01 Março 2024
“Funcionários do sagrado” ou “testemunhas da salvação”? Um ensaio abrasivo dos jesuítas Felice Scalia e Ferdinando Di Stefano: “O Evangelho desatendido. O que perdemos de vista na mensagem de Jesus?"
O comentário é de Lorenzo Fazzini, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por Avvenire, 29-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O abrandamento do Evangelho é uma tentação recorrente para a comunidade cristã. Encaixar o escândalo da palavra de Jesus (incluindo seus comportamentos, claro) no contexto da etiqueta das boas maneiras humanas torna-se um subterfúgio que anestesia o significado revolucionário daquele Deus que se fez homem há dois mil anos. E às vezes é preciso que alguém lembre disso, preto no branco. Fazem isso no novo Vangelo disatteso. Cosa abbiamo perso di vista nel messaggio di Gesù (O Evangelho desatendido. O que perdemos de vista na mensagem de Jesus, em tradução livre, Paoline, 224 p., 16,00 euros) dois jesuítas, curiosamente ambos ativos no sul de Itália: Felice Scalia, que ensinou em Messina, e Ferdinando Di Stefano, ativo no trabalho social em Catânia.
Il Vangelo disatteso. Cosa abbiamo perso di vista nel messaggio di Gesù. Paoline 224 p., 16,00 euros (Foto: divulgação)
A reflexão é pontual e não faz concessões, pelo contrário. Fazendo eco a Dom Tonino Bello, perguntam: “O que fizeram os cristãos da revelação de que o Eterno é aquele que no céu usa a única roupa que lhe convém: o “avental” do garçom para servir os seus filhos cansados da vida? A nossa impressão é que falar dos cristãos em geral como servos, guardiões da vida, promotores, consoladores, bálsamo amoroso da humanidade ferida, possa ser uma bela falsidade histórica". Afirmação pungente, talvez pouco generosa, mas que abala e purifica um certo triunfalismo eclesiástico, por demais difundido na mentalidade eclesial. O ponto crucial, para os dois jesuítas, continua sendo a compreensão de qual seria o Deus de Jesus, no qual a Igreja diz que acredita: “Para nós o problema relativo a Deus não é tanto o ateísmo, mas a idolatria.
A questão que surge e nos afeta mais profundamente não é tanto se somos crentes ou ateus, mas de qual Deus somos crentes e de qual Deus somos ateus. Nosso problema não é se Deus existe ou não, mas quem é o verdadeiro Deus: discernir entre o verdadeiro Deus e a multidão de ídolos". E Jesus aqui é apresentado com ênfases (justamente) provocativas: “não é o sacerdote Jesus, não é dos cristãos, não dos brancos, não dos judeus, mas, justamente, primorosamente humano, do povo, membro daquela humanidade que está ‘nas trevas e na sombra da morte’ e que ele quer iluminar ‘como o sol que surge!’”.
As referências culturais de Scalia e Di Stefano baseiam-se explicitamente na tradição da teologia da libertação: aparecem os nomes de Pedro Casaldáliga, bispo da Amazônia, de José María Vigil, claretiano, atuante há muitos anos na América Central, mas também aqueles da tradição jesuíta, como São Pedro Claver e Karl Rahner. Percebe-se que por trás palavras de reflexão abrasiva dos dois pais escondem-se vidas de estudo, oração, engajamento social. E de olhar profético sobre a Igreja, amada e chamada a um testemunho mais evangélico e incisivo no mundo de hoje. Também se torna interessante a radiografia das oposições clericais ao Papa Francisco (e ao Concílio Vaticano II): “Costuma se dizer que nada nem ninguém dividiu tanto a Igreja tanto quanto o Vaticano II e o Papa Francisco. É chamada, portanto, de “divisão” imperdoável na Igreja aquela que é a redescoberta do caminho rumo ao seu Senhor. E enquanto os que estão longe se regozijam com uma Palavra antiga redescoberta, os que estão perto percebem nessa Palavra que a sua tranquilidade como empregados do sagrado está em perigo mortal".
A Igreja tem pela frente uma grande oportunidade histórica, argumentam Scalia e Di Stefano, ou seja, assumir as ansiedades do mundo para semear o Evangelho: “Temos gerações inteiras que esperam palavras de salvação, de saúde, de futuro, de beleza e justiça, mas não sabem disso. Têm fome e sede de justiça, mas têm dificuldade para encontrar alguém que lhes possa mostrar aquela fonte de água viva que está enterrada nos seus corações sob os escombros de conversas e bobagens inúteis. Não deveria ser essa a tarefa de toda a Igreja? Dos batizados?”.
Perguntas que causam agitação, questionamentos que desafiam.
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Amansar o Evangelho, uma tentação para pessoas de bem. Artigo de Lorenzo Fazzini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU