05 Fevereiro 2024
"Não se trata de “direitos absolutos” e a Igreja tem razão em exigir outro tipo de condições para o acesso aos sacramentos. Embora com dificuldade, estamos tentando implementar as ferramentas necessárias para a única verdadeira condição para o recebimento dos sacramentos: que quem os solicita saiba o que está fazendo. Não se trata de ritos mágicos que “trazem o bem” e nem mesmo de iniciações na vida social, mas de momentos fortes que marcam a existência dos crentes e que integram e envolvem na vida da comunidade eclesial. Trata-se, é verdade, de realidades a serem manejadas com cuidado", escreve Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Vita Pastorale, fevereiro de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O exercício eclesial da sinodalidade passa por muitos caminhos diferentes, mesmo os menos visíveis e solenes de um Sínodo. E também o esclarecimento de dúvidas ou a resolução de problemas podem ser consideradas expressões sinodais da tarefa magisterial que cabe aos bispos. Nesses termos pode, portanto, ser avaliado o Responsum do Dicastério para a Doutrina da Fé, assinado pelo novo Prefeito e assinado pelo Papa Francisco, a algumas Dubias apresentadas pelo bispo de Santo Amaro, no Brasil, Monsenhor José Negri.
As questões apresentadas por Monsenhor Negri diziam respeito a um âmbito específico da vida do Igreja, aquele sacramental. E é bem possível que o documento do antigo Santo Ofício não tivesse causado o mesmo clamor midiático se os questionamentos feitos não tivessem envolvido pessoas transexuais, homens gays e mulheres lésbicas, bem como crianças de casais homoafetivos, mesmo aquelas nascidas com fertilização assistida ou gestação de substituição, e seu direito de acesso ao batismo ou, além disso, a possibilidade de que essas mesmas pessoas pudessem desempenhar o papel de padrinhos ou madrinhas de batismo ou de testemunhas de casamento.
O fato de que tudo o que tem a ver com a sexualidade permanecer no centro das preocupações pastorais de bispos, talvez não deva surpreender. Também não pode surpreender uma opinião pública que está sempre à espreita para arrancar o que a Igreja oficial expressa a esse respeito. Às vezes caberia se perguntar se algum pároco ou bispo já tenha apresentado ao Dicastério a questão sobre a possibilidade de mafiosos ou criminosos confessos poderem desempenhar o papel de padrinhos de batismo ou de testemunhas de casamento e se isso teria a mesma repercussão mediática.
Contudo, vamos nos restringir a um texto, o do Responsum, que representa um atestado importante. Embora apelando, justamente, à "prudência pastoral", que comporta tanto a atenção às situações pessoais quanto a preocupação por toda a comunidade eclesial, o Documento não prevê qualquer negação porque coloca a ação da Igreja em total conformidade com “o amor incondicional de Deus”. E, como afirmado pelo Papa Francisco, isso significa que nem mesmo as portas dos sacramentos deveriam jamais fechar-se. Muitas poderiam ser as considerações a respeito de um texto extremamente curto, mas não por isso desprovido de elementos que remetem a uma compreensão teológica precisa de múltiplos aspectos inerentes à vida de fé e à práxis sacramental. Aqui, no entanto, queremos nos debruçar sobre o que mais atraiu a opinião pública, isto é, a liberalidade com que a pessoas trans ou homoafetivas é reconhecido viver plenamente a vida da Igreja por meio da prática sacramental.
Nada de novo, na realidade, porque o Dicastério apenas reiterou o que já foi afirmado em outras ocasiões. Mas o fato de reconhecer o status de condição plenamente humana para a transição, para a vida de casal homoafetivo ou mesmo para qualquer criança, seja qual for a modalidade como ela veio ao mundo, vai se colocar dentro de um debate que, especialmente na Itália, se tornou extremamente exacerbado. Talvez ainda não tenham passado completamente os tempos em que fazia parte do costume do país a recusa a alugar um apartamento para um casal homossexual ou nos perguntávamos se as companhias aéreas poderiam conceder um desconto de casal também para dois homossexuais. Sem falar que, recentemente, foi frontal o embate entre alguns prefeitos e o Estado em relação ao registro de filhos de casais gays ou lésbicos. E cada vez mais inflamada foi a discussão sobre a gestação por terceiros, que é ilegal em Itália desde 2004, mas que algumas forças políticas gostariam que fosse reconhecido como crime universal.
Talvez seja por isso que causou alvoroço uma declaração eclesiástica segundo a qual não pode haver ninguém impedimento à plena participação na vida sacramental da comunidade eclesial que dependa da orientação sexual; ou, muito menos, que diga respeito a crianças, qualquer que seja a sua modalidade de nascimento ou a condição de sua família. Sobre os seres humanos – todos – a Igreja não pode e não deve permitir qualquer forma de racismo. Já estão bem distante os tempos em que os teólogos se perguntavam se as mulheres ou os escravos de cor tinham alma ou não!
Não se trata, no entanto, de “direitos absolutos” e a Igreja tem razão em exigir outro tipo de condições para o acesso aos sacramentos. Embora com dificuldade, estamos tentando implementar as ferramentas necessárias para a única verdadeira condição para o recebimento dos sacramentos: que quem os solicita saiba o que está fazendo. Não se trata de ritos mágicos que “trazem o bem” e nem mesmo de iniciações na vida social, mas de momentos fortes que marcam a existência dos crentes e que integram e envolvem na vida da comunidade eclesial. Trata-se, é verdade, de realidades a serem manejadas com cuidado.
Por um lado, o distanciamento crescente da prática sacramental é um fenômeno que deve ser avaliado com atenção, porque também pode significar o fim da era de uma práxis indiscriminada que pouco tinha a ver com a vida real das comunidades de fé. Por outro lado, também é verdade que um mais claro chamamento à "prudência pastoral" requer uma maior capacidade de discernimento por parte dos párocos e uma grande disponibilidade para acompanhar quem pede os sacramentos num caminho de tomada de consciência quanto à pertença eclesial. Não é um papel fácil em tempos de elevado índice de desagregação de qualquer forma de pertencimento.
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Na realidade, nada de novo. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU