30 Janeiro 2024
Reflexões pessoais de quatro crentes a partir de sua perspectiva (judaica, muçulmana, cristã católica, cristã ortodoxa).
Os artigos são de Gabriela Zinkl, Ahmad Milad Karimi, Rebecca Rogowski e Cyril Horovun, compilados e publicados por Publik-Forum, 22-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gabriela Zinkl SMCB, teóloga, nascida em 1975 no Alto Palatinado, é religiosa das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo Scalabrinianas na Casa de Repouso Alemã de São Carlos de Jerusalém.
Ahmad Milad Karimi, teólogo islâmico, ensina teologia islâmica em Münster. Nasceu em Cabul e fugiu para a Alemanha quando criança.
Rebecca Rogowski, judia, estudiosa de religião e cultura judaica, trabalha para a iniciativa educacional judaica Hillel Deutschland. Modera um podcast inter-religioso.
Cyril Horovun, teólogo ortodoxo, é professor de teologia ortodoxa em Estocolmo. Ele foi destituído do sacerdócio por causa de suas críticas à Igreja ortodoxa russa.
Desde o massacre do Hamas em Israel, praticamente não há momento para oração ou serviço no nosso convento de religiosas que não seja acompanhado pelo ruído dos aviões de guerra e das bombas explodindo. Esse som duro, que não pode ser desligado, me lembra constantemente que há uma guerra em curso a menos de uma hora de carro daqui. O barulho da guerra e os acontecimentos, as imagens e as notícias terríveis não podem ser simplesmente ignorados rezando, mesmo que se viva num mosteiro em Jerusalém, a uma distância relativamente segura da chuva de bombas e projéteis sobre Gaza. Quem pode, refugia-se nas lamentações e no choro, nos gritos, nas súplicas ou nos pedidos, justamente como nos Salmos do Antigo Testamento, que foram escritos há seu tempo durante crises existenciais semelhante. Os salmos da oração comum das horas também a mim dão algo em que me agarrar hoje em dia, enquanto o mundo ao meu redor desmorona.
No entanto, está presente o grande silêncio inevitável, aquele silêncio inquietante que não pode ser contemplativo e que se revela absolutamente contraproducente. Como se pode rezar numa situação assim? Nos primeiros dias da guerra, tudo o que podia fazer era ficar em silêncio diante da cruz, como na Sexta-Feira Santa. A tríade fé-esperança-amor, tão invocada em outras situações, transforma-se numa mistura sem sentido de vazio, mutismo e abandono, na consciência de tantas pessoas que sofrem e são mortas, vítimas da guerra de ambos os lados. Ó meu Senhor, onde você está nisso tudo?
Por alguns dias não consegui rezar, como se estivesse em estado de choque. Ajudou-me olhar em silêncio para Jesus pendurado na cruz. Eu realmente quero permitir que a guerra, suas mensagens e seus mecanismos destrutivos levem a melhor? Olhando para a cruz, percebi que isso vai contra às minhas convicções pessoais e à minha fé. Pode ser possível que Deus não seja amigo da vida e do amor? É por isso que continuarei a rezar, para que nós, seres humanos, paremos de machucar uns aos outros, machucar a nós mesmos e aos outros. Devemos rezar, mesmo que nos faltam as palavras, não por nós mesmos, mas antes de tudo por todas as inúmeras vítimas sem nome da guerra, de ambos os lados: para que em Deus lhes seja restituída a sua dignidade e o seu nome.
Quanto mais velho fico, mais difícil é para mim dizer que sou muçulmano, que sou um muçulmano devoto. Bloqueia-se a minha respiração, as minhas mãos tremem, na realidade tudo em mim treme, porque eu sei desde a infância, durante a guerra no Afeganistão, que a fé pesa muito. Sinto o peso da fé com mais intensidade quando encontro o silêncio. As imagens da guerra e o número crescente de crianças sem nome que não podem completar a sua terna vida, me paralisam.
É no silêncio da oração, especialmente na experiência profunda da oração noturna, que esse peso se torna tangível. Tudo está parado: não se esperam outras notícias, nenhum telefonema, nenhuma visita. Tomo coragem e me coloco diante de Deus, mas não sei como olhar para ele, como chamá-lo, como me abrir com ele. A minha oração deveria começar quando eu me coloco no meu velho tapete de orações, mas tudo em mim hesita. Eu sinto como as guerras moldam a minha paisagem interior, como destroem a minha confiança básica de que tudo esteja bem, como o princípio da esperança tenha desaparecido. Eu sairia de bom grado do meu tapete de orações, me afastaria do amor e da misericórdia, da justiça e da bondade. Se o seu amor não está onde é mais urgente, se o seu amor não se inclina para os necessitados, então que amor resta neste amor, eu me pergunto. Gostaria de me afastar, mas sinto que minhas pernas assumiram o peso da fé. Fico ali imóvel e não consigo me afastar. “A guerra não tem a última palavra, na guerra não há verdade”, sinto ressoar dentro de mim. Mas sei que a guerra tem muitas faces e que cada face significa dor.
Eu não posso deixar de lado.
E lentamente meu olhar se levanta do chão porque me pergunto se não seria Deus que está chorando em mim, se o meu protesto, a minha dor não sejam seu chamado para não aceitar a guerra, para não dizer adeus à esperança. Começo a rezar, mas meu coração não consegue encontrar paz. Talvez a oração não devesse dar paz, mas inquietação para se levantar novamente - pela paz.
Todos os dias me informo sobre o que acontece no mundo, exceto durante as festividades judaicas, porque naqueles dias não uso a tecnologia. Adoro essa pausa, nada se compara à horrível sensação de ligar o celular e receber notícias como a de 7 de outubro. Algumas pessoas rezariam naquele momento. Mas não eu, pelo menos não imediatamente. No entanto, rezo regularmente e sempre que rezo pela paz, penso nas guerras e conflitos no nosso mundo e espero que acabem. Mas não sem perguntar-me: você realmente acredita que suas orações possam mudar alguma coisa? E se não o fazem, por que rezar?
As respostas a essa pergunta são tão variadas e complexas quanto a própria comunidade judaica. De uma perspectiva haláchica, alguns responderão: porque é um mitzvá, um mandamento: rezar três vezes por dia. Outros responderiam: rezamos para nos sentirmos ligados à nossa história comum, porque o Talmud diz que a oração foi ordenada pelos nossos antepassados. Para outros, o aspecto comunitário pode desempenhar um papel mais importante. Rezam para se sentirem conectados aos judeus de todo o mundo e para fortalecer o sentimento de pertencimento à própria comunidade. Para outros ainda, a fé em HaShem, em Deus, é central. Rezam para construir um relacionamento íntimo com HaShem. E eu? A oração diária é algo que adoro e, ao mesmo tempo, acho incrivelmente difícil. A minha relação com HaShem é complicada e minhas ideias sobre o divino vacilam. Então, a quem eu me dirijo quando rezo e por quê? A resposta é: rezo por mim.
O verbo hebraico para “rezar” é a forma reflexiva da raiz “julgar”. Rezar significa então refletir sobre si mesmo e julgar-se. Não é por acaso que a oração também é chamada de Avodah Sheba Lev, o serviço do coração. Para mim a oração é um processo interior, uma ferramenta para melhorar a mim mesma. Quando rezo pela paz, não é porque acredito na intervenção ativa de HaShem nos acontecimentos no mundo, mas porque espero que refletir sobre a paz nos torne pessoas melhores. Não devemos, de fato, esquecer que as guerras são criadas pelo homem, mas que a paz também o é.
A guerra na Ucrânia, que se intensificou de forma tão terrível em 24 de fevereiro de 2022, mudou radicalmente a vida e a cotidianidade de todos os ucranianos de formas que são difíceis de imaginar. No entanto, algumas mudanças ocorreram de forma bastante inesperada. Por exemplo, muitos dos meus compatriotas, inclusive eu, pararam de ler livros. De 2021 a 24 de fevereiro de 2022, li 45 livros. O último foi “Meca, a Cidade Sagrada”, de Ziauddin Sardar. Eu o li depois da minha viagem à Arábia Saudita e o tinha recém terminado quando a guerra começou. Depois, as notícias absorveram completamente a minha mente. Já não tinha mais tempo para ler. Só recentemente retomei meus hábitos anteriores à guerra e comecei a ler livros novamente.
Para muitos ucranianos, não só o ritmo da leitura mudou, mas também o conteúdo. Mais uma vez, só posso dar o meu exemplo. Entre os livros que li desde dezembro de 2022 estão “Tides of War: A Novel of Alcibiades and the Peloponnesian War”, de Steven Pressfield, e o livro “Civil War in Lebanon”, do especialista militar Edgar O'Ballance. Li “The Anatomy of Fascism”, do historiador Robert O. Paxton, e “The Holy Reich: Nazi Conceptions of Christianity”, de Richard Steigmann-Gall. Por fim, o livro de Karl Barth "A Igreja e a Guerra". Ao escolher o que ler, estou tentando compreender a nossa guerra. Os cristãos ucranianos também estão tentando compreender qual é a contribuição da religião para a guerra e como a religião possa ajudar a superá-la.
Junto com nossos hábitos de leitura, também mudaram os nossos hábitos de oração. Nós, ortodoxos, estamos acostumados a rezar com palavras compostas por homens e mulheres santos de um passado distante.
Essas orações formam um cânone. Pessoalmente, achei esse cânone irrelevante quando a guerra se intensificou no início de 2022. Os únicos textos que podia usar para rezar eram os Salmos de Davi. Mais tarde descobri que alguns de meus amigos estavam vivendo a mesma experiência.
A maioria dos Salmos foi escrita em tempos de guerra para tempos de guerra. Portanto, se podem orar e compreender melhor as circunstâncias de guerra. Essa foi uma das descobertas espirituais e hermenêuticas mais inesperadas. Os Salmos foram recebidos pelo povo judeu, que repetidamente passou por guerras e foi muitas vezes ameaçado de extinção. O meu povo encontra-se agora à beira do mesmo precipício. É por isso que os Salmos têm tanta ressonância em nós. E é também por isso que os ucranianos demonstraram um dos mais altos níveis de apoio a Israel entre as nações europeias na recente escalada de violência.
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Rezar em tempos de guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU