07 Fevereiro 2024
A tradicional peregrinação de gays e trans na região de Avellino. Somos todos filhos de Deus. Depois de dois mil anos, alguém entendeu isso também no Vaticano.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Repubblica, 04-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando um raio de sol cruza as nuvens, a multidão é atravessada por um frêmito, como se Nossa Senhora tivesse respondido às invocações. A festa da Candelária, a bênção das velas que simbolizam Cristo, luz do mundo, se sobrepõe a antigas tradições que buscam neste dia, dois de fevereiro, os primeiros sinais da primavera. Um vento gelado sopra no Monte Partenio e há montes de neve na beira da estrada.
E quando uma fresta de luz cai no átrio da abadia, se multiplica o som dos pandeiros e das castanholas, explode a “tammurriata”, o volume do coro aumenta, “Oi Ma-ro-nna!”. O Santuário de Montevergine, na província de Avellino, como todos os anos fica lotado de “femminielli”, gay e trans. Este ano, porém, algo mudou.
“Admiro o Papa Francisco, é um homem que decidiu envolver-se, arriscar críticas também de alguns ambientes eclesiásticos", fala Tommy Mellone, nome artístico Nanà Vaiassa, artista de cabaré especializada em bingo "scostumato". “Muitos se escondem atrás de máscaras, mas ele não, entendeu o verdadeiro sentido do amor de Deus que nos criou todos iguais”.
Nos últimos meses, Jorge Mario Bergoglio esclareceu que as transexuais podem ser madrinhas de batismo, autorizou a bênção a casais homossexuais. Os bispos africanos protestam, o Cardeal Gerhard Ludwig Müller, um verdadeiro ratzingeriano, fala de blasfêmia. “Se levamos dois mil anos para ter um Papa com mente aberta", comenta seraficamente Tommy Mellone, “vamos dar tempo ao tempo: essas pessoas estão fazendo o seu percurso, certamente vão chegar lá... onde há Deus há amor".
A "juta (caminhada) dei femminielli", figura típica napolitana, bem aceita na sociedade e impossível de reduzir a outras categorias da homossexualidade ou do travestismo, tem suas raízes nos séculos passados. "É uma tradição que se reporta à lenda do século XVII de dois homossexuais que, condenados a morrer de frio no Monte Partenio, foram salvos pela compaixão de Maria", explica Adriana Valério: "Desde então homossexuais, femminielli, transgêneros, diríamos hoje, encontram na Virgem aceitação e refúgio", continua a historiadora do cristianismo: "Maria é a mãe que acolhe a todos".
Desde as primeiras horas da manhã uma multidão sobe ao santuário com o funicular de Mercogliano. Antigamente a tradição era mais contida, hoje existe um pouco de folclore. Estão lá os femminielli, o ônibus da Associação Trans Napoli, os curiosos, militantes e fiéis de toda a Itália. Estão lá Vladimir Luxuria, as Karma B, a artista queer ítalo-estadunidense Summer Minerva. Sobe-se pelos degraus da igreja, acompanhados pelos cânticos, cada degrau uma oração, acendem-se as velas, reza-se diante do ícone da Virgem negra, “mãe schiavona”, negra como os escravos de cor, a mãe que acolhe a todos sem discriminação. Meio peregrinação, meio parada de orgulho gay, o encontro teve seus incidentes.
Lembra-se bem disso dom Vitaliano Della Sala, pároco de Mercogliano, conhecida figura do catolicismo progressista. "Em 2000, durante o Jubileu, participei da parada de orgulho gay em Roma e aconteceu a maior confusão, interveio o Cardeal Sodano, João Paulo II da janela não mencionou o meu nome, mas quase, fui suspenso por um período... por ocasião da Candelária o abade da época fez uma homilia tão dura que se falou da expulsão dos femminielli do templo. Uma semana depois foi organizado aquele que aqui chamamos de femminiello pride. No almoço estive com o abade e o monge mais velho, Dom Romualdo, noventa e dois anos, perguntou-lhe: “Eles sempre vieram, você só percebeu este ano?”. “É evidente”, conclui Dom Vitaliano, “que recebeu pressões de Roma”.
Hoje sopra outro ar de Roma e o povo dos femminielli registra as movimentações com atenção. Como vê o Papa? “Muito bom”, responde Brigida, “idosa femminiella de Nápoles”, 77 anos e turbante preto: “Tem um coração puro, traz a fé e, além disso, não usa joias, veludos, não senta na cadeira, nem manda consertar os sapatos velhos." A resistência dos conservadores? "Mas na Igreja, metade é como nós”, sorri Brigida, “com a ‘tendência’”.
Gerardo Amarante cai na gargalhada ao ouvir que segundo os bispos não há homossexuais na África. “Mas como podem dizer que não existem, coitadinhos!”, exclama esse napolitano que conduz os cantos da peregrinação. “Ainda há intolerância na Igreja, esperemos que deem um pouco de ouvido a este Papa”, continua Amarante: “Antes tanto a família como a Igreja eram mais fechadas, agora muitos de nós saímos às ruas." Brincos e bolsa atravessada, Francesco, 21 anos, é de outra geração. Homossexual, sempre se sentiu acolhido na sua paróquia. Para ele, as decisões do Papa são “um começo”. Alguém está falando de blasfêmia? “Nós - diz ele - rezamos a Nossa Senhora de Montevergine para que sejamos cada vez mais aceitos”.
A Candelária, explica a professora Adriana Valério, “é a festa da luz da fé além das escuridões da discriminação”. Dom Vitaliano tem suas dúvidas. No Natal fez um presépio com duas Nossas Senhoras, “era uma maneira de dizer que já não existe uma única sagrada família, mas existem muitas”. Recebeu 26 mil e-mails de protesto e telefonemas insultuosos. “Se não há espaço na Igreja para a discussão fraterna – diz – o cisma que o Papa teme já existe”.
Ciro Ciretta, que lidera a procissão dos femminielli com lenço florido turquesa, aprecia o Papa Francisco, “está realizando um belo trabalho, consegue acompanhar a história”, afirma. “Mas é difícil para a Igreja mudar repentinamente: não pode, tem dois mil anos de história. É preciso rezar pelo Papa, ficar perto dele, porque ele está percorrendo um caminho muito difícil”. E, além disso, é melhor evitar surpresas desagradáveis, “porque, vai saber - diz Ciro Ciretta rindo - amanhã ele se levanta e resolve outra coisa”.
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Oração no santuário LGBT: “Bergoglio nos entende, que a Igreja o escute” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU