07 Fevereiro 2024
"Muitas vezes citado como um outsider da política, na realidade Bukele está dedicado à política e à gestão há vários anos, e com um projeto de poder muito claro. Um projeto que conseguiu emplacar com uma carreira meteórica", escreve Marcelo Aguilar, Jornalista uruguaio, correspondente da revista Brecha no Brasil, em artigo publicado por Outra Palavras, 05-02-2044.
Nayib Bukele desafiou a Constituição e reelegeu-se de forma esmagadora. Vitória mostra que, quando a esquerda não tem projeto claro, população pode abrir mão da democracia em nome da “segurança”. Presidente quer agora um “país de partido único”.
Na noite deste domingo (04), apesar de o Tribunal Superior Eleitoral de El Salvador não ter processado nem 1% dos votos, Nayib Bukele, o agora reeleito presidente do país centro-americano, publicava na sua conta de X que havia conseguido 85% dos votos e conquistado 58 de 60 deputados. Na Frente do Palácio Nacional, com transmissão cinematográfica e fogos de artifício, Bukele afirmou que El Salvador tinha quebrado essa noite “todos os recordes de todas as democracias em toda a história do mundo” porque “nunca um projeto tinha ganhado com essa quantidade de votos, é literalmente a porcentagem mais alta de toda a história, a diferença entre o primeiro e segundo lugar mais alta de toda a história”. E foi ainda mais ousado: “seria essa a primeira vez em que existe um partido único num sistema plenamente democrático, toda a oposição junta ficou pulverizada”.
Que a oposição ficou pulverizada é um fato. Os dois partidos que dominaram a política do país após o fim da Guerra Civil, a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), de esquerda, e o Partido Aliança Republicana Nacionalista (Arena) juntos não conseguiram superar 15% de votos, ficando à beira da extinção. Bukele mesmo anunciou no seu discurso deste domingo: “Esse é o fim do pós-guerra, a virada de página”. Esse posicionamento é uma constante nos discursos do presidente salvadorenho, uma refundação constante, uma nova leitura da história a partir do momento em que ele chegou ao poder, apagar o passado, o que deu errado, para abraçar o que deu certo.
Bukele, de fato, é bem popular entre os salvadorenhos, e o presidente com maior aprovação da América Latina. O presidente, que tem virado um ícone pop da direita latino-americana e adotou o bitcoin como moeda oficial junto com o dólar, se apresenta como um linha-dura cool, uma espécie de “pai protetor” que acabou com o que a maioria considera o maior dos flagelos do país: a violência das Maras. Mas, ao mesmo tempo, o presidente reeleito converteu El Salvador num dos países com a maior população carcerária do mundo, domina todos os poderes do Estado, persegue a imprensa e governa em regime de exceção desde março de 2022.
Para entender o sucesso de Bukele e como os salvadorenhos estão dispostos a trocar suas garantias legais e sua democracia a troco de paz, é necessário entender o papel das Maras, as famosas gangues salvadorenhas, que aterrorizaram o país durante décadas. Durante a Guerra Civil (1979-1992) fugiram para os Estados Unidos milhares de garotos sozinhos cujas famílias tinham sido ou poderiam ser potenciais vítimas da guerra, assim como desertores e guerrilheiros, que uma vez nos Estados Unidos começaram a se juntar para se defender dos ataques que recebiam de gangues que os perseguiam. Assim criaram suas próprias gangues, que tomaram os nomes das ruas que ocupavam em Los Angeles, e nasceram assim a Mara 13, a “Salvatrucha” e a Barrio 18, que se converteram em poderosas organizações criminosas. Com o fim da Guerra, muitos desses jovens voltam a El Salvador, por eleição própria ou deportados pelos Estados Unidos — que já não queriam carregar um fardo que eles tinham ajudado a criar. O Departamento de Estado estadunidense teve altíssima ingerência na Guerra Civil salvadorenha, chegando a ter responsabilidade direta no maior massacre perpetrado pelo Exército, o massacre de El Mozote, onde foram assassinados quase mil camponeses.
Ao voltar, esses jovens encontraram um país de joelhos, castigado pelos impactos da guerra, e o submeteram novamente à violência e à humilhação. As Maras passaram a controlar vastos territórios, negócios, e governos anteriores as tinham convertido em atores políticos após anos de pactar com essa organização para manter uma fachada de paz. Apesar de ter iniciado assim sua relação com as Maras como presidente, tal como tem revelado sistematicamente o jornal El Faro, em março de 2022, quando as quadrilhas (pandillas) assassinaram 87 pessoas, Bukele adotou como estratégia a mão dura absoluta, e instaurou um regime de exceção que suprimiu diversos direitos constitucionais, supostamente de forma provisória, mas que dura até hoje. Com isso, o governo conseguiu reduzir drasticamente os índices de violência e, em certo sentido, devolver com isso a paz aos salvadorenhos.
Na visão do jornalista Sergio Arauz, da redação de El Faro, esse é um dos principais motivos para entender a reeleição de Bukele. Mas a custo de que? O jornalista explica: “É determinante para entender a vitória eleitoral que a grande maioria das pessoas que viveram submetidas em suas comunidades por esses grupos criminosos deixaram de sentir a pressão de estar sendo controladas pelas quadrilhas. Bukele conseguiu resolver de forma efetiva esse tema para que a grande maioria deixasse de sentir esse monstro presente no seu dia a dia, mas o custo disso é bastante complexo. São 75 mil pessoas detidas, sem Estado de Direito funcional nem devido processo, onde há muitos inocentes presos, ou seja, sacrificamos muitos direitos que estão escritos na nossa constituição, e sacrificamos basicamente a possibilidade de dissentir”.
Muitas vezes citado como um outsider da política, na realidade Bukele está dedicado à política e à gestão há vários anos, e com um projeto de poder muito claro. Um projeto que conseguiu emplacar com uma carreira meteórica. Empresário e publicitário de origem árabe, teve seu primeiro cargo em 2012, como prefeito de Novo Cuscatlán, um pequeno povoado de pouco mais de 7 mil habitantes, localizado a 13 quilômetros de San Salvador, a capital do país. Logo no início, chamou a atenção como uma figura jovem e com um discurso diferente, dizendo que não iria receber um dólar de salário e criticando as estruturas políticas tradicionais, que considerava corrompidas. Foi ganhando espaço, midiático e político, e após dois anos e alguns meses como prefeito, com 33 anos, se converteu no candidato do FMLN para San Salvador, obtendo a vitória na eleição municipal de 2015.
De lá, saltou para a presidência da República, já sem o guarda-chuvas do partido, do qual foi expulso em 2017, quando ainda era prefeito. As acusações do FMLN pareciam premonitórias. O então prefeito era acusado de condutas personalistas, de comportamento messiânico e de trabalhar com uma equipe alheia à estrutura do partido. Bukele imediatamente se definiu como independente e começou construir sua própria candidatura e seu próprio partido. Para vencer a eleição de 2019, que o ergueu como presidente, teve que realizar alianças, pois ainda não tinha conseguido registrar o partido que criou para si mesmo, o Novas Ideias, que sintomaticamente tem a mesma logo da cidade de Novo Cuscatlán, onde ele iniciou sua carreira política. Na eleição deste domingo, já se candidata com o seu partido, que tende a se converter no Partido Único de El Salvador, e domina completamente o Congresso Nacional.
Para Arauz, que acompanha desde o começo a trajetória de Bukele, o processo de crescimento da figura do presidente se explica por uma razão principal: o cansaço das pessoas. O cansaço com a democracia e a política tradicional: “Bukele se converteu no que é convencendo as pessoas de que a democracia não serve para nada, que os métodos tradicionais de fazer política não servem para nada e que ele é a solução e pode, sim, resolver as coisas sem tanto diálogo, sem tanto processo, se damos a ele todo o poder”. E acrescenta: “É uma realidade que não serviu para nada, ou pelo menos para muito pouco em termos do básico, de resolver os problemas econômicos, a situação de violência e a criminalidade, os assuntos fundamentais para a maioria das pessoas”. Foi em cima disso que Bukele construiu uma carreira tão exitosa. Jovem, carismático, moderno e com um discurso diferente, o presidente salvadorenho foi muito efetivo ao convencer às maiorias de lhe entregar a chave do país e o poder absoluto.
Após a categórica vitória eleitoral deste domingo, Arauz aponta que El Salvador vai rumo ao aprofundamento de um caminho autoritário: “Estivemos transitando de uma democracia para um regime autoritário, ou híbrido segundo alguns analistas, e vamos à caminho da ditadura. Então, a partir de agora, estamos indo na direção de uma ditadura na qual uma grande maioria de pessoas vai bater palmas para a morte da democracia. Vamos rumo ao que se chamaria de um “regime de partido hegemônico”, que a meu ver, é um regime de partido único, onde se vai extinguir o pluralismo ou as correntes de pensamento diferentes no Congresso. Estamos na porta da hegemonia de uma forma só de pensar e exercer o poder e essa forma é a da família Bukele e o presidente”.
Para o jornalista, “há uma concentração de poder tão importante nas mãos de uma pessoa e de uma família, que a ordem de um juiz não vale nada, assim como a de qualquer outra instituição que numa democracia funcional serve como contrapeso”. Segundo ele, “em termos práticos, os efeitos desta ditadura cool são os mesmos que os que imporiam um dinossauro clássico do passado”. Ao que tudo indica, o “ditador mais cool do mundo” executará seu plano sem nenhuma oposição e aprofundará o alcance do regime de exceção, que parece ter ganhado amplíssimo fôlego após o respaldo eleitoral de domingo.
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El Salvador: O medo reelege o “ditador cool” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU