09 Janeiro 2024
No seu discurso aos embaixadores no início do ano, Bergoglio apela à libertação dos reféns israelenses e ao cessar-fogo, denunciando o antissemitismo e a perseguição aos cristãos no mundo. A pressão pelo desarmamento: “Mais armas não criam dissuasão”.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Repubblica, 08-01-2024.
O que nos últimos anos tem sido temido como uma “terceira guerra mundial em pedaços” está se transformando num “verdadeiro conflito global”. Por ocasião das saudações de Ano Novo aos embaixadores acreditados junto à Santa Sé, tradicional encontro para expor a visão geopolítica da Santa Sé, o Papa Francisco colocou as suas prioridades para 2024 num discurso marcado pela preocupação com as guerras em curso, e em particular pelos civis atingidos “indiscriminadamente” em Gaza e na Ucrânia, quase como se fossem “danos colaterais”, e pelas “graves violações do direito internacional humanitário” que, recorda, “são crimes de guerra”.
“No início de um ano que gostaríamos de ver a paz e que se abre sob a bandeira do conflito e da divisão”, o Papa Francisco recordou a denúncia do “massacre inútil” pronunciada por Bento XV durante a Primeira Guerra Mundial e o apelo pela paz de Pio XII no final da Segunda Guerra Mundial para sublinhar que "oitenta anos depois, o impulso para aquela "renovação profunda" parece ter-se esgotado e o mundo é atravessado por um número crescente de conflitos que estão lentamente a transformar o que "defini repetidamente como uma terceira guerra mundial fragmentada" num conflito verdadeiramente global".
“Num contexto em que a distinção entre objetivos militares e civis já não parece ser observada, não há conflito que não acabe de alguma forma por afetar indiscriminadamente a população civil. Os acontecimentos na Ucrânia e em Gaza são uma prova clara disso”, afirmou Jorge Mario Bergoglio. “Não devemos esquecer que as violações graves do direito internacional humanitário são crimes de guerra e que não basta detectá-las, mas é necessário preveni-las. Há, portanto, necessidade de um maior compromisso da comunidade internacional para a proteção e implementação do direito humanitário, que parece ser a única forma de proteger a dignidade humana em situações de guerra”.
Mesmo quando, disse o Papa, "se trata de exercer o direito à autodefesa, é essencial manter um uso proporcional da força. Talvez não percebamos que as vítimas civis não são 'danos colaterais'. São homens e mulheres com nomes e sobrenomes que perdem a vida. São crianças que permanecem órfãs e privadas de futuro. São pessoas que sofrem de fome, sede e frio ou que são mutiladas pelo poder das armas modernas. Se pudéssemos olhar nos olhos de cada um deles, chamá-los pelo nome e evocar a sua história pessoal, veríamos a guerra como ela é: nada mais do que uma enorme tragédia e 'um massacre inútil', que afeta a dignidade de cada pessoa nesta terra."
O Papa Francisco expressou pela primeira vez a sua preocupação “pelo que está acontecendo em Israel e na Palestina. Todos ficamos chocados com o ataque terrorista de 7 de outubro contra a população de Israel, onde muitas pessoas inocentes foram feridas, torturadas e mortas de forma atroz e muitas foram feitas reféns. Repito a minha condenação desta ação e de qualquer forma de terrorismo e de extremismo: desta forma as questões entre os povos não se resolvem, pelo contrário, tornam-se mais difíceis, causando sofrimento a todos. Na verdade, isto provocou uma forte resposta militar israelense em Gaza que levou à morte de dezenas de milhares de palestinos, na sua maioria civis, incluindo muitas crianças, adolescentes e jovens, e causou uma crise humanitária muito grave com um sofrimento inimaginável. Reitero o meu apelo a todas as partes envolvidas – continuou o Papa – para um cessar-fogo em todas as frentes, incluindo o Líbano, e para a libertação imediata de todos os reféns em Gaza. Peço que a população palestina receba ajuda humanitária e que os hospitais, escolas e locais de culto tenham toda a proteção necessária. Espero que a comunidade internacional prossiga com determinação a solução de dois Estados, um israelense e um palestino, bem como um estatuto especial garantido internacionalmente para a cidade de Jerusalém, para que israelenses e palestinos possam finalmente viver em paz e segurança”.
O Papa apelou mais uma vez a uma política de desarmamento, “já que é ilusório pensar que os armamentos têm um valor dissuasor. Pelo contrário, o oposto é verdadeiro: a disponibilidade de armas incentiva a sua utilização e aumenta a sua produção", disse Bergoglio, que propôs mais uma vez, com os recursos até agora atribuídos ao armamento, a criação de um "Fundo Mundial para finalmente eliminar a fome e promover o desenvolvimento sustentável de todo o planeta”. O Papa reiterou “a imoralidade de fabricar e possuir armas nucleares”, esperando que “possamos alcançar o mais rapidamente possível a retomada das negociações para o reinício do Plano de Ação Conjunto Global, mais conhecido como “Acordo Nuclear do Irã”, para garantir um futuro mais seguro para todos."
“O conflito em curso em Gaza desestabiliza ainda mais uma região frágil e cheia de tensão”, disse Bergoglio, que recordou, em particular, a situação no Líbano, esperando que “o impasse institucional que o está a deixar ainda mais de joelhos seja resolvido e que a Terra dos Cedros em breve terá um presidente."
Depois de “quase dois anos de guerra em grande escala da Federação Russa contra a Ucrânia”, disse Francisco, “a tão desejada paz ainda não conseguiu encontrar um lugar nas mentes e nos corações, apesar das numerosas vítimas e da enorme destruição. Não podemos permitir que um conflito que se está a tornar cada vez mais gangrenado continue, em detrimento de milhões de pessoas, mas a tragédia em curso deve ser posta fim através da negociação, em conformidade com o direito internacional."
O Papa Francisco falou sobre as migrações, exortando os líderes mundiais a não fecharem os “corações” e a não se esconderem “atrás do medo de uma invasão”, saudando “com satisfação” o compromisso da União Europeia em procurar uma solução comum através da adopção do novo Pacto sobre Migração e Asilo, “embora registe algumas limitações, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento do direito ao asilo e ao perigo de detenção arbitrária”.
O ano de 2024 “será marcado pela convocação de eleições em muitos estados”, lembrou Bergoglio, sublinhando a importância “de que os cidadãos, especialmente as gerações jovens que serão chamadas às urnas pela primeira vez, percebam como sua principal responsabilidade contribuir para a construção do bem comum, através da participação livre e consciente no voto”.
Francisco manifestou particular preocupação com “o aumento dos atos de antissemitismo que ocorreram nos últimos meses”, esperando que “esta praga seja erradicada da sociedade, sobretudo com a educação para a fraternidade e a aceitação dos outros”. Da mesma forma, “o crescimento da perseguição e da discriminação contra os cristãos é preocupante, especialmente nos últimos dez anos”, continuou o Papa, recordando que “no total, há mais de 360 milhões de cristãos no mundo que sofrem um elevado nível de perseguição e discriminação por causa de sua fé, e cada vez mais pessoas são forçadas a fugir de suas terras natais”.
Para Francisco, “é necessária uma reflexão cuidadosa em todos os níveis, nacional e internacional, político e social, para que o desenvolvimento da inteligência artificial permaneça ao serviço do homem, favorecendo e não prejudicando, especialmente nos jovens, as relações interpessoais, um espírito saudável de fraternidade e de pensamento crítico capaz de discernimento”.
O Papa definiu como “deplorável” a prática da chamada maternidade de aluguel, “que prejudica gravemente a dignidade da mulher e do seu filho”. Baseia-se na exploração de uma situação de necessidade material da mãe. Um filho é sempre um presente e nunca objeto de um contrato. Espero – disse o Papa – um compromisso da comunidade internacional para proibir esta prática a nível universal”. Bergoglio também criticou a “teoria de gênero”, “muito perigosa porque apaga as diferenças na pretensão de tornar todos iguais”.
Francisco expressou a sua satisfação com o documento final da COP28 de Dubai, que “representa um passo encorajador – disse – e revela que, face às muitas crises que vivemos, existe a possibilidade de revitalizar o multilateralismo através da gestão da questão climática global, num mundo onde os problemas ambientais, sociais e políticos estão intimamente ligados". Francisco desejou que o que foi estabelecido em Dubai “levará a uma aceleração decisiva da transição ecológica”.
Num discurso em que abordou as diversas áreas de crise no mundo, desde a Síria ao conflito entre a Armênia e o Azerbaijão, dos muitos cenários de crise e violência na África, a começar pelo Sudão, até o desmatamento da Amazônia, o Papa pronunciou palavras particularmente preocupadas com a situação na Nicarágua, “uma crise – disse – que continua no tempo com consequências dolorosas para toda a sociedade nicaraguense, em particular para a Igreja Católica. A Santa Sé nunca deixa de convidar ao diálogo diplomático respeitoso para o bem dos católicos e de toda a população”. O Papa concluiu o seu discurso recordando o Jubileu de 2025, falando que “na tradição judaico-cristã o Jubileu é um tempo de graça para experimentar a misericórdia de Deus e o dom da sua paz”: “Talvez hoje mais do que nunca precisamos do ano jubilar", disse Francisco.
A íntegra do discurso do Papa Francisco ao Corpo Diplomático, no dia 08-01-2024, pode ser lido, em português, aqui.
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Papa Francisco contra a maternidade de aluguel: “Desprezível, que o mundo a proíba”. E sobre os conflitos: “Civis atacados indiscriminadamente em Gaza e na Ucrânia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU