04 Março 2024
"O que importa é a vivência do agora. De inúmeros mundos, o mundo se compõe. E há a chance da troca no momento em que sobrinha e tio convertem em música a percepção do existir como vivência do agora", escreve Marta Regina Schlichting, em artigo publicado em seu perfil no Facebook, 02-03-2024.
"Hirayama é o dedicadíssimo faxineiro dos banheiros públicos situados em parques e praças. Leva uma vida solitária e metódica (o que inclui comer no mesmo restaurante o prato de sempre), mas seu sorriso ao abrir a porta de casa e mirar o céu evidencia: este é um homem que aprendeu a extrair prazer da contemplação, completude do despojamento, alegria das coisas simples da vida (...)
Hirayama é um homem deslocado de seu tempo. Em um mundo tão apressado, tão afoito pelo novo, tão materialista, tão dependente da tecnologia e tão dominado pelo instantâneo, ele vive uma espécie de utopia particular. Além de escutar canções das décadas de 1960 e 1970 no toca-fitas, compra livros usados por US$ 1 em um sebo e tem como hobby a fotografia analógica. Até seus sonhos são em preto e branco (...)
Wim Wenders não está interessado no passado de seu protagonista, nem Hirayama olha para o futuro. Vive só o presente — a certa altura, vai repetir, como um mantra: "A próxima vez é a próxima vez. Agora é agora". Não à toa, a cada intervalo de almoço no banco de uma praça ele busca registrar com sua antiga câmera Olympus o komorebi, palavra japonesa que designa a beleza da combinação de raios de luz e sombras dançantes provocada pela passagem do sol pelas folhas de uma árvore que farfalham por causa do vento. Suas fotos são todas parecidas, mas nunca iguais, porque cada momento é único(...)" Trechos do texto de Ticiano Osório sobre o belo filme Dias Perfeitos. Adorei! A crítica e o filme!
A despeito de alguma crítica que procura enquadrar o novo filme de Wenders numa totalidade julgada incompleta, a enunciação do filme Dias Perfeitos opta por uma experiência cultivada do detalhe. A repetição de gestos e movimentos faz aflorar o cultivo do mínimo. O exemplo máximo desse procedimento é o momento em que o protagonista, de longe e sentado no banco de um parque, percebe uma nova planta nascendo junto à arvore que admirava naquele exato momento, quando, então, retira um saquinho para recolher a muda com um pouco de terra.
Mais tarde e de volta ao sobrado, integra a nova muda à sua estufa cultivada com borrifos diários. Esse pequeno gesto harmoniza-se com o espaço em que dorme o protagonista. Entre a sala-quarto e a estufa há uma porta de correr tradicional no Japão. Hirayama ao acordar recolhe o seu tatame e reorganiza a pequena sala. Ao dormir consulta a sua mínima biblioteca que se situa ao nível do corpo deitado. O subir e descer do segundo andar para o primeiro constrói a alegoria de uma utopia regenerativa. Não mais a transcendência buscada de forma angustiada e alucinante, como no filme Tão longe, tão perto. O subir e o descer do sobrado resgata, na calma do gesto, uma convivência com a altura minimalista, finalmente encontrada e realizada como uma transcendência imanente.
Convivência também encontrada na alternância entre o furgão e a bicicleta. De dentro do furgão, mais uma pequena transcendência surge: no alto e acima de sua cabeça, Hirayama retira fitas cassetes para nutrir-se de dinamogenias vitais. A antiga nostalgia das alturas de outros filmes ainda ronda o écran. Por nove vezes ela se inscreve através da imagem da Skytree. Mas a presença da árvore - torre manifesta-se como contemplação distanciada. O que importa é a vivência do agora. De inúmeros mundos, o mundo se compõe. E há a chance da troca no momento em que sobrinha e tio convertem em música a percepção do existir como vivência do agora. Hirayama constrói pontes de si mesmo. Na esquizofrenia dos mundos, ele opera sínteses entre mundos dispares, o do trabalhador e o do homem de leituras. E é reconhecido como tal pelos seus interlocutores, sobretudo e mais ainda pela sabedoria das mulheres.
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'Dias perfeitos' de Wim Wenders. Um comentário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU