11 Novembro 2023
Nessa quarta-feira, 8, foi divulgada uma resposta do Dicastério para a Doutrina da Fé a uma carta de Sua Excelência Dom José Negri, bispo de Santo Amaro, no Brasil, contendo algumas perguntas sobre a possível participação nos sacramentos do batismo e do matrimônio de pessoas transexuais e de pessoas homoafetivas.
O teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, comenta as respostas do dicastério. O artigo foi publicado por Pro Mundi Vita, 09-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando se faz uma pergunta – aprendemos isso estudando latim – é possível realizar duas ações diferentes: pode-se perguntar para saber e pode-se perguntar para obter.
Um “dubium” pode ser levantado por dois motivos: ou para saber algo que não está claro ou para obter algo que ainda não foi adquirido.
No caso que aqui se apresenta, parece-me muito claro que as perguntas feitas à Congregação por Dom Negri, levantadas por uma diocese (Santo Amaro) interna à metrópole de São Paulo no Brasil, orientavam-se a obter um esclarecimento sobre decisões pastorais razoáveis, mas que a inércia da sociedade da honra tende a julgar sempre “de fora” e quase “in contumacia”.
Eis as seis perguntas:
Como é evidente, trata-se de perguntas que dizem respeito à incidências das “formas de identidade sexual e de exercício da sexualidade” (transexual e/ou homossexual) sobre a possibilidade de entrar (em diferentes modalidades) na práxis sacramental da Igreja.
As ações rituais consideradas são o batismo (ao qual se dirigem quatro perguntas) e o matrimônio (para duas perguntas). A formulação da dúvida é feita nas formas clássicas, e a resposta também segue o estilo clássico, formal no teor e administrativo no estilo.
Contudo, pelas respostas, é fácil notar que as argumentações, embora seguindo um procedimento argumentativo clássico, abrem-se para uma leitura atualizada da tradição. Tento identificar os pontos mais importantes dessa novidade:
Uma sociedade da honra tende a subordinar a “coisa sagrada” ao consenso social. Assim, pensa que a honra de um ato sagrado, como o batismo ou o matrimônio, não pode tolerar a transgressão das formas adquiridas no passado. Por isso, eleva o critério do escândalo a sumo critério na administração da práxis sacramental.
Assim, enquanto esse critério foi dominante, foi possível que o casal homossexual ou transexual fosse vetado, com o consentimento da Igreja, à atribuição de apartamentos, porque a presença de “irregulares” penalizaria os proprietários das casas vizinhas, por serem “famílias regulares e normais” que, assim, perderiam uma parte de seu patrimônio.
O critério do escândalo tem suas razões, mas não tem todas as razões. Essa nova evidência, que a partir da Amoris laetitia começou a valer oficialmente nas considerações pastorais da Igreja Católica, implica um discernimento contínuo.
A partir do decreto Tametsi e depois com o enrijecimento do século XIX que chega a seu ápice no Código de 1917, pudemos pensar que a experiência matrimonial integral podia ser “de competência eclesial”. E que a Igreja também podia julgar a “dignidade moral” das testemunhas.
Isso parece ser o fruto de uma deformação clerical da dimensão natural e secular do matrimônio, que em Cristo é “elevado” a sacramento. Essa elevação pressupõe um “ato público” em que o testemunho de terceiros é condicionado apenas pelo fato de serem capazes de entender e de querer.
O fato de ter sido feita a pergunta sobre as “testemunhas” diz com muita clareza até que ponto de “distorção” pôde chegar o sonho de um controle eclesial total exercido sobre a união e sobre a geração entre batizados.
Um dos sonhos que a Igreja do século XIX primeiro amadureceu e, depois, realizou no Código de 1917 foi dotar-se de “leis universais e abstratas” com as quais toda a pastoral fosse orientada para o bem: bem eclesial, mas, em última análise, “bonum animarum”.
A passagem da “sociedade da honra” para a “sociedade da dignidade” modificou profundamente a concepção da lei. Na sociedade da honra, a lei é uma pedagogia de orientação ao bem, controlada pelo centro. A proteção das “diferenças” e das “preferências” vai na direção da “salvação das almas”.
Assim, é possível conceber que todas as diferenças naturais e sociais (entre homem e mulher, entre livres e escravos, entre judeus e gregos, mas também entre filhos naturais e filhos legítimos, entre heterossexuais e homossexuais) não são superadas em Cristo, mas são “conservadas na Igreja”. Só conservando as diferenças é que se mantém a orientação ao bem comum.
Mas a sociedade da dignidade não funciona assim. A justificação da lei não está mais apenas na “pedagogia do ordenamento”, mas sim no “reconhecimento do sujeito”. O que superamos, com essa passagem complexa, é a ideia de que a Igreja é a administradora de “coisas” que só pode conceder “sob certas condições”. A Igreja encontra “pessoas” que acompanha no discipulado de Cristo, ao longo de percursos, itinerários, caminhos. E, por isso, deve dotar-se de um instrumento de discernimento diferente da “lei objetiva” apenas (como AL 303 diz muito bem ao falar, em relação ao passado, de um agir “mesquinho” que “pusilli animi est”).
Tudo corre o risco de se reduzir ao “sim” ou ao “não” em relação à possibilidade de participar de um “ato formal”: ser sujeito do próprio batismo, ser padrinho ou madrinha do batismo alheio, ser genitores de uma criança não gerada, mas adotada, ser testemunha de núpcias.
Tudo isso pode cair na armadilha (antiga e nova) de ser reduzido a dois extremos: ou “concessão eclesial” ou “direito subjetivo”. Esses são os estilos opostos, típicos da “sociedade da honra” e da “sociedade da dignidade”: a primeira só conhece concessões; a segunda, apenas direitos.
Na trama da consciência mais autêntica, a Igreja sabe que esses eventos nunca são simplesmente “atos administrativos”, sobre os quais se possa avaliar direitos, interesses legítimos ou deveres. O caminho que leva ao batismo importa tanto quanto o ato formal e sacramental que o conclui; a relação de conhecimento e frequentação, tanto quanto a função formal do padrinhado/madrinhado.
Essas evidências eclesiais, que permanecem rastreáveis também no intercâmbio entre o bispo e a Congregação, como era inevitável, devem encontrar uma resposta ulterior, em relação à dada às seis dubia. Uma “conversão pastoral” que recupera os sacramentos como pessoas e não os trata mais como coisas considera essas respostas às dubia como “úteis grades de proteção” à beira da estrada e se ocupa, além disso, da estrada, na qual caminha a vida das pessoas, com a sua graça e as suas desgraças.
Ser transexual ou homossexual é uma condição, e não, sobretudo, um pecado. Aqui reside o ponto cultural e eclesialmente decisivo. Há alguns séculos, consideramos o “pecado sexual”, reduzido a “ato impuro”, como o pior dos males. E culpamos as existências, acima de tudo, nesse nível.
Assim, pudemos construir um sistema no qual o exercício da sexualidade se torna uma espécie de “forca caudina”, incontornável para o julgamento sobre a habilitação do sujeito a estar “honravelmente” na Igreja.
A dignidade de cada batizado implica uma escolha de vida que não pode ser controlada apenas no nível das relações sexuais. A soberba, a inveja e a ira são as chagas da humanidade, de todos, acima de tudo dos “regulares”. E bem sabemos que o “trabalho eclesial” não faria sentido se colocássemos, no início de uma experiência eclesial, uma série de dubia assim concebidas:
– um soberbo pode ser batizado?
– um invejoso pode ser padrinho?
– uma pessoa iracunda pode ser testemunha de núpcias?
O verdadeiro escândalo, do qual a sociedade da dignidade pode nos ajudar a curar, é que criamos todos os problemas possíveis para as formas de vida em que o exercício da sexualidade não é o tradicional, mas não temos nenhum problema em abençoar e regularizar a soberba, a inveja e a ira, e em suportar quase com desenvoltura sua presença obstinada e perturbadora
É escandaloso o fato de vermos como pecados e como desordens as identidades complexas no plano sexual e vermos como naturais e normais as identidades desumanas, as diferenças impostas e preferências flagrantes.
As respostas de bom senso oferecidas pela Congregação às seis perguntas de Dom Negri ajudam a redimensionar um defeito de olhar da tradição católica moderna: a de agigantar desmedidamente as coisas pequenas e encolher sem limites as coisas grandes.
Focar a visão passa também por respostas razoáveis e por perguntas sadiamente provocativas.
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Perguntar para saber e perguntar para obter. Sobre as respostas às perguntas de Dom Negri. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU