O mercado da força e o elevado preço de uma guerra inútil. Artigo de Mario Giro

Uma mulher está perto de sua casa danificada por bombardeios na vila de Novoselivka, no Oblast de Chernihiv, na Ucrânia (Foto: Oleksandr Ratushniak | UNDP Ukraine | Flickr CC)

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Quando terminará o ciclo da violência? Só quando os responsáveis ​​se derem conta de que a guerra é um instrumento totalmente inútil: as culpas de uns são sempre encobertas e justificadas pelas dos outros.

O comentário é do cientista político italiano Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália. O artigo foi publicado em Domani, 08-03-2024. A tradução de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando Raphaël Glucksmann também incita a Europa a passar para uma “economia de guerra”, isso significa que o clima se tornou realmente pesado. A estrela em ascensão da próxima lista progressista e socialista francesa nas eleições europeias defende que todo o continente está à beira do conflito devido à agressividade russa.

Depois das declarações britânicas, alemãs e bálticas, o alarme geral agora também soa na França, como demonstram as declarações do presidente Emmanuel Macron. Preparar-se para tudo “sem descartar nada”, nem mesmo o envio de soldados: é o que se comenta nos corredores do poder ocidental.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, confirma. De sua parte, Sergei Lavrov reage: “Já sabemos – diz rindo – que há soldados da OTAN na Ucrânia!”. Uma forma de dizer que a Rússia saberá utilizar esse fato no momento certo.

A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zacharova, confirma: “Assim, vemos quem é o verdadeiro agressor: a OTAN”. Toda a política do Kremlin se sustenta sobre este axioma: depois do fracasso da guerra-relâmpago para tomar Kiev (que teria valorizado outra narrativa: a do povo irmão que se liberta do jugo estrangeiro), Moscou está tentando convencer a todos – o Sul global em particular – que ele é a verdadeira vítima de uma OTAN beligerante e prepotente. Um desafio que está progressivamente se afirmando como uma narrativa global e é também compartilhada por alguns ocidentais.

Guerras de sonâmbulos

Como se sabe, o vitimismo sempre foi a melhor arma dos violentos e dos relutantes. Tudo isso se assemelha muito ao modo como a Europa caiu nas duas guerras mundiais sem quase se dar conta, como “sonâmbula”, dizem os historiadores. A memória é curta e não se dá conta do perigo que corre: “Ainda não havia a guerra e já não havia mais a paz”, escrevia o autor húngaro Sandor Marai em 1938.

Os europeus devem dizer a si mesmos com franqueza: a paz já não existe mais, e não existem ficções possíveis que possam esconder tal realidade. Os discursos de que “não é uma guerra da OTAN, nunca iremos combater na Ucrânia” já são falaciosos.

O mérito de Macron é pelo menos de ter revelado isto: “Não há limites”. Uma afirmação de “ambiguidade estratégica”, isto é, uma forma de pôr Putin na ribalta. Mas também mais um passo rumo à ampliação do conflito. A engrenagem foi acionada e não pode ser parada a não ser com muita vontade política, pois cada um defende que não quer perder esse desafio, porque significaria o próprio fim. Em outras palavras, cada guerra é sempre apresentada como “existencial” e muitas vezes também como “a última”, mas absolutamente necessária à própria sobrevivência.

Também se reforça em ambos os lados uma mentalidade conformista e do obséquio em relação àquilo que é propalado pelas instituições: se elas dizem, é porque é verdade... A Rússia propagandeia uma reconstrução vitimista, na qual o Ocidente estaria pronto para invadi-la de novo: afinal, ela já não tentou isso várias vezes?

De seu ponto de vista, o Ocidente responde com a mesma dramatização: é a Rússia quem quer invadir a todos nós, afinal, não se trata de um poder autoritário? Assim, misturando realidade e ficção, deixamos de raciocinar, adaptamo-nos, toda reflexão crítica do caso em questão é engolida pelo medo de perder.

As palavras do Papa Francisco ou do cardeal Matteo Zuppi sobre a razoabilidade da paz parecem ingênuas ou ressoam como desatualizadas em um mundo violento. Como disse um general francês no início do conflito, “somos herbívoros em um mundo de carnívoros”.

Confirma-se que o medo é o grande vetor da guerra que não precisa ser demonstrada: cada um pode senti-la dentro de si.

Vitória inútil

Nesse cenário psicológico, a vitória parece a única solução possível, a única forma de sair dessa situação ou pelo menos de atenuar a ansiedade. Pelo contrário, bastaria um pouco de lucidez para entender que a vitória é impossível e inútil ao mesmo tempo.

Por um lado, é impossível destruir a Rússia ou mudar seu regime de fora. Por outro, é impossível invadir o Ocidente ou transformá-lo à sua própria vontade. Rússia e Europa permanecerão diferentes, e qualquer mudança realista delas ocorrerá a partir de dentro, nunca imposta de fora.

Mas, além de impossível, a vitória também é inútil: se um dos dois vencesse, seria apenas em preparação para a revanche.

Cada guerra prepara a próxima, e nenhuma vitória é definitiva. Os franceses adotaram uma fórmula em 1914, no início da grande guerra: o "der des deres", isto é, “la dernière des dernières”, a última das últimas. Mas quando? Houve a segunda, depois a Guerra Fria e agora esta... além de outros inumeráveis conflitos que só uma mentalidade distraída pode definir como menores.

Quando terminará o ciclo da violência? Só quando os responsáveis ​​se derem conta de que a guerra é um instrumento totalmente inútil: as culpas de uns são sempre encobertas e justificadas pelas dos outros.

O duplo padrão é moeda corrente para todos. O ódio é uma máquina que produz infinitamente mais ódio. Antes mesmo de discutir uma guerra justa ou injusta, o direito ou não de combatê-la ou sua moralidade, afirmemos a verdade pragmática: a guerra é inútil, além de perigosa. Por meio dela, nenhum dos concorrentes mudará o outro nem o convencerá sobre sua superioridade moral ou jurídica. Nesse falso (mas letal) mercado da força, convém apenas parar antes do abismo.

Nesse quadro tão difícil, é surpreendente nestas semanas que é cada vez menos lembrado pelos especialistas o plano de mediação italiano, aquele projeto elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores da Itália nos primeiros meses da guerra. A ideia predominante é de que não houve mais nada de sensato depois disso. Trata-se de uma abordagem simples com uma lógica de dinâmica de negociação: não dar todas as respostas no início nem estabelecer todas as condições. Essa tarefa de perspicácia política deveria ser liderada pela Itália e pela Europa.

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