03 Abril 2024
"Claro, nenhum país pode dar lições à Rússia se forem considerados os tantos episódios recentes que mancharam as nossas democracias - desde as famigeradas sevícias no centro de detenção estadunidense de Abu Ghraib, no Iraque, aos menos sistemáticos e graves, mas igualmente degradantes fatos da escola Diaz durante o G8 de Gênova. Mesmo assim, naqueles casos um degrau na escada da desumanidade permaneceu intocado: tinha-se vergonha da tortura, tentava-se escondê-la, na certeza de que fosse inaceitável e condenada pela opinião pública", escreve Andrea Lavazza, jornalista, em artigo publicado por Avvenire, 27-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rostos devastados, roupas sujas e rasgadas, passos cambaleantes, vozes quebradas e palavras quase sussurradas nas confissões extorquidas. Os quatro supostos terroristas da Crocus City Hall, acusados de serem os frios e impiedosos autores de um massacre feroz e imperdoável perpetrado contra civis indefesos reunidos para ouvir música parecem pobres diabos quase inconscientes. Recrutados, dizem eles, com alguns milhares de euros por uma ação que nenhum de nós gostaria de ver e que custará a eles também a vida (certamente merecem punição), além de terem causado 140 vítimas inocentes.
Onde está a certeza arrogante dos fundamentalistas que pensam que estão lutando pela verdade e desprezam o mundo corrupto? A explicação está exposta diante de nossos olhos, sem tentativas de ocultá-la, e a gente nem a percebe mais: é a tortura que quebra a resistência de qualquer um quando a dor e a humilhação atingem seu ápice e esvaziam todos de resistência e dignidade quando se tornam insuportáveis. Uma tortura exibida e quase aceita no quadro dos horrores que estamos agora acostumados a receber pela mídia. Se na Ucrânia e em Gaza são crianças, mulheres e idosos que são bombardeados, atingidos, violados, e já temos poucas lágrimas pelo seu sofrimento, quem terá pena desses tadjiques, que despontaram para matar de uma terra distante e desconhecida?
No entanto, não podemos resignar-nos à tortura. Claro, nenhum país pode dar lições à Rússia se forem considerados os tantos episódios recentes que mancharam as nossas democracias - desde as famigeradas sevícias no centro de detenção estadunidense de Abu Ghraib, no Iraque, aos menos sistemáticos e graves, mas igualmente degradantes fatos da escola Diaz durante o G8 de Gênova. Mesmo assim, naqueles casos um degrau na escada da desumanidade permaneceu intocado: tinha-se vergonha da tortura, tentava-se escondê-la, na certeza de que fosse inaceitável e condenada pela opinião pública. As forças da ordem de Moscou, e do regime como um todo, não temem o julgamento e decidiram dar a maior publicidade possível à falta de respeito pelos direitos invioláveis dos prisioneiros. Não apenas nas consequências, mas também no ato em si - com o insuportável vídeo da orelha sendo cortada e colocada na boca de um dos prisioneiros. A tortura como reação "legítima" ao inimigo - o miliciano, o soldado ou o civil, pouco importa (como aconteceu em Bucha, deve-se lembrar, nas primeiras semanas da invasão).
Em Moscou, não existem garantias nem procedimentos justos para aqueles que se opõem ou discordam – de Ana Politkovskaja a Alexei Navalny - muito menos há limites para a fúria - mesmo antes do julgamento - sobre aqueles que cometeram crimes graves. A prática da tortura continua a questionar a nossa capacidade de evitar a vingança e reconhecer no outro um nosso semelhante, seja qual for seu percurso existencial. Aquela fraternidade que é tão difícil de vislumbrar em quem dispara em seu próximo sem qualquer escrúpulo, e que só pode surgir do pensamento de um Pai comum. Se nos resignarmos inermes à tortura que visa aniquilar a têmpera física e moral das vítimas, toda civilização estará perdida. E, nisso, Putin já está derrotado.
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Exibir a tortura (nunca legítima) é o fim da civilização. Artigo de Andrea Lavazza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU