tensões e evitou, por anos, que explodissem. O que virá agora, quando ela se vai?", questiona Wolfgang Streeck, diretor do Instituto Max Planck para Pesquisa Social em Colônia e professor de sociologia na Universidade de Colônia, em artigo publicado por El Salto Diário. A tradução é de Vitor Costa, publicada por Outras Palavras, 15-09-2021.

 

Eis o artigo.

 

É verão, Bruxelas finge estar de férias, mas ninguém acredita: as nuvens estão escurecendo, não há solução mágica à vista, e os nervos de todos estão à flor da pele. As florestas queimam, chove, os rios trazem enchentes: a “crise climática” atinge cada vez mais nossos lares de forma inexorável. Dos 750 bilhões de euros do Fundo de “Recuperação” do Coronavirus [Coronavirus Recovery Fund], nem um único euro foi gasto, e agora a “quarta onda” da pandemia começa a ganhar força. É hora de um pacote de estímulo fiscal suplementar mais agressivo, mas como pagá-lo?

 

A guerra francesa na África continua; os Estados falidos da Líbia, Síria, Iraque e Líbano continuam se desmanchando; As demandas alemãs por um direito europeu de asilo, capaz de proteger a Alemanha da obrigação de adaptar seu comportamento à sua retórica, dividem [a UE] como sempre; a mudança de regime na Rússia deve demorar, porque Putin não renunciará, e a situação do Afeganistão agora está contribuindo para esse cenário. O bom ‘tio Joe’ se transformou no malvado ‘tio Joe’, deixando toda a Europa em estado de choque: há unilateralismo nos EUA!

 

Na Alemanha e no Reino Unido, os governos estão tentando desesperadamente não ter que explicar por que, além de apenas seguirem ordens americanas, eles travaram uma guerra insensata por duas décadas em um país remoto e ingovernável. E no meio dessa profusão de desastres, Angela Merkel, a não-eleita, mas de fato super-presidente da União Europeia, e que supostamente a manteve unida, está finalmente deixando para sempre, muito em breve, seu posto como chanceler alemã.

 

Será que a “Europa”, o “projeto europeu” tal como se materializou na União Europeia, vai sobreviver a Merkel? Na realpolitik de Bruxelas, isso significa que a Alemanha continuaria a cumprir suas obrigações como potência hegemônica oculta da União Europeia – ou seja, fundamentalmente continuará financiando, o que pode fazer de diferentes maneiras, muitas delas obscuras, para dizer o mínimo. Por exemplo: permitindo que as suas contribuições líquidas para o orçamento da União Europeia aumentem; exigindo que o Banco Central Europeu se comprometa confidencialmente com o financiamento dos Estados em violação das disposições dos tratados; mostrando sua concordância com os 750 bilhões de euros destinados ao “Fundo de Recuperação do Coronavírus” [Coronavirus Recovery Fund] da União Europeia, também localizado fora dos tratados; permitindo que a dívida seja paga no futuro através da emissão de mais dívida; permitindo que estes 750 bilhões de euros, anunciados como medida de emergência pontual, tornem-se um “ponto de virada histórico” para a criação, à francesa, de uma “capacidade fiscal supranacional”, enquanto se comunica discretamente com os mercados, para que mantenham as taxas de juro baixas, e, se acontecer o pior, a Alemanha estaria pronta para ajudar/sustentar a “solidariedade europeia”.

 

A “Europa” poderá continuar a contar com uma Alemanha envolvida com eleições iminentes e cujo desfecho é mais incerto do que nunca? No final de agosto, parecia que o próximo governo alemão, o primeiro depois de tanto tempo de Merkel, seria formado por uma coalizão de três membros formada por esses quatro partidos, a CDU/CSU (democratas-cristãos), o SPD (social-democratas), os Verdes e o FDP (Liberais). A Alternative für Deutschland (AfD, de ultradireita) estaria excluída do arco constitucional, e a Esquerda [“die Linke“] luta para superar a cláusula de barreira de 5% dos votos. Ambos os partidos estão, em todo caso, profundamente divididos internamente.

 

Qual dos três Kanzlerkandidaten [candidatos a chanceler] acabará sendo eleito ninguém pode prever, mas o “peso leve Armin Laschet (CDU/CSU) e o “sólido” Olaf Scholz (social-democrata) têm mais chances do que a fulgurante candidata dos verdes, Annalena Baerbock. Quem quer que seja, terá apenas um quarto dos votos após sua nomeação no novo governo tripartite pelas urnas, o que incluirá pelo menos dois partidos conformados na ortodoxia política da República Federal. Em qual sistema político o centrismo poderia estar mais enraizado?

 

As nações, organizadas em Estados, desenvolvem ideias sobre seus interesses nacionais que refletem, entre outras coisas, sua localização geográfica e sua capacidade coletiva. Incrustados no senso político comum de um país e evidenciados por suas classes políticas, os interesses nacionais mudam sempre muito lentamente. É assim também na Alemanha atual, embora ali a ideia de interesse nacional seja considerada estranha, o que exige que seja mimetizada como um interesse geral europeu ou, mesmo, como um interesse humano. No seu cerne está a preservação da União Europeia e, em particular, da União Monetária Europeia que se tornou, por um feliz acaso, a fonte da prosperidade nacional alemã.

 

Mesmo um interesse tão ideal e materialmente estabelecido como o “pró-europeísmo” alemão pode, no entanto, ficar sob pressão quando as circunstâncias mudam e se aconselham esforços contínuos para manter vivo o consenso pró-União Europeia. Por exemplo, dos quatro partidos que podem formar a combinação que constituirá o próximo governo alemão, dois, a CDU/CSU e o FDP, terão que estar atentos ao seu novo concorrente da direita, AfD, que oferece um conceito “nacionalista” diferente do que é bom para o povo alemão. Embora essa ameaça não transforme esses partidos em “antieuropeus”, isso poderia forçá-los a ser menos condescendentes com os apelos futuros de Bruxelas para que a Alemanha pratique um “europeísmo” mais monetário.

 

Por exemplo, há algum tempo a Comissão Europeia evita publicar informações sobre as contribuições líquidas dos Estados-membros para o orçamento da União Europeia, a fim de não acordar os sonolentos cães alemães. Isso não impediu o Frankfurter Allgemeine Zeitung de realizar seus próprios cálculos usando dados disponíveis publicamente. De acordo com a informação publicada em 6 de agosto pelo jornal, em 2020 a Alemanha pagou 15,5 bilhões de euros a mais a Bruxelas do que obteve em troca, a partir de uma contribuição líquida de 26 bilhões de euros, equivalentes a 1,74% do gasto público alemão.

 

A Alemanha foi seguida pela Grã-Bretanha (com uma contribuição líquida de 10,2 bilhões de euros), pela França (8,4 bilhões) e, entre os demais países, pela Itália (4,8 bilhões). Ainda não há informações oficiais disponíveis para 2021, mas em junho de 2020 a Comissão estimou que este ano a contribuição alemã aumentaria em mais de 40%, o que representaria um aumento de 13 bilhões de euros no pagamento bruto anterior feito pela Alemanha. Em parte, isso parece refletir a promessa da época do Brexit, feita pelo rígido ministro das Finanças alemão, Scholz, de compensar a maior parte, senão todas, as deficiências no orçamento da União Europeia surgidas com a saída britânica.

 

À primeira vista, o que a Alemanha paga à União Europeia é apenas uma pequena fração de seus gastos federais totais. Como outros países, no entanto, os orçamentos gerais alemães deixam muito pouco espaço para gastos discricionários, talvez tão pouco quanto 5% do gasto total. Dessa forma, qualquer aumento nas contribuições para a União Europeia é, por definição, doloroso. Isso poderia transformar a questão em um problema político, pois dois dos principais beneficiários das finanças da União Europeia são duas ovelhas negras, a Polônia e a Hungria, que em 2020 tiveram uma receita líquida total de 13,2 e 4,8 bilhões de euros, respectivamente. (Em segundo lugar, acima da Hungria, estava a pequena Grécia, recebendo 5,7 bilhões de euros, o que é obviamente um bônus por ter assinado o Memorando de Entendimento de 2015 e ter substituído adequadamente o governo de esquerda do Syriza pelo atual governo “pró-europeu”, leia-se pró-capitalista).

 

Uma vez que os cidadãos alemães gostam de ver a União Europeia como uma iniciativa educativa, ao invés de econômica ou geoestratégica, criada para ensinar aos europeus orientais os novos valores alemães da democracia, marcada por uma forte diversidade, os Estados-membros conservadores e autoritários da Europa Oriental podem deslegitimar este apoio que lhes é dado, especialmente nesses tempos de penúria fiscal, e isso pode realmente lançar uma sombra sobre o projeto de uma “união cada vez mais estreita”.

 

Neste contexto, os processos de infração que a Comissão Europeia iniciou contra estes dois países, a pedido dos seus partidos de oposição liberal e dos seus aliados no Parlamento Europeu, podem ser úteis na medida em que envolvem uma ameaça de redução dos subsídios, a menos que eles cumpram os acordos de forma adequada, realizando cortes fiscais, que economizam o dinheiro dos econômicos alemães, num método educacional atraente para eles. Não nos esqueçamos também dos processos de infração iniciados simultaneamente contra a Alemanha por não controlar a insistência de seu Tribunal Constitucional sobre a obrigação do governo alemão de impedir que instituições europeias como o Banco Central Europeu reduzam a soberania alemã além do estipulado no tratados. Este procedimento foi exigido por membros dos Verdes alemães no Parlamento Europeu e poderia muito bem ter sido ativado com a conivência secreta do governo federal alemão.

 

Todo esse cuidado é realmente necessário? Como Yannis Varoufakis disse: “Tudo o que a Alemanha diz ou faz no final sempre prevalece” (não para todos, na verdade). Isso foi afirmado em 2015 e, embora o espírito ainda possa estar predisposto, a carne, entretanto, enfraqueceu, e a vontade é uma coisa; a capacidade é outra. Devido ao coronavírus, a dívida nacional alemã aumentou em 2020 de 60 para 70% do PIB, com a probabilidade de que durante 2021 aumente a uma taxa semelhante até atingir o limiar de 80%. Não há razão para crer que o próximo governo alemão, independentemente de sua composição, será capaz ou realmente desejará abolir o chamado “freio à dívida”, que, introduzido na Constituição em 2009, estipula que as políticas fiscais implementadas ao longo do nos próximos anos terão que observar limites estritos para incorrer em novos endividamentos (novas ondas de coronavírus causadas por variantes mutantes ou por variantes totalmente novas do SARS-Covid-19 podem acontecer, o que justificaria mais gastos de emergência).

 

Por outro lado, ainda antes do impacto do coronavírus da pandemia, a infraestrutura pública alemã – estradas, pontes, sistema ferroviário – experimentou uma rápida deterioração nas últimas duas décadas, certamente devido à “austeridade” que a Alemanha impôs a si mesma com a intenção de ensinar aos restantes Estados-Membros da União Europeia que a poupança deve preceder a despesa. Agora, o coronavírus também expôs as deficiências dos equipamentos de saúde, asilos, escolas e universidades, cuja atualização será cara.

 

E isso não é tudo. A “virada energética” de Merkel exigirá, de acordo com estimativas atuais, 44 bilhões de euros em compensação para regiões produtoras de carvão e produtoras de energia elétrica a partir de agora até 2038, um montante que provavelmente será aumentado se o próximo governo decidir, como os Verdes exigem, abandonar o carvão mais cedo.

 

Por outro lado, a reparação dos danos causados ​​pelas cheias de 2021 exigirá a dotação de um “fundo de reconstrução” de 30 bilhões de euros para serem gastos nos próximos anos. Acrescentemos a tudo isso que as enchentes podem ter posto fim aos dias felizes em que as políticas relacionadas ao clima podiam consistir em conversas banais sobre compromissos continuamente adiados, colocados em datas cada vez mais irrealistas, para acabar com as emissões de CO². O que agora parece necessário é, mais do que um simbolismo de baixo custo, um investimento caro em barragens e diques, em florestas menos propícias a queimadas, em ar condicionado para hospitais e asilos, em corredores de ar puro para cidades, etc, etc, etc.

 

Além de tudo isto, esta nova dívida alemã terá de ser paga enquanto a nova dívida da União Europeia (o ‘Fundo da UE da Próxima Geração’) pode ser realmente uma gota no oceano, se Bruxelas e os Estados-membros do Mediterrâneo exigirem outra onda de endividamento semelhante a esta última, o que deveria ser garantido por promessas alemãs de exercer suas funções de devedor em última instância, se necessário. E não esqueçamos que todos os partidos políticos “respeitáveis” prometeram que o governo alemão aumentará o seu orçamento de defesa para 2% do PIB, o que representa um aumento de, pelo menos, um terço dele, um investimento importante tanto para os Estados Unidos – para que a Alemanha possa assustar a Rússia em nome da potência americana – como para a França – para que Berlim possa contribuir com suas guerras no Sahel.

 

Como parte de tudo isso, ou como a cereja do bolo, a Alemanha terá que honrar com a França a promessa de construir um sistema de aviões de caça franco-alemão, o FCAS, que segundo estimativas realistas custaria aproximadamente 300 bilhões de euros ao longo dos próximos dez anos. O projeto tem a oposição dos militares alemães pois, para eles, trata-se simplesmente de atualizar, com dinheiro alemão, o sistema francês “Rafale” existente, que é de difícil exportação. Há uma competição exacerbada, portanto, pelos limitados recursos discricionários presentes no orçamento alemão. Os contribuintes assumirão tudo isso?

 

Talvez essa questão esteja mal colocada, uma vez que o problema não é mais sobre como pagar o que seria necessário e agora consiste em saber o que fazer se o que é necessário se tornou muito caro para ser pago. Como uma primeira hipótese, consideremos a possibilidade de que os custos coletivos de funcionamento do capitalismo podem ter excedido o que as sociedades podem extrair dele para cobri-los: pagar pela paz social, pela formação de trabalhadores pacientes e de consumidores satisfeitos. Pagar pela preparação da produção geradora de mais-valia e pela redução de seus danos, pagar pela extensão e defesa do mercado e dos direitos de propriedade em países distantes, etc, etc, etc.

 

O resultado seria – como já começa a parecer – uma grande “crise fiscal do Estado”, como se evidencia pelo contínuo aumento da dívida pública e sua persistência e irreversibilidade nas últimas décadas. Esse aumento foi impulsionado por Estados financeiramente pressionados, que permitem ao setor financeiro criar quantias infinitas de moeda fiduciária com o lançamento constante de “produtos” financeiros atraentes. Ao se tornarem endividados com o sistema financeiro, os Estados podem, desde que tenham crédito, comprar um futuro para o capitalismo mediante a criação de títulos que dão acesso a fluxos de renda, contabilizados com prazos cada vez mais longos, beneficiando aqueles que têm dinheiro suficiente para emprestar. Esses títulos também são transferíveis para seus filhos e netos e são generosamente garantidos pelas obrigações assumidas pelas futuras gerações de quem não tem dinheiro, que terá que trabalhar duro para pagar o que se pode chamar de sua dívida coletiva com o capital.

 

Quando a dívida cresce mais rápido que o capitalismo, o governo das economias políticas capitalistas se converte em um jogo de confiança semelhante a um esquema de pirâmide. Seu slogan poderia ser as palavras ditas por Mario Draghi: “Acredite em mim, será o suficiente”, frase dita originalmente diante de um público no qual todos estavam interessados ​​em não perceber e certamente não dizer em voz alta que as roupas do Imperador já haviam sido penhoradas há muito tempo. Na União Europeia em particular, garantir o futuro do capitalismo através do “capital fictício’”(Cédric Durand) assume a forma de um jogo de sinais operando em dois níveis: os governos do centro da economia europeia enviam sinais aos governos da sua periferia de que possuem reservas, reais ou “de reputação”, que podem compartilhar; sinais que os governos da periferia transmitem aos seus eleitorados para manter vivas as esperanças do prolongamento da “solidariedade europeia” que, no entanto, exigirá em breve outra injeção de promessas vazias. Nem todos são habilidosos neste jogo e uma das razões pelas quais Angela Merkel se tornou uma figura tão importante na União Europeia-Europa pode muito bem residir na sua capacidade insuperável de prometer, de forma crível, o impossível. No seu frio desprezo pela consistência substantiva das políticas públicas, em sua espantosa capacidade de assumir compromissos incompatíveis e de fazer as pessoas acreditarem que, em algum momento posterior, elas conseguirão, de alguma forma, alcançar sua compatibilidade.

 

Claro, Merkel pediu a ajuda da classe política “pró-europeia”, que não teve alternativa a não ser colocar sua confiança na capacidade da ilusionista alemã de administrar o adiamento do dia da verdade, se não até o final dos tempos, pelo menos até ao final do seu mandato. Em algum lugar no fundo de suas mentes, no entanto, esses líderes “pró-europeus” podem ter alimentado a suspeita ou talvez a esperança de que os recursos necessários a serem fornecidos pela Alemanha realmente existam em algum lugar, nos cofres do Bundesbank talvez, e que através de negociação hábil e mais pressão político-moral eles podem finalmente ser obtidos. Mas, além disso, esta classe política “pró-europeia” parece realmente feliz em seu apoio à maneira de Merkel operar como uma artista virtuosa de todos os tipos de esquemas de pirâmide de desejo político, como uma difusora de um otimismo estudado, como uma especialista na emissão de confiança fiduciária, senhora do adiamento do pagamento da dívida e ao mesmo tempo campeã absoluta da disciplina orçamentária. É algo essencial em tempos de estresse fiscal e impostura política, que essas mesmas classes políticas “pró-europeias” devem aprender a dominar todos os dias, confrontados como estão, nas condições impostas pelo capitalismo global, com as respectivas crises de subfinanciamento de suas políticas públicas e de seus modelos de Estado.

 

Laschet, Scholz ou Baerbock, quem quer que seja o novo chanceler, será capaz de manter viva a magia de Merkel, quando a periferia europeia da Alemanha precisar de um novo adiamento de pagamentos, ou outra extensão de crédito barato; ou quando, por exemplo , as taxas de juros sobre sua dívida nacional subirem apesar de todos os esforços do Banco Central Europeu? No verão do descontentamento de 2021, esse cenário parece realmente duvidoso.

 

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