16 Março 2024
"O sucesso foi fulgurante, tanto que gerou traduções do grego para o latim, copta, siríaco, armênio, georgiano e etíope. A edição de Lombino conta com um comentário refinado que revela todas as filigranas escondidas, não apenas aquelas bíblicas, mas também as múltiplas clássicas, envolvendo o leitor atual que será conquistado pela essencialidade radical das citações. Apenas um tríptico de exemplos no início e no final da coleção: 'Na fé, um homem de pouca fé, é sem fé' (n.6). 'Um homem de fé, numa prova de fé, é um deus que vive no corpo de um homem' (n.7). 'O intelecto de um sábio é um espelho de Deus' (n. 450)", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 10-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“E, demais disto, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne ... Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir”. Provocante como sempre é o Qohélet/Eclesiastes bíblico nessas duas advertências de seu livreto (12,12 e 1,8) composto de apenas 2.987 palavras hebraicas. Proponho-as não só como autocrítica pessoal, mas também como autodefesa: recebo em média cinco livros por dia, principalmente de viés teológico ou espiritual (e dizem que a religião está em crise...), com uma margem de textos tematicamente de cultura geral e, infelizmente, não raramente obras de aspirantes a poetas e narradores. Precisamente por isso, muitas vezes volto ao passado seguro e seleciono reedições (ou novas edições) de clássicos cristãos.
Isso é o que gostaria de propor agora, escolhendo entre a múltipla literatura baseada justamente nessa linha. A editora Città Nuova, que se destaca no quesito, sugere na série, já emblemática no título "Minima", em formato popular, as Regras morais daquele grande Padre da Igreja da Capadócia, Basílio, que se tornou bispo de Cesareia aos 40 anos em 370 (morreria em 378 "agora famoso em todo o mundo", como diria seu colega Gregório de Nissa).
A obra em questão, editada por um importante especialista em patrística, Umberto Neri, não deve enganar como se fosse uma norma da vida monástica e, portanto, esotérica. O apelo de Basílio é um apelo dirigido a todos os cristãos e não apenas àqueles que praticam um forte empenho eclesial, e é por isso que o seu discurso tem a Bíblia como palimpsesto e os sacramentos como prática, a começar pelo batismo e pela eucaristia. “Assim como não existe uma superigreja – comenta Neri – também não existem supercristãos”: todos os crentes em Cristo devem ter uma estrela guia comum cujos raios são as 80 ‘regras’ que regem a fé genuína e que são todas sustentadas por um florilégio de citações bíblicas.
Basilio di Cesarea, Regrole morali, Città Nuova, pag. 250 (Foto: Divulgação)
Ainda no horizonte da literatura cristã, escolhemos agora uma figura menor que sempre a Città Nuova publica na série mais especializada “Textos patrísticos” agora no nº. 276. Trata-se de Sexto, um cristão talvez de Alexandria do Egito, de alta cultura grega que, entre os séculos II e III, elabora uma coleção de 451 “sentenças”, a mais antiga e relevante gnomologia cristã. O curador Vincenzo Lombino destaca a dimensão dialógica com a cultura profana, “haurindo a fontes de conhecimento de toda a bacia do Mediterrâneo, sobretudo remodelando materiais de tradição pitagórica, mas também judaico-cristã e até latina”.
O sucesso foi fulgurante, tanto que gerou traduções do grego para o latim, copta, siríaco, armênio, georgiano e etíope. A edição de Lombino conta com um comentário refinado que revela todas as filigranas escondidas, não apenas aquelas bíblicas, mas também as múltiplas clássicas, envolvendo o leitor atual que será conquistado pela essencialidade radical das citações. Apenas um tríptico de exemplos no início e no final da coleção: “Na fé, um homem de pouca fé, é sem fé” (n.6). "Um homem de fé, numa prova de fé, é um deus que vive no corpo de um homem” (n.7). “O intelecto de um sábio é um espelho de Deus” (n. 450).
Sesto, Sentenze, Città Nuova, pag. 178 (Foto: Divulgação)
Agora, passando por cima de séculos e migrando para terra europeia, confiamos aos nossos leitores dois escritos capitais na espiritualidade, mas também na própria cultura espanhola. Por um lado, aqui está a extraordinária oportunidade ter em um único volume as obras completas daquele gênio místico do século XVI que é Teresa de Ávila, onde se destacam o Caminho da Perfeição e a fascinante viagem ao interior das sete “tarefas” do Castelo Interior. Das alturas da experiência divina nas páginas de Teresa se penetra no vale da vida cotidiana onde se cruzam igualmente as teofanias, misturadas aos ruídos das ruas e por vezes veladas pelos homens da Igreja, céticos e prevaricadores em relação à liberdade feminina dessa mulher forte e criativa.
Teresa d’Avila, Opere complete, Paoline, pag. 1.710 (Foto: Divulgação)
Ligado a ela há também um religioso, João da Cruz, de quem é reproposto o famoso Cântico Espiritual, maravilhosa síntese de eros e misticismo, de sabedoria teológica e beleza poética.
São quarenta versos “cantados” e comentados, modulados naquela joia bíblica que é o Cânticos dos cânticos. O simbolismo do amor com toda a sua gama de cores se transforma em parábola do abraço entre a alma e Deus e se expande no comentário que João acrescenta a cada verso em uma reflexão sobre o mistério divino e humano. Inesquecível é a abertura do primeiro verso em que a Esposa, isto é, a alma, dirige-se ao Amado, o Deus ausente: “Onde te escondeste, / Amado, e me deixaste gemendo? / Como o cervo fugiste, / depois de me ferir; / saí ao teu encalço gritando, mas tu tinhas ido".
Giovanni della Croce, Cantico Spirituale, Paoline, pag. 432 (Foto: Divulgação)
O original espanhol que acompanha é ainda mais emocionante e a experiência proposta – como isso também acontece nas páginas de santa Teresa – transcende as fronteiras da fé para se abrir a toda a humanidade na sua interioridade e na sua busca por um Além e por um Outro. Colocando isso no léxico latino, a fé não é um limen, uma fronteira limitada, mas é um limes, isto é, um limiar aberto. É por isso que um clássico cristão é um clássico absoluto para crentes e não crentes.
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Deus e o homem se abraçam nos livros. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU