27 Março 2024
Com clima tradicionalmente úmido, a Terra Indígena Yanomami (TIY) não costuma enfrentar períodos de seca. Mesmo nos dois meses em que há um período de menos chuvas, as precipitações ficam em torno de 200 milímetros – o que, para padrões da capital roraimense, já é considerada estação chuvosa. Mas as mudanças climáticas e os incêndios florestais vêm mudando essa história.
A reportagem é de Felipe Medeiros, publicado por Amazônia Real, 25-03-2024.
“Não tem uma gota de água”, narra a enfermeira Clara Opoxina no dia 5 março. Em vídeo, ela está diante de uma passagem improvisada, feita com galhos de árvores, tentando atravessar por cima do que antes era um igarapé em Wathou, região das Serras. As outras fontes de água ainda existentes ficam mais distantes ou estão impróprias por causa da poluição do garimpo ilegal, conta a profissional da saúde que também fala Yanomami. “O rio Mucajaí está inviável para consumo. Está completamente amarelo ainda do garimpo.”
A enfermeira trabalha há 12 anos na TIY e é indígena, descendente do povo Puri. Ela revela que a falta de água compromete os atendimentos das equipes médicas. “Tem que caminhar duas horas, aí assim, não dá, né, a gente faz um serviço ali de saúde, tem que caminhar duas horas pra pegar água, pra cozinhar, pra beber, e até pra tomar banho ali, tava muito ruim, porque são muitos Yanomami e mais a gente”, contou Clara. Para continuar o atendimento, ela teve de pedir para mudar sua base para uma região mais próxima de igarapés com água potável.
Segundo o geólogo Fábio Wankler, professor doutor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), o fenômeno El Niño estendeu a área da estação seca para dentro do oeste do território dos Yanomami. “O mês mais seco da região, considerando a série histórica, é em torno de 200 milímetros. Os meses secos de Boa Vista variam de 100 a menos de 50 milímetros”, comparou. Para ele, o El Niño está afetando a água superficial, ou seja, os rios de dentro da floresta, uma área que normalmente não sofreria esse efeito ou não seria tão acentuada. Os rios mais afetados pela seca são o Apiaú, Catrimani e Demini, de acordo com a Hutukara Associação Yanomami (HAY).
“Uma situação muito difícil na Terra Yanomami como toda, e principalmente os nossos rios, como rios principais que a gente consome, rios grandes e rios pequenos”, contou à Amazônia Real, Dário Kopenawa, vice-presidente da HAY e filho do xamã do povo Yanomami, Davi Kopenawa. “Impactou bastante os nossos alimentos e também para se alimentar através de águas. E os rios estão muito, muito secos, uma dificuldade muito grande, está bastante difícil o que nós estamos enfrentando hoje. É uma situação muito vulnerável.”
A seca excepcional na região deve ser atribuída, principalmente, às mudanças climáticas causadas por atividades humanas, como o desmatamento e o uso de combustíveis fósseis, explica Wankler. Desde 2010, houve um aumento da temperatura média em Roraima, resultando em maior evapotranspiração e déficit hídrico durante a estação seca. O El Niño de 2023 exacerbou a situação, reduzindo a frequência e intensidade das chuvas e afetando a reposição de água nos aquíferos.
“A redução da frequência e intensidade das chuvas interfere na infiltração da água no solo e consequentemente, na reposição da água subterrânea dos aquíferos que mantêm os rios durante as fases de estiagem. Com o rebaixamento do nível freático, os rios secam, comprometendo a biodiversidade e o modo de vida tradicional dos povos originários”, explica o professor da UFRR.
Ramón Alves, meteorologista da Fundação Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), analisa que as chuvas devem iniciar em abril começando pelo sul de Roraima e gradativamente vão subir “para o setor nordeste de Roraima”. A previsão para o mês que vem é de 100 a 150 milímetros, no acumulado mensal. A TIY fica localizada ao norte do Estado.
A Hutukara entregou à Amazônia Real um mapa alarmante, elaborado com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), evidenciando a origem do fogo que atingiu as comunidades, outra ação humana que interfere na vida dos povos indígenas. O documento, de 12 de março, revela uma preocupante concentração de pontos vermelhos, indicativos de focos de queimadas, nas divisas entre os projetos de assentamento dos municípios de Amajari, Alto Alegre, Mucajaí e Iracema.
Dário Kopenawa relatou à reportagem que o fogo que já devastou parte de sua terra tem origem nas fazendas próximas. “Estamos sofrendo hoje por causa de fogo chegado das fazendas, uma situação muito perigosa. Apiaú, região do Xexena, Ajarani pegou muito fogo e esse fogo chegou na Missão Catrimani e afetou bastante a comunidade e as casas foram queimadas”, alertou.
Reinaldo Imbrozio, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor da UFRR, corroborou as observações de Dário, atribuindo a origem dos incêndios às propriedades rurais circunvizinhas. Ele destacou um padrão de desmatamento em Roraima, patrocinado pelos assentamentos humanos a oeste do Lavrado.
“Quero lembrar mais uma vez que boa parte desses focos que você se referiu aí tanto no Lavrado como nas reservas florestais, a imensa maioria não foram dos indígenas, foi fogo adentrando nas áreas indígenas”, enfatiza para Amazônia Real de frente para o seu computador, com um monitoramento da Nasa aberto, na sede do Inpa em Boa Vista.
Imbrozio explicou que, devido à combinação de fatores climáticos adversos, como a falta de chuvas, vegetação seca e ventos fortes, o fogo se propaga rapidamente, dificultando os esforços de contenção das chamas. O professor da UFRR explica que o caminho do fogo na vegetação de Roraima percorre em linha “entre 500 metros a 1,5 quilômetro por dia”, e por isso, “não tem condição de apagar essas linhas gigantescas”.
“Por mais que Ibama e comunidades indígenas estejam apagando, não tem mais jeito, porque esse fogo agora está linear. Não tem ser humano, ou quantidade de pessoas que apague esse fogo. É uma situação similar, não igual, similar à de 1997, 1998”, lembrou Reinaldo.
A reportagem questionou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária sobre o fogo que saiu dos assentamentos. O órgão disse em nota que “o respeito ao meio ambiente e o cumprimento da legislação ambiental são deveres dos beneficiários da reforma agrária, que constam em cláusulas resolutivas nos documentos expedidos pelo Incra. A comprovação da prática de crime ambiental poderá resultar na retomada da parcela.”
Roraima permanece com focos de calor acima da média. Conforme registros do Inpe, foram contabilizados 1.312 focos, até o dia 24 de março, superando a média mensal de 599. O Estado já acumula 3.973 focos neste ano, comparado à média histórica para o mesmo período, que é de 2.055. Fevereiro registrou números recordes desde 1998, quando iniciou o acompanhamento, com 2.057 focos, consolidando-se como o Estado mais afetado pelos incêndios.
Junior Hekurari, presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), expressou preocupação com a situação, destacando que a seca extrema e a escassez de água estão levando as comunidades a uma situação de desamparo. Ele ressaltou que a falta de medidas efetivas para conter os incêndios e proteger os recursos hídricos está colocando em risco a sobrevivência dos Yanomami.
“A seca está demais, não tem mais rio, não tem mais água, muita queimação [incêndios]. Eu não sei o que os Yanomami vão fazer nessa situação”, respondeu à Amazônia Real por telefone. Ele estava esta semana em Surucucu, TIY. O presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY) e da associação Urihi acompanhava no dia 19 de março a entrega de medicamentos para malária feita por Weibe Tapeba, secretário da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena).
Haron Xaud, doutor em sensoriamento e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) informou ao Instituto Socioambiental (ISA) que, à medida que as áreas são repetidamente afetadas por incêndios, elas se degradam e podem afetar até as nascentes de água de Roraima.
“As serras de Roraima, principalmente as de cobertura vegetal florestal, têm muitas nascentes de água que dependem da vegetação estar saudável e conservada. Se você tem uma intensa mudança degenerativa na vegetação, para uma mesma quantidade de chuva que caia, você vai ter mudanças na capacidade de captação, infiltração, velocidade de passagem da água pelas bacias hidrográficas afetadas”, disse Xaud ao ISA.
Em Boa Vista, o Rio Braco continua baixando. Na segunda-feira (25) a régua de medição da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima registra – 0,38 centímetros. Conforme o acompanhamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB), o pior nível já registrado foi de -56,5 centímetros, em janeiro de 2016.
Roraima tem registrado níveis alarmantes de poluição atmosférica, sendo classificada como ‘péssima’ para a saúde. Nesta segunda-feira (25), o monitoramento da plataforma Selva, da Universidade Estadual do Amazonas, apresentava variações entre 50 e 250 de material particulado (PM 2.5). A plataforma Purple Air definiu a qualidade de dois municípios de Roraima, sendo a capital Boa Vista e Amajari, como piores que São Paulo e Vietnã – e remete ao drama vivenciado no fim do ano passado pela população do Amazonas.
Uma densa fumaça encobre desde o fim de semana a capital e outros municípios. Da orla de Boa Vista não era possível ver neste fim de semana a Ponte dos Macuxi. O Conselho Indígena de Roraima divulgou fotos da fumaça tóxica encobrindo o Sol nas comunidades.A prefeitura da capital recomendou usar máscaras e pediu que a população evite atividades ao ar livre. Os anúncios foram feitos durante uma coletiva. Outras medidas devem ser adotadas ainda nesta segunda-feira pelo prefeito que convocou reunião emergencial com secretários.
“As primeiras recomendações já foram adotadas nas escolas e nos projetos sociais nesta segunda-feira, para que se evite atividades ao ar livre. Até na hora das refeições, as crianças vão permanecer dentro das salas de aula para evitar ao máximo o contato com a fumaça. Também idosos do Projeto Cabelos de Prata foram orientados para permanecer em casa. Outras medidas definidas pelo comitê serão anunciadas ainda hoje”, diz trecho do comunicado enviado à imprensa.
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Rios e igarapés secam na Terra Indígena Yanomami - Instituto Humanitas Unisinos - IHU