19 Abril 2023
"Superar as barreiras impostas pelas normativas que penalizam a criança é um importante ato de civilidade. Em sua radical fragilidade e impotência, a criança é o sujeito que mais deve ser protegido".
O artigo é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, publicado por Rocca, nº 9, 01-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A manifestação que aconteceu em Milão no domingo, 19 de março deste ano pretendia expressar, por um lado, sua solidariedade ao prefeito Beppe Sala, que do palco do Orgulho Gay milanês, havia anunciado ter assinado pessoalmente a providência para o registro de crianças de casais homoparentais; e, pelo outro lado, de reagir contra a circular do Ministro do Interior Matteo Piantedosi que, bloqueando o certificado de filiação europeu, proibia aos prefeitos o transcrição nos registros municipais das crianças dos casais homoafetivos.
O grande sucesso da manifestação de Milão com a presença de cerca de 50 mil cidadãos – um sucesso que (talvez) tenha superado até as expectativas dos próprios organizadores – teve o mérito de abrir a discussão sobre uma questão de grande relevância moral e civil, a de que todas as crianças desfrutem de direitos iguais, inclusive o direito de ter, desde o nascimento, uma família na qual crescer.
A circular do governo suscitou (e só poderia suscitar) reações acesas no âmbito da opinião pública e posicionamentos imediatos dos partidos políticos. Ao mesmo tempo que contribuiu, por um lado, para aumentar a discordância civil contra a imposição do governo – numerosos foram (e são) os prefeitos de grandes e pequenos municípios que imediatamente aprovaram a possibilidade do registro das crianças (incluindo aqueles de Roma e Bari) -; não deixou, por outro lado, de encetar uma dura batalha ideológica no front centro-direita (também compartilhado por uma consistente área reacionária do mundo católico); batalha que também resultou no recurso a palavras vulgares e atitudes de viés fascistas e até racista.
A recusa da centro-direita (da qual o Forza Italia se distanciou em parte) foi sobretudo motivada pelo pretexto de que se tratava de uma clara tentativa da maioria de desviar a atenção do reconhecimento dos direitos das crianças dos casais homoafetivos à questão da maternidade substituta, que era até a considerada pelo dep. Federico Morricone, presidente da comissão de cultura da Câmara, “crime grave, mais grave que a pedofilia; estamos diante – acrescentava ele – de pessoas que querem escolher um filho como se escolhe a cor da casa” (A cruzada da direita, “La Stampa”, 21 de março de 2023, p. 14). O risco de cair nesse equívoco existe mesmo, quando se pensa não só no que afirmam muitos expoentes da centro-direita, que nunca deixam de apontar esse espantalho, mas que encontrou apoio também em uma discutida (e discutível) sentença da Corte de Cassação de 2020, sentença com a qual se proibia o reconhecimento de tais direitos, por
medo de que assim se estaria abrindo o caminho para a prática da maternidade de substituição.
No entanto, esse medo não tem nenhuma razão de existir. A distinção entre as duas práticas é clara. O reconhecimento dos direitos das crianças está ligado ao fato de que elas existem, e que como tais devem ser concedidos a elas direitos iguais aos das outras crianças - caso contrário, seria uma desigualdade, o que soaria como um grave ato de injustiça – e que tal reconhecimento não tem nada a ver com a forma como as crianças nasceram, inclusive com o recurso à maternidade de substituição, que no caso da Itália é um crime punível criminalmente. É como dizer, em outras palavras, que o fato de a criança ter vindo ao mundo implica que lhe são asseguradas, desde o início, todas as tutelas a que tem direito, inclusive a de ter dois pais que cuidem dele com responsabilidade.
As batalhas identitárias não podem ser feitas penalizando os pequenos que não têm nenhuma responsabilidade pela forma como nasceram.
A recusa resoluta da maternidade de substituição – esta é a nossa posição, que também expressamos no passado nas páginas desta revista – portanto, não implica (e não pode implicar) a recusa do reconhecimento de direitos fundamentais, como aqueles aqui referidos, dos quais todos devem poder usufruir.
Destaca isso claramente em um interessante artigo publicado no “La Stampa”, Gabriella Luccioli, presidente da primeira seção civil da Corte de Cassação, que não deixa primeiramente de afirmar, com extrema clareza e radicalismo, as razões do "não" à maternidade de substituição. Com tal prática – afirma a ilustre magistrada – na verdade ocorre um ato de grave violação do corpo da mulher, reduzida a incubadora de uma criatura que terá de deixar a outros, bem como de um aviltamento de sentido humano da gravidez e do parto, práticas reduzidas a simples "mercadoria". Por esses motivos ela escreve a respeito da maternidade de substituição: “É uma prática que fere a dignidade da mulher, reduzida por contrato a um mero recipiente de uma vida destinada a nunca pertencer a ela, e transformada em uma mulher ‘coisa’. E nada muda se isso acontecer a título oneroso ou gratuito, se os comitentes forem dois homens ou um casal heterossexual” (cf. “La Stampa” de terça-feira, 21 de março de 2023, p. 15). E acrescenta (e não se trata de algo trivial) que tal prática está fadada a ter repercussões negativas no filho, forçado a uma interrupção abrupta e definitiva o vínculo simbiótico com quem o gerou.
A relação em nível biológico e psicológico que se estabelece entre mãe e filho no longo período da gestação - dizem-nos hoje os estudos de psicologia pré-natal - desempenha uma importante função para a construção da futura personalidade da criança. A rejeição aberta dessa prática não pode (nem deve) porém – afirma, em conclusão, Luccioli – impedir que se chegue ao reconhecimento dos direitos das crianças nascidas em famílias homoafetivas: direitos que devem ser absolutamente reconhecidos e tutelados.
As manifestações de protesto de muitos prefeitos, que ocorreram nas últimas semanas, avançaram por isso o pedido explícito do início de um amplo debate parlamentar, destinado a colmatar urgentemente esse grave vazio regulatório. Trata-se de abrir uma discussão serena sobre alguns projetos de lei, já enviados ao parlamento, evitando o levantamento de barreiras ideológicas ou posições confessionais, a fim de chegar rapidamente a uma solução positiva.
Em última análise, superar as barreiras impostas pelas normativas que penalizam a criança é um importante ato de civilidade. Em sua radical fragilidade e impotência, a criança é o sujeito que mais deve ser protegido. A não atribuição de primazia a essa instância, hoje infelizmente muitas vezes (não só neste caso) insuficientemente assegurada pela cobertura da lei, representa uma grave vulnerabilidade não só jurídica, mas antes de tudo ética. Uma vulnerabilidade que deve ser sanada o mais rápido possível, se quisermos dar pleno curso ao desenvolvimento da vida democrática.
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Os direitos das crianças no centro. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU