09 Abril 2024
"Não apenas palavras, há infinitos gestos de paz que colocam pequenas pedras de tropeço no curso imparável da guerra em todo o mundo, mas os gestos não coincidem com uma ação que possa mudar a história, não creio", escreve Maurizio Maggiani, romancista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 08-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gostaria de contar a vocês como começou a minha história de pacifista, começou com uma música.
No Festival de Sanremo de 1965 os New Christy Minstrels fizeram grande sucesso, conquistaram o primeiro lugar junto com Bobby Solo com a música Se pangi se ridi, e o segundo lugar com Wilma Goich cantando Le colline sono in fiore, duas músicas que a um jovem de quatorze anos não diriam nada, sentimentalismo demais, muita pieguice.
O líder dos New Christy Minstrels era Barry McGuire, que apenas um ano depois, aqueles eram tempos que passavam muito rápido, fez sucesso mundial com uma música nada romântica e, muito menos, sentimental, Eve of destruction, Véspera da destruição. Era uma música contra a guerra do Vietnã, contra o perigo atômico e a guerra em geral, o refrão era assim, but you tell me over and over and over again my friend, ah, you don't believe we're on the eve of destruction? A música também teve um cover italiano escrito por um menestrel militante, Pino Masi, e foi bastante usada nos coros durante os protestos de 1968-69 dos quais participei ativamente, e sendo um bom cantor, era eu quem puxava o coro. O refrão era traduzido assim, E então me diga o que mais você quer amigo para entender que voltou a hora do fuzil?
Numa dessas manifestações, já não me lembro o motivo do protesto, mas eram tantos e todos tão razoáveis que às vezes se confundiam, por puro e saudável narcisismo adolescente, me postei ao lado de um grupo de pessoas da resistência, eles também estavam na manifestação com seus lenços tricolores e bandeiras cobertas de estrelinhas douradas, a memória dos caídos de sua brigada, e afinal o refrão parecia adequado justamente para eles. Eles me deixaram cantar e depois, com um movimento elegante de pinça, me colocaram no meio, e falou aquele que me parecia ser o mais velho, tinha três medalhas presas na jaqueta, e me falou mais ou menos isso: Ah, você tem um fuzil, garoto? Você já viu um? Você já fez um disparo? Não? Nós, sim, todos nós, e você sabe por quê usávamos o fuzil? Para acabar de uma vez por todas com os fuzis, para que você nunca precisasse usá-lo, nem você nem ninguém no mundo. Nunca mais, entendeu garoto? Na sua opinião porque morreram esses nossos companheiros? Para que voltasse a hora do fuzil? Vá para casa e pense bem antes de cantar essas besteiras.
Não voltei para casa, mas pensei e pensei sobre isso, tive a oportunidade de pensar bastante ao longo dos anos furiosos que se seguiram, a música do fuzil sumiu na minha garganta quando apareceram realmente os fuzis nas ruas. Meu pacifismo surgiu tão lentamente quanto eu me tornava adulto, e isso se completou quando se completou à minha idade, tornei-me verdadeiramente homem e verdadeiramente pacifista, um pacifista prático muito mais que teórico, com a guerra da Bósnia.
Eu não sabia nada sobre a guerra; claro, histórias, leituras, televisão, mas tocar é outra coisa. A loucura, o horror, o sangue, as bombas, os fuzis, claro, também os fuzis, o desespero e a morte, a morte em todos os lugares, questão de morte, viver para matar, matar para não morrer, sem uma razão, sem uma solução, sem uma esperança de que algo vivo retorne antes da guerra. E a estupidez, a estupidez total e desumana, a irresponsabilidade daqueles que governam a guerra. Dos que pensam e se orgulham de ter as chaves, o poder de abrir e fechar aquela porta; e então a ideia realmente brilhante de confiar a paz com os acordos de Dayton às mãos daquele carrasco Milosevic, para meses depois, desencadear contra ele a primeira guerra na qual participou ativa e plenamente a República italiana. Alguém se lembrará dos passeios dos bons cidadãos equipados de espreguiçadeiras e guarda-sóis para presenciar a saída dos bombardeiros da base de Aviano, alguém vai lembrar que nenhuma bomba atingiu Milosevic, mas muitas os jovens da Universidade de Belgrado.
Foi então que compreendi plenamente o sentido e a razão do artigo 11 da Constituição de República italiana. Não, a paz imperecível não é um delírio etílico nem a bela esperança das almas nobres, não é a ilusão de ótica que nos alertam os míopes estados-maiores e os especialistas sabe-tudo. Os pais e mães fundadores desta República e das democráticas repúblicas da Europa nascidas das cinzas ainda ardentes da Segunda Guerra não estavam ébrios nem vítimas do misticismo quando escreveram suas constituições; estavam bem cientes do indizível que havia acontecido, marcados para sempre pelo sentimento de culpa por não terem sido capazes de evitá-lo, o seu pacifismo foi mais que um propósito, foi a consequência prática do acontecimento que se tornou um juramento posto preto no branco.
A sua vontade foi munir-se da arma que consideravam mais poderosa e eficaz, a única que poderia impor-se à ameaça definitiva da bomba atômica, a solução pacífica dos conflitos, a política, e da política a sua criatura mais sofisticada, a diplomacia. E essa arma a Europa jamais construiu. E o juramento é quebrado, renegado. Essa é a lição que levei para casa do horror da Bósnia, como agente da paz, fora de seu círculo de muros a Europa vale zero, vale os seus arrependimentos, as suas exortações, os seus desejos, zero. Lição mais viva do que nunca, visto que depois de trinta anos de missões de paz, bastante bem armadas, onde quer que no mundo se acreditasse ou se fosse levado a acreditar pelo parceiro de referência do Ocidente, para defender em nome de toda a humanidade os seus elevados valores e propô-los ou impô-los com todos os meios militares adequados à manutenção da paz, não só resulta que a Europa não é boa para a paz, mas também não é boa para a guerra que renega.
Vamos juntar os resultados das nossas missões militares e leremos um escandaloso calendário de crimes. Isso já estava claro para mim na obscura aurora do milênio, e por isso estava em Gênova com os meus colegas pacifistas da Europa por ocasião do G8, o único que malignamente passará para a história. Alguém se lembrará do New York Times da época: “As enormes manifestações contra as guerras ao redor do mundo nos lembram que ainda pode haver duas superpotências no planeta: os Estados Unidos e a opinião pública mundial."
Bem, naquela época a República declarou, honrosamente, sem nenhuma hipocrisia pelas formas, guerra ao pacifismo. E foi uma guerra verdadeira, a guerra dos Quatro Dias, guerra assimétrica porque as centenas de milhares de jovens estavam desarmados, assim como o eram as freiras, mesmo que mais idosas, e os escoteiros, mesmo que menores entre todos, exceto, naturalmente, os caras que vi com meus próprios olhos na Piazza Corvetto se blindarem de preto e se armarem com coquetéis molotov sob o olhar atento e cuidadoso de policiais uniformizados. E para a segunda potência mundial foi a aniquilação.
Dois anos depois, em Roma, éramos três milhões, cem milhões no mundo, e aquele foi seu funeral solene. Não creio que uma geração seja suficiente para absorver e resolver o trauma daquelas jornadas genovesas; aqueles jovens que agora são pais e mães estão transmitindo isso aos seus filhos, pedindo-lhes que sejam cautelosos, que se abstenham de riscos nas ruas e, no mais, o atual governo é bastante generoso em confirmar seus temores.
O fato é que desde então o movimento pacifista mundial foi pulverizado. O que resta é o seu pensamento, um pensamento sem corpo evidente, sem matéria para colocar em um dos dois pratos da balança da história. Não apenas palavras, há infinitos gestos de paz que colocam pequenas pedras de tropeço no curso imparável da guerra em todo o mundo, mas os gestos não coincidem com uma ação que possa mudar a história, não creio. Eu mesmo já não sei mais o que sou, se um homem de paz ou um homem derrotado, qual dos dois tem direito à cidadania nestes dias em que sou chamado pela razão prática para existir e para dar sinal disso. Enquanto isso, a história começou a avançar novamente, a correr loucamente para trás.
Hoje, o Estado-Maior da OTAN e o corolário dos serviços secretos nos dizem - singularmente falantes, visto que, por sua própria natureza, deveriam ficar em silêncio - que o inimigo não está às portas, já as ultrapassou, está aqui e é guerra. E ele não é mais o bom inimigo do passado, o inimigo leal que nunca quebrou os excelentes acordos de Yalta e por isso lealmente retribuído. Agora o inimigo é um monstro de loucura, incognoscível e intratável, capaz ultrapassar todos os limites. Portanto, nenhum acordo é possível, nenhuma transação, nenhuma política, nenhuma diplomacia. Sinceramente não sei, talvez seja justamente assim, e se for assim, então cabe aos estados maiores a que, nós, a Europa, confiamos a política externa, toda a política em tempos de guerra.
Seria bom se fôssemos informados formalmente dessa eventualidade em vez de ter que ser por dedução, seria um belo gesto de democracia avançada. Mas, pelo menos neste momento, somos obrigados a deduzir; e então olho e considero o recorte que fiz da fotografia, tão direta, tão dramática, tão "linda", do Presidente Macron que, cheio de adrenalina e suor, luta boxe contra não se sabe quem, e quero esperar que seja apenas um infeliz saco de treino, e sim, não consigo pensar em outra coisa senão na guerra, na guerra para a qual os povos da Europa devem preparar-se a tempo, justamente como ele. Seja como for, sobre a guerra se fala e se decide nos mais altos níveis, o rearmamento europeu já está em curso e a única coisa que se discute é como aumentá-lo e de que forma, os cidadãos da Europa já estão sendo avisados de que o futuro próximo será uma economia de guerra, menos infraestruturas e gastos sociais e mais material bélico. A Ucrânia é agora apenas a paisagem temporária, a primeira cena, agora a sua defesa implica a defesa de todo o continente. E tudo bem, talvez as coisas sejam assim, que a nova e definitiva guerra na Europa é inevitável, mas gostaria que me explicassem detalhadamente, tenho o direito, e as explicações são vazias, pior, sediciosas.
O que realmente não consigo tolerar é a narrativa, agora universalmente praticada, de que a paz imperecível na Europa não passava de uma ilusão cheia de resultados maléficos, e as nossas cartas constitucionais devem ser expurgadas das ilusões para adaptá-las à força da realidade que agora exige que quebremos o juramento sem dissimulação patética e o reneguemos. Bem, talvez a guerra esteja aí à nossa espera, talvez Putin, além dos seus outros delírios, também esteja possuído pelo delírio de autodestruição, mas antes que me peçam para derreter os arados para fazer canhões, gostaria que gentilmente me mostrassem os documentos a partir das quais deduzir quais, quantos e quantos inteligentes esforços foram feitos nos últimos trinta anos para não chegar a esse ponto. Os documentos, não os discursos. Antes que os nossos filhos se coloquem em fila para o front, os cidadãos da Europa têm esse direito.
De momento, um fato extremamente tranquilizador, para o front irão, ou enviaremos, os filhos dos outros, como manda a tradição antiga. Correndo o risco de parecer um inimigo da pátria, como um membro da quinta coluna já operando na sua forma atualizada de guerra híbrida, gostaria gentilmente de apresentar uma pequena pergunta honrosa aos estados-maiores, a eles dado que apresentar perguntas aos órgãos democraticamente eleitos é agora considerado de mau gosto: vocês têm condições de me garantir que na Ucrânia, em guerra há dois anos - e por quantos mais? -, não vai acontecer o mesmo que no Afeganistão? Que era questão de honra para todo o Ocidente libertá-lo da escravidão talibã, à custa de perdas ainda não calculadas de vidas e recursos, para depois, após oito anos de desmonte, deixá-lo à sua escravidão com um ato de covardia transformado em sublime? E sim, essa é a minha derrota, não tenho nada além de perguntas e nenhuma resposta.
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Quem quer a paz não é um iludido, é esta política que fracassou. Artigo de Maurizio Maggiani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU